SAMCDA: o discurso cientificista da terapia cognitivo-comportamental 1 Christiano Mendes de Lima 2 Resumo: Neste texto, pretende-se situar a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como uma das formações contemporâneas que se opõe ao discurso analítico. Nova forma de SAMCDA, travestida de um discurso cientificista que opera a foraclusão do sujeito em sofrimento. A partir da crítica dos pressupostos teórico-práticos da TCC, procurase demonstrar a radical diferença da Psicanálise, enquanto teoria e experiência. Palavras-chave: psicanálise, TCC, ética, foraclusão do sujeito. 1 Texto publicado na revista Latusa n 19. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, agosto de 2014, p.119-124. 2 Psicanalista, mestre em Educação pela USP-SP, membro da Clínica Freudiana de Uberlândia (MG), associado efetivo do CLIN-a, Instituto do Campo Freudiano. E-mail: christiano.psicanalise@gmail.com
Em Televisão, Lacan afirma que a IPA, instituição criada por Freud na tentativa de resguardar a psicanálise, atualmente, (...) é uma sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico. A SAMCDA 3. A ironia de Lacan, proferida em 1973, parece valer ainda hoje quando vemos como a burocracia funciona nesta instituição, no que diz respeito à formação do analista. Também assistimos, no presente momento, a uma inserção da teoria lacaniana no âmbito da IPA com a promoção de jornadas Lacan na IPA. Trata-se de uma minoria que, dentro da IPA, reconhece a contribuição de Lacan para a psicanálise. Resta saber o que será feito do ensino de Lacan em uma instituição cuja burocracia caminha no sentido oposto ao que Lacan propõe como formação. No restante da IPA, impera a hostilidade ou o desinteresse pelo ensino de Lacan. Conforme Aflalo demonstra, Daniel Widlöcher presidente da IPA em 2001, desde a década de 1980, preocupava-se com o futuro da psicanálise em um contexto em que o discurso social sobre as psicoterapias apresentava-as como mais eficazes, mais curtas e de menor custo que o tratamento psicanalítico. Widlöcher [...] considerou que o desinteresse das pessoas e o risco de diluição da psicanálise nas psicoterapias eram dois perigos que a espreitavam [...]. Mas ele estava preocupado sobretudo com o que chamou de o risco de implosão da psicanálise. Imputava este risco às mudanças da prática do tratamento impostas por personalidades carismáticas como Lacan. O remédio de Widlöcher era simples. A psicanálise necessitava de mais ciência, mais leis e menos prática lacaniana 4. Para este autor, a psicanálise deveria, no século XXI tornar-se uma ciência médica. Para atingir tal propósito, desmonta toda a radicalidade do pensamento freudiano e toma o inconsciente como simplesmente o que não se tornou consciente ainda. Widlöcher opera, então, uma cognitivização da psicanálise. O intuito deste texto não é fazer uma crítica ao pensamento deste autor, mas apenas demarcar como, no interior da suposta ortodoxia psicanalítica, pode proliferar um discurso que transforma a psicanálise em uma terapia cognitiva. 3 LACAN, J. Televisão (1973). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 518. 4 AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012, p. 33/34.
