A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO: O CAPITALISMO E SEU ARRIMO TEOLÓGICO



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Transcrição:

A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO: O CAPITALISMO E SEU ARRIMO TEOLÓGICO WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2004. Vinícius Mendes de Oliveira 1 INTRODUÇÃO A ética protestante e o espírito do capitalismo figura entre as mais importantes obras da literatura mundial. Nesse livro, Max Weber explica o surgimento do capitalismo à luz da teologia protestante que impôs uma ascese que gerou o espírito capitalista, segundo seu ponto de vista. É seu propósito apresentar uma interpretação cultural para o fenômeno do capitalismo, indicando que na base das ações econômicas capitalistas encontra-se um espírito gerador, refutando o materialismo histórico de Kal Marx como única explicação para o sistema capitalista. Weber inicia o livro estabelecendo que as diferenças sócioeconômicas entre católicos e protestantes são produto das cosmovisões religiosas que cada grupo detém. Na sequência, o autor passa a explicar o conceito de espírito do capitalismo, propondo, de forma mais clara, sua tese. Weber ainda faz uma diferença entre o conceito de vocação em Lutero e Calvino e explica o objeto de sua pesquisa. Na segunda parte do livro, Weber apresenta como o protestantismo calvinista inseriu-se no mundo, estabelecendo o espírito do capitalismo. Finalmente, Weber mostra como a ascese protestante determinou o espírito do capitalismo. Portanto, pretende-se, neste texto, refletir, sucintamente, sobre cada 1 Mestrando em Ciências Sociais na UFRB, Professor de Língua Portuguesa no IAENE, Aluno do 7º período do SALT IAENE. E-mail: vimeo@hotmail.com

168 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 um desses tópicos desenvolvidos por Weber, observando a sequência da pesquisa do autor em suas formulações sobre a base religiosa que está no embrião do capitalismo, o qual final e definitivamente, segundo Weber, desprendeu-se de seu arrimo religioso. PROTESTANTISMO X CATOLICISMO No capítulo Confi ssão religiosa e estratifi cação social, Max Weber mostra a marcada diferença de posição social que ocupam protestantes e católicos. Segundo a pesquisa que fez na Alemanha, Weber diz que os protestantes ocupavam as mais elevadas posições no mundo dos negócios, figurando como empresários e compondo as mais qualificadas zonas de mão de obra. Na visão de Weber, esse fenômeno se deve a, pelo menos, dois fatores: posse de capital e forte ênfase em educação. Na verdade, por conta, especificamente dessa segunda característica, o Protestantismo desenvolveu em seus adeptos um senso de incômodo com o tradicionalismo religioso, que os levou a questionar verdades absolutas e dogmas. Ele diz, literalmente:... a Reforma significou não tanto a eliminação da dominação eclesiástica sobre a vida de modo geral, quanto a substituição de sua forma vigente por outra. E substituição de uma dominação extremamente cômoda, que na época mal se fazia sentir na prática, quase só formal muitas vezes, por uma regulamentação levada a sério e infinitamente incômoda da conduta de vida como um todo, que penetrava todas as esferas da vida doméstica e pública até os limites do concebível. (WEBER, 2004, p.30) A citação acima indica claramente o caráter revolucionário que a Reforma assumiu, rompendo com a dominação católica. Fica evidente que, para Weber, o estilo de vida que a moral católica impunha era cômodo, no sentido de relegar quase que exclusivamente ao transcendente as questões importantes da vida. A respeito do Catolicismo, Weber diz: A dominação da Igreja católica que pune os hereges, mas é

