O que é a questão sino-tibena?



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O que é a questão sino-tibena? Cynthia M. Marcucci A questão sino-tibetana é complexa e envolve várias áreas do conhecimento. As origens do problema podem ser buscadas no século XIII, quando, segundo a história oficial chinesa, o Tibete se tornou parte inalienável da China por conta da invasão mongol. Segundo os partidários da pertença do Tibete à China, a Dinastia Yuan (1280-1368) foi um poder político nacional governado pela minoria chinesa e que agregava diversas nacionalidades: mongol, han, e tibetana. Para os seguidores dessa vertente, o Império Mongol foi um Estado Chinês. Já a versão tibetana deixa claro que a dinastia Yuan não é chinesa, mas um nome chinês escolhido por Kublai Khan, imperador mongol. Mais tarde, nas primeiras décadas do século XVIII, o Império Manchu subjugou o Tibete durante o período do VI e VII Dalai Lamas e estabeleceu na China a dinastia Ching (1644-1911), atrelando de modo perverso a história desses países. No século XIX, a relação entre a dinastia Ching e o Tibete tornou-se insignificante apesar da presença de comissionados manchus em Lhasa. Por outro lado, a figura predominantemente religiosa dos Dalai Lamas garantia uma relação sem tensões. No entanto, esse cenário mudou nos primeiros onze anos do século XX por três motivos: o interesse britânico pelo Tibete, que resultou na invasão de 1904; o esforço dos chineses para restabelecer o controle sobre a região, que resultou na ocupação chinesa de 1910; e o fim da dinastia Manchu em 1911. Dois anos após a invasão do Tibete, a Grã Bretanha firma um tratado com o Império Manchu, no qual o Tibete é praticamente negociado e reconhecido como parte da China (GOLDSTEIN, 1989). Esse documento abriu a via para as aspirações chinesas pós-período Manchu, pois com ele podia contar com um dispositivo de valor internacional. A presença dos países ocidentais na Ásia foi também um motivo para que a China, o vizinho gigante, empreendesse uma luta contra as forças imperialistas e desenvolvesse o interesse por cumprir esse papel dominante por si mesmo. Para a Dinastia Ching, o Tibete era apenas uma província atrasada, feudal e teocrática que se rebelava influenciada pelos países imperialistas europeus, por isso, em 1910, o Império Manchu, em represália à invasão britânica, realiza uma incursão ao Tibete. Com o fim da dinastia Manchu, tanto o governo republicano como mais tarde o Partido Comunista Chinês utilizarão esses episódios prévios para validar a sua versão dos movimentos históricos e políticos na região. O papel do XIII Dalai Lama foi crucial, mas acompanhar a sua entrada no cenário político requer mais tempo e espaço. Neste artigo nos limitaremos aos fatos que envolveram o Partido Comunista Chinês (PCC) e o XIV Dalai Lama, que ainda repercutem, sem solução. A presença constante do líder tibetano nos meios de 22

comunicação, seu apelo reiterado à causa do Tibete e o tímido apoio dos países ocidentais, não são suficientes para fazer frente à potência chinesa. A Grã-Bretanha, junto com a Rússia apoiavam a China quanto às suas pretensões ao Tibete. Apesar da preocupação britânica com os comunistas chineses e a visita do repórter americano Lowell Thomas ao Tibete acenando para uma ajuda caso os comunistas ganhassem a guerra civil e invadissem aquele território, nada ocorreu (CHHAYA, 2007). Por outro lado, disputas e hostilidades entre Reting Rinpoche e Taktra Rinpoche, os principais candidatos para assumir o período de regência, lançou o Tibete em confrontos entre monges budistas polarizados entre as posturas pró e anti-chineses. Na segunda metade dos anos 1940, a busca de poder, que envolveu traições, envenenamentos e assassinatos (GOLDSTEIN, 1989), colocou o Tibete praticamente nas mãos dos chineses. Além disso, a postura conservadora dos tibetanos, confiantes na religião e cegos ao jogo astucioso que era realizado no nível internacional, fez com que a intervenção chinesa fosse uma possibilidade remota. Houve também aqueles que acreditaram que