Há cabo-verdianos a participar na vida política portuguesa - Nuno Sarmento Morais, ex-ministro da Presidência de Portugal À margem do Fórum promovido pela Associação Mais Portugal Cabo Verde, que o trouxe ao nosso país, conversamos com o ex-ministro sobre os problemas e desafios da comunidade cabo-verdiana em Portugal. Morais Sarmento traça-nos o longo processo de integração dos imigrantes caboverdianos desde os anos 60 até à definição, no início do século XXI, "da primeira política integrada e completa de relacionamento com a imigração iniciada pelo governo de Durão Barroso". Mas, como sublinha, há um caminho longo a percorrer e que deve ser feito a dois níveis: "o Fórum, realizado na Praia, é um deles", afirmou Expresso das ilhas - Participou na semana passada num fórum aqui na Praia sobre. Qual foi o teor da sua comunicação? Nuno Morais Sarmento (NMS) - No meu tema estava muito da história de Cabo Verde. Procurei, por um lado, identificar as diferentes fases nesta relação de Cabo Verde com Portugal, nomeadamente na primeira vaga da migração dos anos 60 do século passado e a segunda vaga da migração da década de 90. Tentei marcar essa diferença nas fases e respostas do lado português e das organizações em termos de integração da comunidade imigrante nessa primeira e segunda vagas e falei um pouco sobre o papel da comunidade cabo-verdiana como embaixadores de Cabo Verde fora do país e qual o papel que podem desempenhar nesse sentido. Com as novas vagas de migração brasileira e do Leste, perdeu a comunidade cabo-verdiana o espaço que ocupava? NMS - Penso que não. Houve uma primeira vaga de migração; os cabo-verdianos são talvez a primeira comunidade imigrante num país como Portugal que é um país de imigrantes. Quando acontece essa segunda vaga, que inclui os países do Leste, o Brasil e outros a comunidade cabo-verdiana tinha a vantagem de já ter uma ligação à sociedade portuguesa, que nenhuma das outras comunidades tinha. Quando acontece essa segunda vaga de migração a comunidade cabo-verdiana já fazia parte da sociedade portuguesa, caminho que as outras estão a fazer agora. Portanto, não acho que tenha perdido espaços, embora haja mais concorrência e mais pessoas a chegar a Portugal. Mas o lugar que a comunidade cabo-verdiana já ocupava e o processo de integração por que tinha passado, dão uma vantagem muito diferente aos cabo-verdianos em Portugal. O Brasil ocupou... NMS - Algum a talvez. Os brasileiros não têm estado muito nos mesmos sectores da actividade da comunidade cabo-verdiana.
Imigração brasileira roubou algum espaço à comunidade cabo-verdiana NMS - Eles têm, por feitio e maneira de ser, uma tendência natural para tudo o que significa o relacionamento público e portanto estão muito nas actividades comerciais, seja na restauração ou noutras afins. A comunidade cabo-verdiana sempre teve outros sectores (industriais e outros) onde esteve mais presente. Por conseguinte, algum espaço terá a comunidade brasileira roubado, mas não penso que seja significativa, até porque temos de vê-la de outra maneira. Isto também significa que temos o Brasil inteiro como uma porta aberta para a comunidade cabo-verdiana. O facto de Angola estar a tornar-se uma super-potência africana confere um tratamento diferenciado entre as duas comunidades? NMS - Angola é concerteza uma super-potência africana e é uma potência regional com uma zona de influência diplomática que chega aqui a Cabo Verde, chega a São Tomé e Príncipe, que são países com os quais Angola tem uma relação privilegiada. Mas a comunidade Angolana é muito pequena em Portugal. Não tem expressão e portanto não penso que tenha ocupado de alguma forma o mesmo espaço da comunidade cabo-verdiana. Aquilo que temos de diferente com Angola é o que está a acontecer: é a primeira vez que acontece na história que um antigo país colonizado está a tomar posições empresariais e financeiras importantes na antiga potência colonizadora. É o que tem acontecido, por parte de Angola, em Portugal. Mais do que um posicionamento de pessoas e angolanos, a representatividade de Angola é um posicionamento económico e empresarial. Eu diria que são duas realidades distintas, com Angola muito presente nas actividades económica, mais do que qualquer outro país africano de língua portuguesa, mas a comunidade humana é muito pequena. Nem penso que se possa falar de estatuto diferente, porque a comunidade não tem muita expressão. É claro que Portugal tem mais interesses económicos em Angola do que em Cabo Verde NMS - A lusofonia e o compromisso que Portugal tem nos países de língua portuguesa não é um compromisso que se possa medir em termos económicos. Se assim fosse nunca teríamos estado em Timor e não estaríamos ao lado de Timor a lutar e a tentar ajudá-lo na afirmação do seu direito à autodeterminação como sucede. Portanto, Timor é a demonstração de que o critério não pode ser meramente económico. É muito mais do que isso. É o critério de uma história feita em comum, de uma ligação que nós exemplificamos na língua, nos costumes, na história, nos hábitos e em todas as áreas da vida e que nos faz muito próximos. E por isso eu acho que mais que olhar à