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 169 indulgente com os pecadores, no passado mais ainda que hoje é suportada no presente até mesmo por povos de fisionomia econômica plenamente moderna [e assim também a aguentaram as regiões mais ricas e economicamente mais desenvolvidas que a terra conhecia na virada do século XV]. (IDEM, p. 31) Essa definição do catolicismo dada por Weber ajuda a explicar o motivo da diferença entre católicos e protestantes no que diz respeito à economia. O catolicismo foca sua abordagem em questões menos práticas tais como credo e dogmas, relegando a segundo plano questões práticas como ética e moral. Naturalmente, ética e moral, especialmente a partir do ponto de vista do protestantismo, também e principalmente- estão ligadas às questões como trabalho e economia. Segundo Weber, o catolicismo sustenta um modo de vida que estimula seu fiel a um contentamento com aquilo que lhe garanta a subsistência e o desfrute do que se tem. Por outro lado, a ascese protestante, de forma geral, focada em questões práticas e morais dando liberdade de consciência aos fieis no que diz respeito a doutrinas interpreta o ócio como pecado e estimula o acumulo não desfrutado como prática moral digna. Weber cita Offenbacher sobre o tema acima: O católico [...] é mais sossegado; dotado de menor impulso aquisitivo, prefere um traçado de vida o mais possível seguro, mesmo que com rendimentos menores, a uma vida arriscada e agitada que eventualmente lhe trouxesse honras e riquezas. Diz por gracejo a voz do povo: bem comer ou bem dormir, há que escolher. No presente caso, o protestante prefere comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado (Offenbacher, apud Weber, p. 34). A citação acima é precisa para expressar o que Weber quer transmitir no primeiro capítulo do livro. O sociólogo pretende diferenciar o ponto de vista católico da ascese protestante, deixando claro que a primeiro preocupa-se pouco com os problemas práticos da vida, especificamente aqueles que dizem respeito à vida econômica, isto é, o católico prefere dormir sossegado. Com base nisso, percebe-se que Weber quer ensinar que o católico opta pelo ócio e que utiliza o trabalho apenas para lhe

170 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 garantir isso. Por outro lado, Weber pinta o protestante como diligente, preocupado em comer bem, significando essa expressão todo o trabalho que esse ato pressupõe. O ESPÍRITO DO CAPITALISMO A discussão do capítulo O Espírito do Capitalismo gira em torno de se definir, pelo menos de maneira introdutória, o que vem a ser o tal espírito do capitalismo. Mas Weber, portanto, recorre a um texto de Benjamin Franklin, que [... simultaneamente oferece antes de mais nada a vantagem de ser isento de toda relação direta com a religião e por conseguinte para nosso tema isento de pressupostos ].(IDEM, p. 42) A intenção de Weber é definir o espírito do capitalismo. Weber utiliza a palavra espírito porque quer ensinar que o capitalismo nasce de uma base religiosa, mas à medida que a modernidade avança esse capitalismo vai se desprendendo desse arrimo e assumindo suas próprias características. Muitas delas negando sua própria origem religiosa. Assim, Weber quer destacar que há no capitalismo um espírito protestante remanescente, que é produto de uma ascese, originalmente religiosa, mas que se laicizou com a modernidade e a racionalidade. Por isso, em busca de isenção de pressuposições religiosas, pelo menos diretas, como prudentemente ele menciona- Weber utiliza o texto de Benjamin Franklin. O texto inicia-se com a célebre frase Lembra-te que tempo é dinheiro. Com essa frase, Franklin ensina o valor de se utilizar sabiamente do tempo, não o desperdiçando com ócio ou coisas sem valor laboral. O texto é encadeado com uma série de exortações a respeito do dinheiro, geralmente introduzidas por expressões como Lembra-te e outras de tom exortativo. Naturalmente, esse modo de encadear o texto é uma notável referência, mesmo que sutil, às exortações bíblicas de onde o