a presença maciça da China levaria o Tibete a uma verdadeira transformação rumo à modernidade. O XIV Dalai Lama, nasceu em 6 de julho de 1935, na aldeia de Taktser, região de Amdo, nordeste do Tibete e fronteira com a China; era filho de uma família de fazendeiros pobres e recebeu o nome de Lhamo Thondup. Após os trâmites de reconhecimento oficial, partiu para Lhasa com toda a sua família para ser instruído e iniciar sua vida monástica aos 2 anos de idade. Nos 10 anos seguintes, foilhe conferida uma educação que abrangia filosofia budista, lógica, medicina, sânscrito, astrologia, entre outros estudos, bem como uma vigorosa disciplina monástica e nas intensas práticas espirituais. Além da erudição nos assuntos concernentes à sua cultura, também recebeu aulas de relações exteriores, pois as portas à cultura ocidental, incluídos objetos como automóveis, projetores e filmes, já haviam sido abertas por seu antecessor, quando aceitou presentes e entrou em contato com vários ocidentais, interando-se da política praticada pelas potências européias (CHHAYA, 2007). Em 1940, Lhamo Thondup foi entronizado no palácio Potala, como líder espiritual dos tibetanos, recebendo o nome de Jamphel Ngawang Lobsang Yeshe Tenzin Gyatso. Durante essa década, a posição da China em relação ao Tibete ficava cada vez mais agressiva em nome da libertação do povo tibetano. Além das mudanças políticas ocorridas na China em 1911 e 1949 (o fim do Império Manchu e a declaração da República Popular da China), a Segunda Guerra Mundial coloca nesse jogo outros Estados com interesses imperialistas na região: Rússia e Japão. Com o fim da guerra, entraram em cena os EUA, um importante protagonista da cena internacional que entendia ser, a China, seu único aliado na Ásia Oriental e, por isso, apoiou suas pretensões sobre territórios, tornando mais difícil e carregada as relações entre o acuado Tibete e as potências 23

ocidentais ávidas pelo controle da Ásia (GOLDSTEIN, 1989). Em 7 de outubro de 1950, a República Popular da China invade o Tibete e doze dias depois, o incipiente exército tibetano capitula frente ao Exército Popular de Libertação (EPL) que passou a exercer o controle militar sobre o país. Pouco tempo depois da invasão chinesa, o governo tibetano recebeu indicações do oráculo oficial tibetano o Netchung - que Tenzin Gyatso, então com 15 anos de idade, deveria, antecipadamente, assumir o poder, o que ocorreu em 17 de novembro de 1950. Sem apoio das Nações Unidas e com o ínfimo exército derrotado, a situação do líder político e religioso do Tibete tornava-se cada vez mais delicada. Ao abrir negociações com a China, foi assinado em 23 de maio de 1951 o Acordo sobre Medidas para a Libertação Pacífica do Tibete, conhecido como Acordo de Dezessete Pontos (LAIRD, 2008). Os pretextos da China para o movimento que culminou com a invasão do Tibete e o acirramento dos conflitos e represálias que terminaram por colocar S.S. XIV Dalai Lama em exílio na Índia evocam questões históricas, políticas e ideológicas que estão implícitas nesse Acordo: uma interpretação da história do Tibete como o desenrolar de ocorrências dentro do território chinês, a descrição dos movimentos e empenhos das forças imperialistas na Ásia, e o interesse recíproco das partes envolvidas. Em outras palavras, a partir da aceitação desse Acordo, a perspectiva chinesa era admitida publicamente pelo governo tibetano, cujos representantes enviados para a discussão desses pontos foram envolvidos na jogo político do PCC. Nessa ocasião, o Dalai Lama, por motivos de segurança, já havia saído de Lhasa para o Mosteiro de Yantung que fica próximo à fronteira Indiana. Em julho do mesmo ano, a delegação chinesa encarregada de confirmar junto ao Dalai Lama os termos do Acordo e fazê-lo retornar a Lhasa, chegou a Yatung. Nesse momento, a postura do líder tibetano já estava decidida: diante das dificuldades em conseguir apoio e ações efetivas por parte da comunidade internacional, desamparado e insulado nas suas questões individuais, o Acordo de Dezessete Pontos não seria