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Transcrição:

Sessão de Atribuição do prémio Miguel Portas 2016 30 de Abril de 2016, Auditório 3, Fundação Calouste Gulbenkian Intervenção de José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1 na Sessão Meus amigos, boa tarde... Antes de vos falar do que me foi sugerido, da crise dos refugiados, permitam-me algumas palavras, apenas porque acho que sim. Não era amigo de Miguel Portas. Mantínhamos aquela saudável distância entre o jornalista e o político, mas não lhe perdia o rumo das palavras. Quando o Miguel falava ou escrevia, sentíamos que não havia truque. As palavras do Miguel não precisavam de interpretação nem de explicações adicionais. Também por isso não senti a necessidade de ponderar a beleza das palavras. Apenas escolhi palavras sinceras. Tenho imensa saudade de uma noite num hotel em Jerusalém Oriental, já com o bar fechado, em que continuámos, noite fora, a encher o cinzeiro, a bebericar o nosso whisky e a debater os problemas do mundo Lembro-me também de um dia numa Beirute parcialmente destruída pelos bombardeamentos israelitas lembro-me de um sorriso que surgiu entre a multidão durante uma manifestação contra a guerra e lembro-me de ter pensado: mas o que é que ele anda aqui a fazer? Guardo com carinho a dedicatória colocada no Labirinto: só quem anda pelas guerras sabe porque é que elas se devem evitar. E tenho a certeza que mais Périplos houvesse e não teríamos hoje tanta gente espantada e assustada com a vaga de refugiados que bate à porta da Europa. Porque esta é a Europa que não sabe olhar para o Mediterrâneo. Tenho a certeza que uma União Europeia que aproveitasse metade das ideias generosas do Miguel seria uma União Europeia muito mais apta a responder aos problemas que hoje se colocam 1

Tenho a certeza que seria uma União Europeia mais nossa. Seria uma União Europeia mais solidária, mais justa, mais generosa e acima de tudo mais humana. Uma União Europeia errada, sobre a qual nunca ninguém nos perguntou alguma coisa, só pode dar respostas erradas. A actual crise de refugiados crise de refugiados dizemos nós, porque para os refugiados é uma crise de sobrevivência a actual crise de refugiados é uma crise que impõe que saibamos tratar o outro com dignidade, porque se o não fizermos é a nossa própria dignidade que está em causa. Ser refugiado é pegar nos filhos pela mão, é arrumar a trouxa, e começar a fazer caminho. É fugir da guerra e de um sítio onde a morte é quase certa. Quem nunca ouviu uma bomba a cair por perto não consegue imaginar. Quem nunca ouviu o baque surdo da explosão de um carro carregado de explosivos não consegue imaginar. Quem nunca sentiu o sopro da deslocação de ar não consegue imaginar. Quem nunca ouviu o assobio de uma bala não consegue imaginar. Quem nunca viu corpos estropiados, não consegue imaginar. Quem nunca viu crianças mortas a serem retiradas da cave de um prédio bombardeado, não consegue imaginar. Muitos dos refugiados que nos batem à porta já viram grande parte de tudo isto. Há poucos dias, a Rainha da Jordânia, de origem palestiniana, alguém que não deve ter falta de conhecimento sobre o drama dos refugiados, visitou o campo de Kara Tepe, em Lesbos, e foi muito directa na mensagem: ninguém consegue entender a magnitude desta crise até estar frente a frente com os refugiados. Por esta hora, em mais esta crise, talvez já tivesse encontrado o Miguel algures, a dar a cara e a estar frente a frente com aqueles que fogem da guerra e das consequências da guerra Talvez em Gevgelija Talvez na ilha de Lesbos Estar na fronteira da Grécia com a República da Macedónia é ver passar gente de todas as idades. Gente de ar fatigado e com um olhar que se estende até lá à frente à procura de um destino. Gente que arrasta chinelos e sapatos deformados pela caminhada gente que leva gente em cadeira de rodas e por vezes às cavalitas porque ninguém fica para trás gente que se calhar tem alguma coisa para nos ensinar quando se fala de família Estar na fronteira de Gevgelija é ver homens que chegam tão desorientados que nem sabem a direcção de Meca. E perguntam não perguntam por Meca, perguntam por Saudi, Saudi Arábia Saudita. Estar na fronteira é ver a polícia, muitas vezes de cassetete ligeiro 2

