SEGURANCA AERONAUTICA Nº 101 2007-10-19 Meu Caro, Hoje vamos abordar um acidente, não com uma personalidade importante da Aviação, mas, sim, com um piloto muito pouco experiente. Para tal, vamo-nos servir, mais uma vez, de um Relatório Final de Acidente disponibilizado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (GPIAA). Deste acidente resultaram, infelizmente, duas mortes: a do piloto e a do seu passageiro. ALTITUDE DE SEGURANÇA EM MANOBRAS DE TREINO Quando fiz a minha formação de piloto, na minha escola de pilotagem havia um conjunto de regras para a realização de manobras ditas especiais. Por exemplo não se faziam manobras de perda abaixo dos 3.000 pés e não sem antes fazer uma volta de demarcação de 360º para verificar se não havia alguma aeronave na zona de manobra. Porquê os 3.000 pés? Não porque os Cessnas C150 ou C152 perdessem muita altitude numa manobra de perda normal. Afinal, como tu sabes, estes aviões perdem meia dúzia de metros ao fazer uma perda. Esta altitude de segurança tinha a ver com aquilo que convencionámos chamar o lado seguro da Segurança Aeronáutica (ver o nº 97 de 2007-09-21 destas nossas croniquetas semanais). Passados, dezasseis anos de ter feito a minha formação como piloto e muitas centenas de horas a meditar sobre aquilo a que se convencionou chamar Segurança Aeronáutica, sinto-me imensamente feliz por ter frequentado uma Escola de Pilotagem onde as normas de segurança eram tão rigorosas e apertadas. Vais dizer: Três mil pés para uma perdazita? Não será um exagero?. A minha resposta é: Definitivamente, não!. Permite-me que te relate um episódio que eu próprio vivi. Estava eu e o meu instrutor a treinar perdas à vertical do porto de Peniche. Avião aproado ao vento Norte, redução de motor e as restantes práticas típicas para induzir uma perda. Nariz em cima até à perda e depois... Uma pequena queda de meia dúzia de pés até recuperar a situação. Na pior das situações as manobras terminavam a 2.800 pés o que nos dava uma confortabilíssima altura de segurança acima do mar. Foram perdas, mais perdas e mais perdas até que este teu amigo dominasse correctamente a manobra. Dominada a perda sem motor passámos ao capítulo seguinte: a perda com motor. E o torque do motor pregou-nos, então, uma partida. O meu instrutor era de estatura baixa e eu tinha quase o dobro da sua estatura (e peso...). Afinal uma dupla cuidadosamente escolhida para não passarmos o MTOW da aeronave. Isto provocava um forte desequilíbrio lateral. Este desequilíbrio, associado ao torque do motor num regime de potência elevada e a uma situação aerodinâmica de perda acabou por dar mau resultado. Sim, mau resultado. Duas
voltas e meia de vrille! E aqui, não perdemos só meia dúzia de pés. Perdemos umas largas centenas deles até recuperar a situação. Não estivéssemos nós a treinar a 3.000 pés e não sei se estaríamos, hoje, aqui, a manter esta nossa charla. Quando chegámos ao aeródromo e fizemos o dibriefing da missão eu apercebi-me que tinha aprendido muito mais do que aquilo que era o objectivo principal da referida missão: perdas sem motor e com motor. Eu tinha aprendido que altura é melhor do que um colchão. Eu tinha aprendido que em Aviação, Segurança não é uma palavra vã e muito menos vã é quando se trata da realização de manobras especiais para as quais estamos pouco treinados. Neste momento já deves ter perguntado várias vezes porquê este blá-blá todo quando eu começo por dizer que vamos analisar mais um relatório de acidente do GPIAA. Já vais perceber. No Relatório Final Nº 22/ACCID/2006, daquele Gabinete de Investigação, analisa-se um acidente que ocorreu junto à Boca do Inferno, em Cascais. Na descrição do acidente podemos ler:...o piloto, acompanhado por um amigo que seguia como passageiro, descolou do aeródromo de Cascais (Tires) às 15:04 e prosseguiu para a baía de Cascais a 1 500' de altitude. Atingiu a zona de operação cerca de cinco minutos depois e foi observado a efectuar diversas voltas na área, algo descoordenadas, variando a sua altitude entre os 1 500' e 500'. Pelas 15:15 foi observado a voar a cerca de 800' de altitude, 500m para lá da linha de costa, na direcção oeste (para a Boca do Inferno). Efectuou uma volta de 360, apertada, pela esquerda, perdendo altitude (± 400'). Subiu novamente para a altitude inicial e efectuou outra volta apertada, desta vez para a direita. Cinco a dez segundos depois, a aeronave teve um movimento brusco e entrou abruptamente numa espiral para a esquerda, metendo o nariz em baixo, completou cerca de duas voltas e meia, em torno do eixo longitudinal, e foi colidir com a água numa atitude quase vertical, de nariz em baixo... Voltas Pelo que se refere no relatório, a aeronave estava a realizar voltas apertadas na área do acidente. Vejamos o que se diz sobre a manobra Voltas no relatório que temos vindo a analisar:... A volta é uma manobra básica no controlo do voo de qualquer aeronave e caracteriza-se por uma mudança de direcção, proveniente de uma alteração de sustentação criada nas asas, aumentando na asa do lado exterior e diminuindo na asa do lado interior da volta, provocando um pranchamento ou inclinação lateral (rotação sobre o eixo longitudinal, no plano horizontal). Este pranchamento provoca sempre uma diminuição da componente vertical da sustentação, pelo que, para evitar uma perda de altitude, há necessidade de aumentar o