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 171 Protestantismo tirou a base para sua moralidade. Todos ditos encontrados nessa referência estimulam o leitor ao trabalho e ao acúmulo. Weber comenta o texto de Franklin, deixando claro que características essenciais do capitalismo estão presentes no pensamento de Franklin: No fundo, todas as advertências morais de Franklin são de cunho utilitário: a honestidade é útil porque traz crédito, e o mesmo se diga da pontualidade, da presteza, da frugalidade também, e é por isso que são virtudes: donde se conclui, por exemplo, entre outras coisas, que se a aparência de honestidade faz o mesmo serviço, é o quanto basta, e um excesso desnecessário de virtude haveria de parecer, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo condenável. (IDEM, p. 45 e 46) Com base na citação acima é possível inferir que o capitalismo desvincula-se de sua base religiosa na medida em que opta pelo utilitarismo, pressupondo, assim egoísmo e hipocrisia, revelada na questão de se manterem utilitariamente as aparências, o que vai de encontro com o ponto de vista bíblico a respeito do que deve ser a verdadeira motivação para as ações. Nesse capítulo, Weber pretendeu revelar não apenas de onde se origina esse espírito capitalista, mas sobretudo explicar a natureza simbólico-cultural que está na base do capitalismo. A verdade é que Max Weber propõe uma explicação culturalista para o fenômeno. Para ele, portanto, o materialismo capitalista é produto de uma cultura que se impregnou na modernidade, oriunda da Reforma, segunda a qual o lucro não é pecaminoso e que o trabalho na busca do acúmulo dignifica o homem. Fazendo uma direta crítica à interpretação marxista da realidade do capitalismo, Weber diz: Só alhures teremos ocasião de tratar no pormenor daquela concepção do materialismo histórico ingênuo segundo a qual ideias como essas são geradas como reflexo ou superestrutura de situações econômicas. Por ora, é suficiente para nosso propósito indicar: que na terra natal de Benjamin Franklin (o Massachutts) o espírito do capitalismo (no sentido por nós adotado) existiu incontestavelmente antes do desenvolvimento do capitalismo. [(já em 1632 na Nova Inglaterra, havia queixas quanto ao emprego do cálculo na busca de lucro, em contraste com outras

172 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 regiões da América)]; e que esse espírito capitalista permaneceu muito menos desenvolvido, por exemplo, nas colônias vizinhas os futuros estados sulistas da União muito embora estas últimas tivessem sido criadas por grandes capitalistas com finalidades mercantis, ao passo que as colônias da Nova Inglaterra tinham sido fundadas por razões religiosas por pregadores e intelectuais em associação com pequenosburqueses, artesãos e yeomen (IDEM, p. 48 e 49) O trecho acima torna claro que Weber pretende explicar a origem do capitalismo de forma inversa à de Marx. Enquanto este entende a ideia capitalista como derivada de uma base econômica; aquele entende a economia capitalista como produto da cultura espírito - que a cria. Para justificar esse pensamento, ele usa o exemplo citado acima, em que apresenta esse espírito capitalista existindo antes do próprio capitalismo, refutando, assim, o pensamento marxista. O CONCEITO DE VOCAÇÃO LUTERO Nesse capítulo, Weber apresenta as bases do pensamento de Lutero sobre vocação. O sociólogo analisa a semântica da palavra alemã Beruf, relacionando-a com a expressão inglesa calling como também termos equivalentes em outras línguas e percebe o valor religioso que essas palavras assumem. Weber justifica isso, especialmente pela intervenção dos reformadores que traduziram a Bíblia para seus idiomas, transplantando o significado de vocação religiosa para a palavra trabalho. Weber observa que na teologia de Lutero esse processo é gradativo, considerando que ele foi o precursor da Reforma, o que lhe colocava em ambiente medieval, extremamente influenciado pela visão católica de trabalho. Mas à medida que a ideia de sola fi de se lhe torna mais clara em suas conseqüências e vai ficando cada vez mais aguçada sua consequente oposição aos conselhos evangélicos do monacato católico enquanto conselhos ditados pelo diabo, aumenta a significação da vocação numa profissão. (IDEM, p. 73) O ponto de vista de Lutero, portanto, evolui para a concepção de que