dimensão dos países, é preciso olhar ao conjunto do espaço lusófono como um todo, como uma plataforma onde esperamos podermos circular todos: pessoas e empresas falando e partilhando a mesma língua. Quanto mais países, mesmo que pequenos melhor, porque significa que temos mais alternativas, mais comunidades diferenciadas a participar deste conjunto. Brasil, Portugal e todos os países africanos de língua oficial portuguesa, para não referir Timor, dão um espaço de umas centenas de milhões de pessoas. Eu acho que temos que olhar para este espaço, como sendo uma espécie de pátria comum. Por isso, não é Angola que vale mais ou Cabo Verde que vale menos: é um espaço comum que nessa medida tem o mesmo valor em qualquer desses territórios. A atribuição do prémio Camões a um pequeno país como Cabo Verde confirma o que acaba de dizer. NMS - Sim, significa que a língua é de facto o grande elo de ligação entre nós e que a língua, nas suas várias expressões, na escrita, como na música ou na expressão teatral pode ser e deve ser um factor de afirmação deste espaço lusófono, dentro do espaço e no resto do mundo. Se nós repararmos, países grandes, como os Estados Unidos ou a França, ou a Inglaterra ou a Espanha, utilizam a música, o seu cinema e a sua literatura como armas diplomáticas na afirmação das suas culturas. Nós temos
que fazer isso também com a cultura dos países da lusofonia e desta forma, valorizando o que de mais significativo acontece em cada um destes espaços lusófonos. A escolha da Cidade Velha como uma das 7 maravilhas de origem portuguesa... NMS - Também, mas Cabo Verde tem um outro valor seu, que é muito importante na minha opinião, que é a forma como o povo de Cabo Verde soube fazer o processo de transição de território colonizado para país independente e depois disso para uma democracia estabilizada, que é um exemplo em África, de convivência democrática, com as deficiências e limitações que todos têm. Mas, esse valor é uma experiência que Cabo Verde tem que trazer, assim como os outros países têm que trazer a esta comunidade lusófona, aquilo que têm de mais-valia. E uma das mais valias de Cabo Verde é seguramente este espaço de paz e democracia que conseguiu construir. Uma das propostas de revisão constitucional, apresentadas ao parlamento cabo-verdiano, diz respeito à oficialização do crioulo. Esta oficialização poderá alterar as relações entre os dois países? NMS - Alterar as relações entre os dois países não, poderá ser um elemento de algum afastamento entre os povos, mas não entre os países. Talvez. Porque se falar em crioulo comigo vai ser difícil eu responder-lhe em português. Eu acho que devem e podem conviver as línguas faladas nos diferentes espaços, mas a manutenção do português como elo de ligação é um elemento muito importante. Se não trabalharmos todos nisso, por muito que os governos e os países firmem contratos, acordos ou comunidades, as pessoas não conseguem comunicar. E se as pessoas não conseguirem comunicar-se é muito difícil construir um espaço comum. Historicamente quais os partidos políticos portugueses que mais fizeram pela comunidade cabo-verdiana? NMS - Eu acho que quem mais fez pela comunidade cabo-verdiana durante muitas décadas, durante todo o período da primeira vaga se quisermos, não foram os partidos, porque não existiam; não o Estado porque não havia a consciência da necessidade de uma política de integração. Estávamos a aprender todos em conjunto, portanto não houve uma verdadeira política de acolhimento e de integração da primeira vaga de imigração que Portugal recebe, como não houve em França nem em Espanha e, hoje em dia, os países europeus pagam o preço disso por não terem aprendido a tempo, que era importante integrar esses comunidades e terem deixado que elas de alguma forma ficarem mais isoladas no tecido social. Portanto, durante todo esse tempo quem ajudou a comunidade cabo-verdiana foram os portugueses: foi a Igreja, foram as ONGs, foram as autarquias locais e foram as associações da sociedade civil que apoiaram muito a comunidade cabo-verdiana. Fizemos um processo em que todos participamos, mas é justo dizer, porque corresponde à verdade, que foi um período de grande afirmação e de grande melhoria na relação com a comunidade cabo-verdiana como com todas as comunidades imigrantes, o do governo de Durão Barroso. Penso que podemos dizer que pela primeira vez nesse governo, Portugal definiu uma política integrada e completa de relacionamento com a imigração. Uma política pública de imigração em Portugal, penso eu, só existe a partir desse governo. Tivemos a responsabilidade e eu tive essa tutela e foi um trabalho que gostei muito de realizar. Conseguimos o reagrupamento familiar, o acesso aos cuidados de saúde para os não legais, o acesso à educação respeitando as identidades culturais, etc. Penso que o maior avanço que se conseguiu foi nesse período, mas quero sublimar também que o trabalho que está a ser feito por este governo tem sido um trabalho de continuação e tão positivo como aquele que nós fizemos. Mau grado esses avanços, os cabo-verdianos continuam a viver em bairros degradados como Cova da Moura. O que falta fazer?