Na Grécia, Idomeni é o campo mais próximo de uma linha de esperança chamada República da Macedónia Em Atenas, no porto do Pireu, há centenas de pessoas a dormirem no chão dentro dos terminais dos ferrys onde a segurança do porto tenta evitar a captação de imagens Na ilha de Lesbos, há um grupo de quase 200 homens a viverem à beira mar em pequenas tendas sem apoio de ninguém apenas os Médicos Sem Fronteiras por lá passam de vez em quando Ainda em Lesbos, o campo de Mória transformou-se numa prisão de onde os refugiados não podem sair. Estão lá cerca de 3 mil. Problema maior: os refugiados não tinham apresentado pedido de asilo na Grécia com a esperança de que pudessem passar para outro país para então aí fazerem o respectivo pedido. Com a entrada em vigor do acordo entre a União Europeia e a Turquia, todos estão agora a tentar pedir asilo o problema é que o acordo estabelece uma distinção entre os que chegaram antes e depois de 28 de Março, a data da entrada em vigor desse acordo. Algumas ONG s estão a denunciar o que tem todo o aspecto de uma aldrabice que brinca com a vida das pessoas: os que chegaram antes da entrada em vigor do acordo, porque não pediram asilo e porque não há registo da data da chegada, estão a ser considerados como se tivessem chegado depois de 28 de Março. É meio caminho andado para a deportação para a Turquia. Com todos os defeitos que o acordo tem, pensar que ele resolve alguma coisa é pura ingenuidade. A guerra na Síria está com intensidade redobrada. No Iraque já se notam fortes sinais de outras guerras que vão resultar da guerra actual. Para além disso, quem ganha dinheiro com o desespero dos refugiados rapidamente encontra outros caminhos para os fazer chegar à Europa. Logo depois da visita do Papa Francisco a Lesbos, centenas de refugiados morreram no mediterrâneo quando tentavam chegar a Itália Ontem surgiram notícias de mais um naufrágio. A Europa faz que não vê enquanto morrerem no mar não são problema para a Europa. Há muros em Ceuta, em Melilla, em Gaza e na Cisjordânia, no Egipto, na Tunísia e na Líbia, em Calais, na Hungria, na Sérvia, na Bulgária A Áustria quer criar uma barreira na fronteira com a Itália e já aprovou alterações à lei de asilo 3

A União Europeia demorou a tomar decisões quando os refugiados nos bateram à porta em grande número. Ao contrário, Bruxelas fervilhou de reuniões quando Grécia e Portugal negociavam os chamados programas de resgate. Garanto que até as redacções estavam baralhadas: reunia o Eurogrupo; reunia o Ecofin; reunia a Comissão; reunia o Conselho Europeu quando não havia reuniões havia teleconferências. O problema era o dinheiro. Quando se tratou de refugiados não houve qualquer pressa. A Europa tarda em perceber. Há muito tempo que há refugiados. O Miguel conhecia bem os campos de refugiados palestinianos no Líbano. Talvez uns 400 mil numa população que não chega aos 5 milhões de habitantes num território que é mais ou menos o dobro do Algarve. Neste momento, pelo menos 25% da população libanesa são refugiados. A Faixa de Gaza tem quase um milhão de refugiados numa população de um milhão e 600 mil pessoas Em África as sucessivas guerras não param de provocar refugiados. As pessoas fogem do Sudão, da Eritreia, do Mali mas África é tão longe No Iraque depois da invasão em 2003 foi o que sabemos. A Europa, o chamado ocidente, encolheu os ombros. Os refugiados estavam longe. A Europa continuava a ter petróleo, minérios raros, madeiras e, quando necessário, mão-de-obra barata. Os ditadores de serviço no terreno eram sinónimo de estabilidade. A palavra sagrada para os mercados. Estamos a sofrer o efeito boomerang podemos esconder a cabeça na areia e recusar ver o que está à nossa frente, mas apenas vamos prolongar o erro e agravar as consequências. A Europa enfrenta um crescendo das forças políticas populistas que têm agora no Islão e nos refugiados a nova referência para cativar simpatias A ignorância e o desconhecimento da história ajudam estas forças políticas a crescerem. A nossa vida é uma viagem. Escreveu o Miguel que ler em viagem sobre os lugares da própria viagem é uma experiência que recomendo vivamente. Esta nossa Europa, não aprendeu nada com a própria história e não leu nada sobre a viagem que está a fazer. Basta ver o que aconteceu com a Primavera Árabe. Escreveu ainda o Miguel: Quem deseje compreender este mundo o do Mediterrâneo deve saber que não foram apenas os deuses que se lançaram ao mar e que a mesma ideia ocorreu às suas criaturas. Sem se fazerem rogadas, fizeram meninos e meninas em portos e enseadas e viajaram sempre para longe, cada vez mais para longe, por terra e por mar. Os povos do grande lago são 4

mestiços sem excepção. Não acreditem quando vos disserem que houve quem preservasse o sangue a apurasse a raça ( ). Palavras certas as de Miguel Portas. Mas o Mediterrâneo é hoje também o lugar onde o Tempo se fez morte. E não há explicação possível para tanta morte e para tantas barreiras que travam a vida das pessoas. É muito difícil conseguir explicar que num tempo de globalização, o capital e as mercadorias possam circular quase sem barreiras e as pessoas sejam obrigadas a ficar em lugares de morte. O Prémio Miguel Portas transporta um sentir e um olhar o mundo que são sinónimos de Liberdade. Os homens livres são incómodos e são, naturalmente, rebeldes. Vivem uma inquietação permanente. A Liberdade pratica-se. Por vezes escreve-se com raiva, mas no Miguel até essa raiva conseguia ser delicada. Quando alguém como Miguel Portas nos deixa uma tão grande herança de Liberdade, só nos podemos sentir agradecidos. Lisboa, 30 de Abril de 2016 josé manuel rosendo 5