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 173 o trabalho é uma vocação divina, a qual foi dada a cada ser humano como instrumento de demonstração de amor ao próximo, no sentido de que, cumprindo a vocação, a pessoa humana serve a seu semelhante. Nesse sentido, observa-se o tom moral que o pensamento de Lutero agrega à questão do trabalho. No entanto, Weber destaca que, em Lutero, o conceito de vocação aparece baseado no ponto de vista tradicionalista. Weber destaca ainda que, na teologia de Lutero sobre o trabalho, não aparece o tal espírito do capitalismo. Antes de tudo, é escusado lembrar que não tem cabimento atribuir a Lutero parentesco íntimo com o espírito do capitalista, seja no sentido que até agora associamos a essa expressão ou de resto em qualquer outro sentido.(idem, p. 74) Weber quer esclarecer com essa observação que a preocupação de Lutero é focada em questões teológicas que envolvam o trabalho e não e em uma superênfase no trabalho, como ocorre em Calvino. Além disso, a posição de Lutero, como já dito, é tradicionalista. Isso significa dizer que o reformador alemão entendia as questões sócio-econômicas do ponto de vista estamental, visão esta que deriva em seu pensamento em virtude do contexto medieval em que ele existiu, do qual não se libertou completamente. Lutero foi um profundo estudioso das cartas do apóstolo Paulo. Foi nesse autor bíblico que encontrou o conceito de justificação pela fé. Foi esse conceito, em linhas gerais, que o levou à Reforma. Portanto, aplicou, ao pé da letra, textos paulinos como o de I Coríntios 7: 20, que diz: Cada um fique na vocação em que foi chamado. Naturalmente, Lutero lia textos assim à luz de seu estado de espírito e de acordo com o foco de seu ministério. Ele não pretendia ser um reformador social, mas sim um reformador religioso. Isso não lhe permitiu ver que os textos paulinos também não legislavam em favor do tradicionalismo econômico ou por qualquer outro tipo de visão econômica. O fato é que, Lutero, embebido de

174 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 uma leitura estritamente escatológica da Bíblia especialmente dos textos paulinos traduziu o conceito de vocação de uma forma tradicionalista. Assim a simples ideia de vocação numa profissão no sentido luterano e é só isso que nos interessa registrar aqui tem, tanto quanto pudemos ver até agora, um alcance problemático para aquilo que nós buscamos. Com isso não se está dizendo, em absoluto que a forma luterana de reorganização da vida religiosa não tenha tido uma significação prática para o objeto de nossa pesquisa. Muito pelo contrário. É que ela, evidentemente, não pode ser derivada imediatamente da posição de Lutero e sua Igreja quanto à profissão mundana, e não é tão fácil aprendê-la como talvez o seja no caso de outras manifestações do protestantismo. (IDEM, p. 78) A questão que Weber levanta aqui é que o conceito de vocação de Lutero não é adequado para explicar o espírito do capitalismo devido ao caráter tradicionalista e monástico que predominou na interpretação luterana sobre vocação profissional. Lutero relacionava a ascese intramundana com justificação pelas obras, algo contra o qual ele veementemente se levantou em sua reforma. Dessa maneira, Weber encaminha sua pesquisa para o estudo a respeito do calvinismo e afins para, a partir daí, explicar de onde veio, efetivamente, o espírito do capitalismo. A ASCESE INTRAMUNDANA Weber dá especial destaque para o calvinismo, também chamado de puritanismo (embora no capítulo em que discorre sobre essa religião também fala sobre o pietismo, metodismo e anabatismo), porque no seio desse movimento religioso pode-se observar, com maior força, os influxos do espírito do capitalismo. A doutrina mais característica do calvinismo é a predestinação. Segundo essa crença, os salvos são eleitos na onisciência de Deus, antes da fundação do mundo, o que determina uma arbitrária separação entre salvos e perdidos por parte de Deus, sem permitir a esses perdidos o direito de redenção. A questão é que, inicialmente, nem salvos nem perdidos têm

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 175 consciência de seu estado e a obra de santificação evidenciará ou não o estado salvífico do indivíduo. Ora, em sua desumanidade patética, essa doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma a bem-aventurança eterna o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda a eternidade. Ninguém podia ajudá-lo. (IDEM, p. 95) Weber reflete sobre as consequências do calvinismo nos termos acima, indicando que nenhuma instituição humana poderia ajudar o penitente na busca de sua salvação, tampouco Deus, uma vez que o destino do indivíduo já estava traçado. Esse processo desvinculador da religião dos sacramentos salvíficos como também do conteúdo sensorial e imagético, em busca de uma racionalidade, vai desembocar no que Weber chama de desencantamento do mundo. A religião calvinista impõe uma forte ênfase na racionalidade como também na transcendência do divino em relação ao humano. Nesse sentido, o calvinismo distancia-se largamente do luteranismo, na medida em que este mantém o valor dos sacramentos no papel de auxiliar na salvação como também propõe uma religiosidade imanente, no sentido de aproximar o divino para perto, ou dentro do indivíduo através das interações emocionais no culto e na comunhão. O calvinismo, por sua vez, estabelece uma religiosidade racional, que coloca o indivíduo sozinho, consigo mesmo, na sua caminhada espiritual. Como associar essa tendência do indivíduo a se soltar interiormente dos laços mais estreitos com que o mundo o abraça à incontestável superioridade do calvinismo na organização social, à primeira vista parece um enigma. É que, por estranho que possa parecer de início, tal superioridade é simplesmente resultado daquela conotação específica que o amor ao próximo cristão deve ter assumido sob a pressão do isolamento interior do indivíduo exercida pela fé calvinista. [A princípio ela é de fundo dogmático.] O mundo está destinado a isto [e apenas a isto]: a servir à autoglorificação de Deus; o cristão [eleito] existe para isto [e apenas para isto]: para fazer crescer no mundo a glória de Deus, cumprindo, de sua parte, os mandamentos Dele. Mas Deus quer