Lembremos de que o próprio Aaron Beck, criador da terapia cognitiva (TCC), afirma ter partido da psicanálise para desenvolver sua teoria, dando base empírica ao que Freud formula em Luto e Melancolia 5. Beck, como Widlöcher, quis tornar mais científica sua prática. Para tal, criou escalas para avaliação da depressão e de outros transtornos mentais. Neste procedimento, opera-se uma foraclusão do sujeito, reduzido a comportamentos quantificáveis. Como afirma Aflalo, para os adeptos das TCCs, listas de questões são ferramentas de medição científica. Constituem o apogeu do saber psiquiátrico de hoje 6. Assim, no campo da terapêutica dos chamados transtornos mentais, ocorreu uma aliança entre uma psiquiatria cada vez mais distante da clínica e cada vez mais cooptada pela indústria farmacêutica com o discurso cientificista enunciado pela Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). Atualmente, uma das formas de manifestação da SAMCDA é esta aliança entre o discurso capitalista e o discurso da ciência que invade o campo em que opera o tratamento do sujeito em sofrimento. Para situar como a ética da psicanálise e sua relação com a teoria difere dos procedimentos adotados por estas práticas psicoterápicas, destacaremos alguns trechos do livro de Judith Beck, filha de Aaron Beck. Esta autora afirma que: [...] o modelo cognitivo propõe que o pensamento distorcido ou disfuncional (que influencia o humor e o comportamento do paciente) seja comum a todos os distúrbios psicológicos. A avaliação realista e a modificação no pensamento produzem uma melhora no humor e no comportamento. A melhora duradoura resulta da modificação das crenças disfuncionais básicas dos pacientes 7. Este é o postulado básico de um sistema de psicoterapia que Aaron Beck apresenta como: 1) uma teoria da personalidade e psicopatologia com sólidos achados empíricos para apoiar seus postulados básicos; 2) um modelo de psicoterapia com conjuntos de princípios e estratégias que combinavam com a teoria da psicopatologia; e 3) achados empíricos sólidos embasados em estudos de resultados clínicos para apoiar a eficácia dessa abordagem 8 Bem, vejamos. Qualquer epistemólogo riria de Beck quando este afirma que construiu uma teoria em psicopatologia. Sabemos que o sistema diagnóstico utilizado na prática da TCC nada mais é que o sistema de classificação de transtornos mentais 5 FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 6 AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012, p.31. 7 BECK, J. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997, p.17. 8 Ibid., p.13.
colocado no mercado pelos psiquiatras americanos que produzem o DSM e suas contínuas reedições. Mas, esse não é ponto que verdadeiramente nos interessa neste texto. Pretende-se destacar a posição do terapeuta diante do paciente. Tal posição é conforme ao que Maleval denomina de psicoterapias autoritárias. Diz ele: Em uma primeira aproximação, designamos por este termo uma prática diretiva onde o psicoterapeuta se posiciona no lugar do mestre: deste lugar de autoridade, ele se situa como detentor de um saber concernente ao bem do sujeito, convidado a se conformar a suas prescrições e a se adaptar à realidade tal como o dito terapeuta a concebe 9. De fato, a prática da TCC parte da explicação ao paciente sobre o que é a referida terapia, quais os seus objetivos e como funciona o tratamento. É interessante como uma prática que se pretende científica dependa de que o paciente saiba sobre sua teoria. Nenhum médico precisa explicar para o paciente como funciona um antibiótico, nem o que são bactérias para que este funcione. Se uma terapia depende, para ter eficácia, de que o paciente saiba de seus pressupostos, ela não passa de uma técnica sugestiva travestida de um linguajar cientificista. Assim, o que se faz é simplesmente a mágica de retirar da cartola o coelho que o terapeuta colocou lá. A posição do terapeuta-mestre é a daquele que julga se o paciente faz ou não uma avaliação realista da realidade. Mas, qual é a realidade? Do terapeuta? Da teoria? Das normas sociais? Dos dados empíricos? De onde vêm os dados empíricos? Judith Beck nos deixa entrever claramente de que realidade se trata quando afirma que a TCC é uma terapia operacionalizada com uma ampla gama de aplicações também apoiada por dados empíricos, que são prontamente derivados da teoria 10. Assim, os dados empíricos são derivados da teoria. Posição completamente diferente da ética da psicanálise, onde há o primado da experiência sobre a teoria 11. Além disso, nenhum analista explica para seu analisante o que é o inconsciente, como se interpreta os sonhos, quais são os caminhos da formação dos sintomas, o que é a pulsão etc. A única regra fundamental operando na clínica psicanalítica é a de que o analisante deve falar sobre tudo o que lhe vier à mente, sem exercer nenhum tipo de censura consciente sobre suas produções mentais. 9 MALEVAL, J-C. Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire. Paris: Navarin; Le Champ Freudien, 2012, p.8. 10 BECK, J. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997, p.19. 11 Sobre a relação entre a teoria e a experiência psicanalítica, cf. MILLER, J-A. A formação do analista. Em: Opção Lacaniana, nº 37. São Paulo: Eólia, 2003, p. 5-34.