refutado. Retornou a Lhasa e viveu em reclusão no Potala, tendo como paisagem a presença das tropas chinesas e vendo serem impostas várias exigências tais como alimentos para as tropas de ocupação, por exemplo, que com o tempo deixaram de ser compradas e passaram a ser simplesmente confiscadas (CHHAYA, 2007). Alterações de documentos, murais, interferências na manutenção ou demissão de autoridades do governo, relatos tendenciosos dos chineses, fazem parte da realidade que um jovem Dalai Lama teve que enfrentar. A presença chinesa desencadeou uma crise nacional e a situação de Sua Santidade foi se tornando insustentável. Além disso, a reação da população tibetana não foi majoritariamente condescendente nem colaboradora, houve resistência desde o início, mas a postura do XIV Dalai Lama foi também de alguém que apesar das 24

adversidades pensava no bem-estar de seu povo: apostou no diálogo e na clara visão de que suas forças de luta estavam aquém do inimigo. A prova dessa inferioridade militar e da assimetria dessa relação foi que, entre 1956 e 1960, ocorreram revoltas que resultaram em mortes, desaparecimento de tribos nômades, miséria, prisões e sofrimento e nenhuma mudança na situação (LAIRD, 2008). Os problemas foram acrescendo até que, em 10 de março de 1959, ocorreu um novo levante. Os tibetanos reuniram-se no Norbulingka (Palácio de Verão) para impedir que o Dalai Lama fosse entregue aos chineses por colaboradores. Esse ato teve a repercussão de uma declaração de independência do Tibete. Sete dias depois, com a crise se agravando, os chineses furiosos com a presença da CIA no Tibete e o repúdio popular ao Acordo dos Dezessete Pontos, o XIV Dalai Lama deixa o Norbulingka disfarçado de soldado do exército e parte em direção ao sul (território libertado) onde declara nulo o Acordo. O levante de março e a fuga do Dalai Lama tiveram como efeito a repressão do EPL: Potala e Norbulingka bombardeados, 86.000 tibetanos mortos, por conta de abater uma revolta supostamente instigada pelas forças imperialistas estrangeiras e comandadas pela elite feudal tibetana. Em Dharamsala, Índia, o XIV Dalai Lama organizou um governo tibetano no exílio de tendência democrática, através do qual exerce sua influência política, promove diálogos inter-religiosos, concede iniciações religiosas como líder espiritual de todas as escolas budistas e trabalha na preservação do budismo e de outros aspectos da cultura tibetana. Hoje, está em suas mãos agregar culturalmente os tibetanos fora do Tibete e lutar por aqueles que ficaram na terra natal através da organização das colônias, institutos de preservação da arte, história e medicina tibetana. Desde então, ele conscientiza as pessoas sobre a luta de seu país com a China enquanto defende soluções não violentas para as disputas religiosas e políticas. Para tanto, desde 1967, percorre o mundo para a divulgação de suas ideias e encontros notáveis com autoridades políticas, religiosas, científicas e vários artistas. Várias vezes, no decorrer da ocupação chinesa, os tibetanos se revoltaram, promoveram ataques às guarnições chinesas e fomentaram rebeliões. A cada uma dessas tentativas desesperadas de colocar fim a essa situação, a postura do governo chinês recrudescia: restrições a tibetanos, maciça transferência de chineses da etnia han para colonizar a região, programas de reeducação (principalmente aos monges), proibição da utilização do idioma tibetano e a obstinação em dificultar o diálogo com o Dalai Lama, sob o pretexto de que seria o agente das insurreições tibetanas e principal artífice da campanha de independência do Tibete. A postura resistente das autoridades chinesas dá sinais de que cada vez mais distante se encontra uma solução favorável ao Tibete: sem chances de via pacífica, sem chances de via violenta. Como resistir ao porte da agressividade chinesa? Sem resultados concretos para qualquer atitude de 25