176 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 do cristão uma obra social porque quer que a conformação social da vida se faça conforme seus mandamentos e seja endireitada da forma a corresponder a esse fim. (IDEM, pp. 98-99) Com o conceito de glorificação a Deus, Weber explica o aparente paradoxo que se estabelece entre o individualismo sustentado pela doutrina da predestinação e o nível de organização social visto no calvinismo. Na verdade, o exercício dessa sociabilidade que se traduzia na divisão social do trabalho é, de alguma forma, prenúncio para o espírito do capitalismo, sustentado por Weber. Mais do que isso outro tema emerge como decorrência da doutrina da predestinação: a possibilidade da dúvida com respeito à salvação e a necessidade de um antídoto, por assim dizer, para curar essa dúvida. De um lado, torna-se pura e simplesmente um dever considerarse eleito e repudiar toda e qualquer dúvida como tentação do diabo, pois a falta de convicção, afinal, resultaria de uma fé insuficiente de graça. A exortação do apóstolo a se segurar no chamado recebido é interpretada aqui, portanto, como dever de conquistar na luta do dia a dia a certeza subjetiva da própria eleição e justificação. Em lugar dos pecadores humildes a quem Lutero promete a graça quando em fé penitente recorrem a Deus, disciplinam-se dessa forma aqueles santos autoconfiantes com os quais nos toparemos outra vez na figura dos comerciantes puritanos da época heróica do capitalismo, rijos como aço, e em alguns exemplares do presente. (IDEM, pp.101-102) A isso se acrescenta o que está definitivamente na base do espírito capitalista, proveniente do puritanismo: trabalho incessante. E de outro lado, distingue-se o trabalho profissional sem descanso como meio mais saliente para se conseguir essa autoconfiança. Ele, e somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria certeza do estado de graça. (IDEM, p. 102) Dessa forma, restava ao indivíduo, na angústia que a pergunta salvo ou perdido? impunha, determinar a certeza de sua salvação e evidenciá-la por meio de obras que glorificassem o nome de Deus, tanto no aspecto moral quanto social. Embora a premissa calvinista fosse de que as boas obras não são

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 177 meritórias, segundo Weber, o luteranismo acusou o puritanismo disso. Pois talvez jamais haja existido forma mais intensa de valorização religiosa do que aquela produzida pelo calvinismo em seus adeptos. (IDEM, p.105) Para Weber, essa ascese calvinista foi determinante para o capitalismo. Isso porque essa compreensão da doutrina da salvação faz com que os indivíduos, não somente usufruam dos benefícios da graça imputada de Deus, como também devam permitir o desenvolvimento da graça comunicada, ou seja, a santificação sistemática em busca da perfeição contínua e linear em seu caráter. Weber compara assim o ponto de vista calvinista (predestinação) e luterano: No seio do protestantismo, as conseqüências que essa doutrina necessariamente acarretou na conformação ascética da conduta de vida dos seus primeiros adeptos constituíram a antítese [mais] fundamental da impotência moral (relativa) do luteranismo. A gratia amissibilis luterana, que a todo instante podia ser recuperada com o arrependimento e penitência não continha em si, obviamente, nenhum estímulo àquilo que aqui nos importa como produto do protestantismo ascético: uma sistemática conformação racional da vida ética em seu conjunto. (IDEM, p. 115) Weber, com essa diferenciação, quer deixar claro que onde houve predomínio da teologia calvinista, houve maior sistematização da vida prática e que essa ascese contaminou a sociedade do ponto de vista econômico. Por outro lado, o luteranismo, com sua forte ênfase na salvação pela fé, descartou o papel das obras na evidenciação da salvação o que se traduziu em uma libertinagem moral e social, segundo o ponto de vista weberiano. A ASCESE E O CAPITALISMO Nesse capítulo, Weber conclui seu estudo relacionando toda a análise teológica que faz das principais vertentes do protestantismo com o tema, de fato, de sua pesquisa: o espírito capitalista.