NMS - Nós temos bairros mais pobres em Portugal, como os temos na cidade da Praia. Foi muito importante o esforço que fizemos para que esses bairros não se transformassem em guetos de comunidades. Uma coisa, é ter um bairro de pessoas de menos possibilidades, sejam portugueses, cabo-verdianos ou ucranianos, outra coisa, é que seja um gueto, isolado de uma comunidade. Houve um trabalho que hoje em dia envolve mais de 30 mil jovens não portugueses. Foi um trabalho de procurar, precisamente nessas comunidades, trabalhar a integração das pessoas, mais do que a integração do espaço. Por isso, é que digo que a situação nesses bairros é hoje muito menos tensa e muito menos conflituante, mas é evidente que há ainda um trabalho a fazer. Já foram erradicados muitos bairros desses em Lisboa. Alguns deles ainda subsistem, e porventura irão subsistir sempre, enquanto houverem pessoas que vivem mal. O que não podemos aceitar é que não sejam algumas pessoas: ou só os portugueses, ou só os cabo-verdianos, porque nessa altura estaríamos a tratar de formar diferente algumas pessoas, e isto não é aceitável. Por isso, temos que acabar com esses bairros. É um trabalho para a vida, nunca acabarão. Ma o que temos que fazer, como já disse, é um trabalho de integração, que garanta que esses bairros não se transformem em guetos de isolamento de comunidades. A segunda geração de cabo-verdianos é a mais problemática. Em que reside este facto? NMS - A segunda geração de imigrantes, ou seja, os filhos daqueles que chegaram na década de 60, tiveram uma reacção, a mesma que aconteceu em Paris e que sentimos em Lisboa há uns meses. Não é a reacção daqueles que chegaram agora, é a reacção dos filhos que chegaram na década de 60. E por uma razão: eles reagem agora muitas vezes negativamente e uma comunidade que reagiu negativamente com eles: por ignorância, mas reagiu negativamente. É um pouco o refluxo do que agora acontece; por isso sublinhei a importância muito de se trabalhar agora com as camadas mais jovens das populações não nacionais e da comunidade cabo-verdiana. Porque o risco de tensão, de conflito social, de não integração está, se não soubermos, assumir a responsabilidade dos erros cometidos, dizer-lhes também que não é cometendo erros agora que se vai corrigir essa parte do passado. Houve candidatura de cabo-verdianos às eleições autárquicas que não passaram mesmo disso. O que faltou? NMS - Eu acho que há um caminho longo a percorrer. É preciso fazer um trabalho a dois níveis: por um lado através de iniciativas como esta que amanhã acontece (Fórum Mais Portugal -Cabo Verde, ver pág... ). É uma iniciativa da sociedade civil, é uma iniciativa de cabo-verdianos e de portugueses que se juntaram e que envolve socialistas, sociais-democratas, que envolve pessoas de diferentes orientações políticas em Portugal. É uma iniciativa que, por isso, procura privilegiar aquilo que nos une, mais do que aquilo que nos separa. Eu queria sublinhar a importância de iniciativas destas que dão muito trabalho, mas que significam muita vontade de algumas pessoas. Eu sublinhava aqui o trabalho que em Cabo Verde foi feito para esta iniciativa, pelo Dr. Carlos Veiga, que eu acho que continua a ser uma figura de referência no trabalho incansável de aproximação de comunidades e pelo Dr. Nuno Manalvo pelo lado português. Este é um nível a que temos que trabalhar. Um outro nível tem que ser os cabo-verdianos, eles próprios a trabalhar, que é este: através das autarquias, através das associações e das organizações locais começarem a participar e tomar posição na vida da comunidade. Quando diz que nas autarquias concorreram muitos cabo-verdianos e não deu grande resultado, não deu grandes resultados a nível dos presidentes. Mas há cabo-verdianos, envolvidos em muitas assembleias de freguesia, em várias assembleias municipais. Eu acho que é este o processo, é por aí que deve começar. Portanto, não acho que tenha sido um esforço em vão e é preciso que os cabo-verdianos continuem a assumir os seus direitos e a afirmar as suas posições nas comunidades, designadamente por essa via.
Como se sente em Cabo Verde, apesar da pandemia da dengue? NMS - Quanto à pandemia a gente tem lá outra. Por isso, é para a troca. Uma pandemia lá, outra cá, não tem problema. Sinto-me como das outras vezes que vim a Cabo Verde, como sinto quando chego a Moçambique, a São Tomé, a Angola que é uma sensação de estar em casa. É a tal sensação que a história, o tempo de convivência entre estes povos leva a que nos genes de cada um de nós esteja uma identificação natural. Eu acho que relacionamo-nos entre nós como não nos relacionamos com outros povos e outras comunidades, porque temos esta memória do encontro. Isso faz-nos sentir em casa. 22-11-2009, 11:53:36 AM, Expresso das Ilhas