ângulo de ataque, aumentando simultaneamente o factor de carga. Em condições de voo rectilíneo nivelado, a aeronave está equilibrada por quatro forças principais: Duas forças passivas: - peso (P) e resistência ao avanço (R); Duas. forças reactivas: - tracção ou impulso (T) e sustentação (S) Nestas condições, a Sustentação opõe-se ao Peso e a Tracção/Impulso contraria a Resistência ao avanço. A aeronave mantém o seu voo rectilíneo horizontal, a altitude e a velocidade. Quando se efectua uma volta, o vector da sustentação (S) divide-se em duas componentes, uma que corresponde à força centrípeta e puxa a aeronave para o centro da volta (C), e outra que se opõe ao peso e puxa a aeronave para cima (V). Como podemos ver no esquema 1, o valor da componente vertical é inferior ao peso e, como tal, a aeronave terá tendência a perder altitude. Para que isso não aconteça há necessidade de aumentar o valor da sustentação S, de modo a que o vector V seja igual a P (esquema 2), o que se consegue aumentando o ângulo de ataque. Quanto maior for o grau de pranchamento, mais apertado é o raio da volta e maior a necessidade de aumentar o ângulo de ataque. A presença de ventos fortes e turbulência interfere negativamente no comportamento da aeronave, durante a execução da manobra, por variações súbitas da velocidade do ar sobre as superfícies de sustentação e os comandos de voo, provocando alterações súbitas de velocidade e, consequentemente, de sustentação e altitude. Spin Quando o ângulo de ataque atinge o seu valor crítico, a asa entra em perda e, em virtude das condições diferenciadas de cada asa, durante a volta, a asa do lado exterior da volta entra em perda mais cedo, pelo que a aeronave tem a tendência para entrar numa espiral
em sentido contrário ao sentido da volta, com descida acentuada do nariz e perda considerável de altitude. Esta manobra é conhecida como "spin" ou "vrille" e pode ser de difícil recuperação, pelo que é desaconselhada, ou proibida, a sua execução intencional. Faz parte dos programas de instrução a explicação do fenómeno e o ensinamento das técnicas de reconhecimento dos sintomas e recuperação da situação, de volta a uma condição normal de voo... Todas estas noções aerodinâmicas e conselhos estudámos, nós, na cadeira de Performance. Nada isto é novo para nós. Certamente para o nosso companheiro que faleceu no acidente também não seriam. Ou será que seriam? Já não lhe podemos perguntar. Conclusões do relatório do acidente...na altura da ocorrência o vento, na área, era forte e fazia-se sentir uma turbulência moderada; O piloto vinha dando mostras de falta de coordenação do voo, com alterações frequentes de rumo e altitude; Durante a execução de uma volta pela esquerda, o piloto apertou a volta demasiado e perdeu muita altitude; Depois de ter recuperado a altitude perdida, o piloto iniciou uma volta pela direita, com grande pranchamento ; Durante a execução desta última volta, a aeronave entrou em perda e desenvolveu uma espiral (spin) para a esquerda, efectuou duas rotações e meia sobre o seu eixo longitudinal, com nariz em baixo, e desapareceu no mar... Causas do Acidente...Não se tendo verificado qualquer avaria ou mau funcionamento da aeronave ou seus sistemas, a causa deste acidente é atribuída a uma deficiente técnica de pilotagem, que provocou a perda de controlo da aeronave e a sua entrada em "spin", e à incapacidade do piloto em recuperar dessa situação anormal de voo, a tempo de evitar a colisão com a água. A presença de ventos fortes e turbulência, na área, contribuíram para dificultar o controlo da aeronave, por parte do piloto... De todas as matérias expostas atrás podemos retirar vários conselhos que podemos lembrar aos mais novatos e aos mais distraídos: Nunca treines manobras mais complexas a baixa altura. Mais vale ter muita altura ao solo do que pouca. Afinal nunca se sabe se essa altura não vai ser necessária para salvar uma situação mais complexa; Nunca te esqueças de fazer uma volta de demarcação. É importante para perceberes se a tua área de manobra está desimpedida; Se não te sentes à vontade com certas manobras treina-as sempre com um instrutor a bordo. Não perdes os teus pergaminhos por isso e a presença de um instrutor pode ser muito útil. Já, agora, um instrutor que saiba mais do que tu; Em certos tipos de treino nunca leves passageiros contigo. Para além de eles não terem de saber que estás tão destreinado, também não têm a obrigação de sofrer o desconforto desse teu destreino. Se sentes que já não te lembras ao pormenor de certos conceitos que aprendeste na cadeira de Performance, está na altura de retirares o teu manual da estante e fazer
uma revisão desses conceitos. Afinal eles podem ser-te muito úteis e evitarem-te o acidente. Afinal em Aviação não há conhecimentos secundários e primários. Quando se chega à altura da ocorrência dum acidente, todos os conhecimentos se tornam instantaneamente primários! Estas são os conselhos do Fernando. Deixa-me terminar recomendando-te mais uma vez que te associes à AOPA Portugal. Perguntarás, de imediato, como o poderás fazer. Visita o site da AOPA Portugal em www.aopa.pt e manda as tuas perguntas para o Presidente da AOPA Portugal através do seguinte e-mail address: robin.andrade@aopa.pt. Gostaria de contar com a tua presença na nossa AOPA. Como sempre, um abração do Fernando