178 HERMENÊUTICA, VOLUME 10, N.2, 167-179 Weber ensina que a ascese protestante insurge-se contra qualquer tipo de coisa que tenda a afastar o indivíduo do foco central de sua vida: glorificar a Deus. Nesse sentido, Weber menciona a aversão dos puritanos aos esportes, especialmente quando vistos apenas no aspecto da fruição, como também dos bens culturais, entendidos como ostentação. Na verdade, o entendimento calvinista leva à crença do indivíduo ser um fiel mordomo que administra fielmente os bens que Deus lhe confiou. A ideia da obrigação do ser humano com a propriedade que lhe foi confiada, à qual se sujeita como prestimoso administrador ou mesmo como máquina de fazer dinheiro, estende-se por sobre a vida feito uma crosta de gelo. Quanto mais posses, tanto mais cresce se a disposição ascética resistir a essa prova o peso do sentimento da responsabilidade não só de conservá-la na íntegra, mas ainda de multiplicá-las para glória de Deus através do trabalho sem descanso. Mesmo a gênese desse estilo de vida remonta em algumas de suas raízes à Idade Média como aliás tantos outros elementos do espírito do capitalismo [moderno], mas foi só na ética do protestantismo ascético que ele encontrou um fundamento ético consequente. Sua significação para o desenvolvimento do capitalismo é palpável. (IDEM, p. 155) O pensamento de Weber segue para observar a dissociação ocorrida no capitalismo em relação a sua base religiosa. No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito quem sabe definitivamente? safou-se dessa crosta. O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde quando se apoia em bases mecânicas não precisa mais desse arrimo. (IDEM, p. 165) Dessa forma, Weber apresenta o desprendimento do capitalismo de sua base religiosa embrionária, sob sua perspectiva, observando que o capitalismo de seu tempo e, sobretudo o hodierno, de alguma forma apresenta-se como uma antítese dos aspectos morais da religiosidade que o originou, embora seja uma característica inerente ao puritanismo a busca incansável por mais capital.

VINÍCIUS MENDES DE OLIVEIRA - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO"... 179 CONCLUSÃO A ética protestante e o espírito do capitalismo é a obra magna de Max Weber na qual ele interpreta o fenômeno do capitalismo à luz de uma perspectiva cultural. Weber vai buscar na influência da ascese intramundana do protestantismo a explicação para a natureza de acúmulo de capital própria do capitalismo. Com base em uma profunda pesquisa histórica e teológica, o autor fundamenta sua tese, observando que, antes que o capitalismo estabelece-se de fato, seu espírito já estava ativo nos Estados Unidos. Com isso quer deixar evidente que, ao contrário do que postulou Marx, o que está na base não é o materialismo histórico, mas o espírito do capitalismo. Entretanto, de forma elegante, politicamente correta e prudente, do ponto de vista acadêmico, encerra seu ensaio observando que sua tese não é a resposta absoluta para a explicação do fenômeno do capitalismo e assume também a importância da interpretação marxista sobre o tema. No entanto, diz que nenhuma, nem outra devem ser vistas de forma absoluta ou unilateral sob pena de se desqualificarem na apresentação da verdade histórica. Ambas são igualmente possíveis. (IDEM, p. 167), diz ele. Embora não pretendendo entrar no terreno dos juízos de valor e juízos de fé (IDEM, p. 166) sua conclusão deixa transparecer uma séria advertência ao mundo capitalista, desprendido inevitavelmente de seu arrimo religioso, através de uma declaração: Então, para os últimos homens desse desenvolvimento cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: Especialistas sem espírito, gozadores sem coração: esse nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado. (IDEM, p. 166)