Mas por que Aaron Beck, que se dizia psicanalista, criou a TCC? Seria por um limite que ele encontrou na teoria psicanalítica, como, muitas vezes, sustentam os autores de livros de TCC? Vejamos se achamos algo no próprio discurso deste autor para responder a essa questão. Ele afirma: Quando comecei a tratar pacientes com um conjunto de procedimentos terapêuticos que posteriormente rotulei como terapia cognitiva, eu não tinha a menor ideia de onde me conduziria essa abordagem que se afastava tão fortemente do meu treinamento psicanalítico 12. Diante disso, poder-se-ia dizer que ele inventou a TCC exatamente porque ele passou por um treinamento psicanalítico. Beck fez um treinamento psicanalítico, não passou pela experiência de uma análise. Quem fez um treinamento, só pode se propor a treinar. Assim, o limite que fez Beck criar a TCC é o limite de sua própria relação com o inconsciente. É o efeito de sua recusa ao inconsciente e de sua impossibilidade de fazer a experiência de uma análise. Quem passou pela experiência de uma análise, sabe que não há saber que recubra o real, que o inconsciente se estrutura a partir da rede de significantes que está articulada a como fomos falados pelo Outro e que o sintoma como formação do inconsciente porta a verdade do sujeito e sua relação com o gozo. Portanto, para a psicanálise, o sintoma deve ser escutado e interpretado para que a verdade do sujeito possa emergir, a fim de que este possa elaborar um savoir-faire com o real que o sintoma recobre. Assim, fazer calar o sintoma, tomando-o como uma simples disfunção do pensamento que deve ser corrigida pelo terapeuta-mestre, só pode conduzir ao pior. Podemos pensar a diferença entre a TCC e a psicanálise do seguinte modo: o tratamento psicanalítico produz uma mutação na posição do sujeito e em sua relação com o desejo e o gozo; a TCC quer o bem do indivíduo, concebido como uma máquina de pensar disfuncional que precisa ser consertada, reprogramada pelas injunções do terapeuta-mestre. Assim, orienta-se para a eliminação do sintoma, procurando trocar o software defeituoso do paciente por um novo software capaz de fazer avaliações realistas. Nesse procedimento, o sujeito é excluído da cena. Há uma foraclusão do sujeito. Como já advertia Lacan: tudo que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real 13. Maleval 14 apresenta alguns 12 BECK, A. Prefácio. Em: Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997, p.13. 13 LACAN, J. O Seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.21. 14 MALEVAL, J-C. Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire. Paris: Navarin; Le Champ Freudien, 2012, p.11.
exemplos ilustrativos: a anoréxica tratada com sucesso pela TCC e que um mês depois de curada comete suicídio. O sintoma anoréxico ao ser eliminado para o bem do indivíduo o conduz à morte. Podemos pensar que se operou a passagem entre o comer nada presente no sintoma anoréxico para o ser nada realizado com a passagem ao ato suicida. Outro exemplo que fornecido por Maleval também ilustra o retorno no real como efeito de uma prática terapêutica que insiste em foracluir o sujeito do tratamento em nome do suposto bem do indivíduo e do ideal cientificista de seus teóricos. Trata-se do caso de uma criança fóbica que, após um tratamento diretivo de sua fobia, desenvolve um eczema invasivo. O mais irônico é que casos como estes são estatisticamente contabilizados como sucessos terapêuticos produzidos pela TCC, pois houve a eliminação do sintoma (anoréxico no primeiro exemplo citado, e fóbico, no segundo). A estatística e a perspectiva clínica da TCC não tem o refinamento necessário para captar a relação entre a eliminação do sintoma e a passagem ao ato, no caso da anoréxica, ou a articulação entre a eliminação do sintoma fóbico e o fenômeno psicossomático que invade a pele da criança. Somente a psicanálise, que leva em conta o sujeito e o real, pode operar uma clínica ética e refinada. Referências bibliográficas AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012. BECK, A. Prefácio. Em: Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997. BECK, J. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997. LACAN, J. O Seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. LACAN, J. Televisão (1973). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
MALEVAL, J-C. Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire. Paris: Navarin; Le Champ Freudien, 2012. MILLER, J-A. A formação do analista. Em: Opção Lacaniana, nº 37. São Paulo: Eólia, 2003.