entendimento, percebemos que os esforços chineses são situações que a China apresenta para seus pares nas relações internacionais, sem a intenção autêntica de superar o impasse. Seu interesse na região e sua situação na comunidade internacional atualmente deixam-na em uma posição confortável. Não é sua prioridade negociar, resta somente encontrar motivos suficientes para culpar a outra parte pelo fracasso do diálogo. O que podemos perceber até aqui é que a questão do Tibete ultrapassa as questões lineares entre nações e vai além das questões étnicas e de preservação de tradições. Temos uma confluência de fatores, uma encruzilhada de tempos que torna a questão sino-tibetana exemplar para uma análise transdisciplinar. Internamente, podemos citar seu isolamento, lutas internas e conservadorismo religioso, que foram potencializados no contexto do colonialismo europeu, da segunda guerra mundial e do interesse da China comunista. Acrescente-se a isso as relações históricas com mongóis e manchus e a apropriação dessa história por parte da China. Todos esses fatores, sem exceção e sem privilegiar um ponto de vista em detrimento de outro, são vias de mão dupla, tanto concorrem para o resultado nefasto como trazem também um lado criativo e transformador, inusitado e surpreendente. São eixos de pesquisa e estudos que dificilmente poderiam ser discutidos em um único trabalho, mas provavelmente promoveriam várias linhas de interesses. O Dalai Lama quer voltar para o Tibete, mas não se submete a ser uma ficha no jogo que a China prepara para ser reconhecida internacionalmente, como foi o caso das Olimpíadas de Pequim 2008. Por princípio, todo o budista é a favor da nãoviolência, desse modo a posição de S.S. Dalai Lama é clara, notória e reconhecida (Prêmio Nobel da Paz em 1989), não ignora o atraso do Tibete no que tange à educação e à tecnologia e, em nome da modernização, esclarece que não deseja a independência do Tibete em relação à República Popular da China, mas uma província com autonomia política, um auto-governo com liberdade para resguardar a cultura, espiritualidade e o idioma tibetanos. Estudiosos da política chinesa e Tibete, tais como o Dr. Orville Schell (apud CHHAYA, 2007), afirmam que, tendo chegado aonde chegou e da maneira como chegou, dificilmente a China mudará seu modo de lidar com essa questão: aguardar a morte do XIV Dalai Lama, nomear ela mesma seu sucessor e sufocar, finalmente, qualquer tentativa de rebelião. Convém lembrar, entretanto, que o inesperado num mundo determinado é a especialidade do budismo. A determinação histórica ou social é provedora de subterfúgios e desculpas. As leis históricas, as condições sociais ou econômicas apontam para um final esperado, mas essa determinação não é certa, sempre haverá a possibilidade do imprevisto. Conhecer a história do Tibete e entrar em contato com sua cultura é uma forma de compreender que temos ali algo mais que um 26

país distante, exótico e cheio de mistérios guardados em mosteiros encravados em montanhas geladas. Atentar para as peculiaridades do budismo tibetano e compreender seu sistema de crenças, é reconhecer que os tibetanos são mais que peritos em meditação, mantras e cerimônias extravagantes que precisam de nações modernas para organizar suas vidas, fazer suas escolhas, desenhar o seu futuro a partir de um modelo que pouco, ou nada, se adéqua à sua cultura tributária, em todos os sentidos, da religião. Cynthia M. Marcucci é Doutora em História pela PUC-SP e professora do curso de Relações Internacionais da FASM. Referências Bibliográficas CHHAYA, Mayank. Dalai Lama: o homem, o monge, o místico. Tradução Marly Winckler. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. FRANKE, Herbert; TRAUZETTEL, Rolf. El Imperio Chino. 6.ed. Espanha: Siglo Veintiuno, 1985 (História Universal Siglo XXI v.19). GOLDSTEIN, Melvyn C. A History of Modern Tibet. V. I. 1913-1951: the demise of the Lamaist state. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1989.. A History of Modern Tibet. V. 2. The Calm before the Storm: 1951-1955. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2007. LAIRD, Thomas. História do Tibete: conversas com o Dalai Lama. Tradução Miguel Mata. Lisboa: Edições 70, 2008. 27