ENTRE O DIREITO E A MEDICINA: FATORES DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDICINA LEGAL



Documentos relacionados
RELACIONAMENTO JURÍDICO DO ESTADO BRASILEIRO COM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS, NO QUE CONCERNE À EDUCAÇÃO

INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO

RESSEGURO: OS NOVOS RESSEGURADORES LEGAIS

Você conhece a Faculdade Sagrada Família? Quais os cursos que a FASF irá ofertar?

PEDIDOS DE AUTORIZAÇÃO PARA RETIRADA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACOLHIDAS DAS ENTIDADES ORIENTAÇÕES TÉCNICAS DO CAOPCAE/PR

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

SIMULAÇÃO DE GESTÃO EMPRESARIAL

O impacto do INCLUSP no ingresso de estudantes da escola pública na USP

UM RETRATO DAS MUITAS DIFICULDADES DO COTIDIANO DOS EDUCADORES

O IMPÉRIO E AS PRIMEIRAS TENTATIVAS DE ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL - ( ) Maria Isabel Moura Nascimento

Manual_Laboratórios_Nutrição

PROJETO DE REDUÇÃO DOS RESÍDUOS INFECTANTES NAS UTI S DO HOSPITAL ESTADUAL DE DIADEMA

A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS DE MATEMÁTICA E FÍSICA NO ENEM: PERCEPÇÃO DOS ALUNOS DO CURSO PRÉ- UNIVERSITÁRIO DA UFPB LITORAL NORTE

INFORMAÇÃO PARA A PREVENÇÃO

SEDUC SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO ESCOLA ESTADUAL DOMINGOS BRIANTE TÂNIA REGINA CAMPOS DA CONCEIÇÃO

Shopping Iguatemi Campinas Reciclagem

DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS COMBINADAS

Tendo isso em conta, o Bruno nunca esqueceu que essa era a vontade do meu pai e por isso também queria a nossa participação neste projecto.

ESPORTE NÃO É SÓ PARA ALGUNS, É PARA TODOS! Esporte seguro e inclusivo. Nós queremos! Nós podemos!

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Lógicas de Supervisão Pedagógica em Contexto de Avaliação de Desempenho Docente ENTREVISTA - Professor Avaliado - E 2

Curso de Especialização em GESTÃO DE CIDADES E PLANEJAMENTO URBANO

TÍTULO: ALUNOS DE MEDICINA CAPACITAM AGENTES COMUNITÁRIOS NO OBAS CATEGORIA: CONCLUÍDO ÁREA: CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E SAÚDE

Direito Civil (Parte Geral e Obrigações) Direito Civil (Teoria Geral dos Contratos) Direito Civil (Contratos em Espécie)

5 Considerações finais

Proposta de Alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo

CÓDIGO CRÉDITOS PERÍODO PRÉ-REQUISITO TURMA ANO INTRODUÇÃO

Resgate histórico do processo de construção da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA)

ACOMPANHAMENTO GERENCIAL SANKHYA

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES TRABALHOS DA COMISSÃO

UMA PESQUISA SOBRE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL NO IFC-CÂMPUS CAMBORIÚ

Regulamento dos Cursos da Diretoria de Educação Continuada

Título do Case: Desafio de obter a confiança na EJ: Análise de Custos para Grande Empresa. Categoria: Projeto Externo

ENTREVISTA Coordenador do MBA do Norte quer. multiplicar parcerias internacionais

Lógicas de Supervisão Pedagógica em Contexto de Avaliação de Desempenho Docente. ENTREVISTA - Professor Avaliado - E 5

COMO SE PREPARA UMA REPORTAGEM i DICAS PARA PREPARAR UMA REPORTAGEM

Curso de Especialização em EDUCAÇÃO DO CAMPO

DECRETO nº de

DISCURSO SOBRE LEVANTAMENTO DA PASTORAL DO MIGRANTE FEITO NO ESTADO DO AMAZONAS REVELANDO QUE OS MIGRANTES PROCURAM O ESTADO DO AMAZONAS EM BUSCA DE

DO USO DO CELULAR DURANTE HORÁRIO DE TRABALHO

Validade, Vigência, Eficácia e Vigor. 38. Validade, vigência, eficácia, vigor

Curso de Especialização em GESTÃO ESCOLAR INTEGRADA E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

O ENSINO FUNDAMENTAL DE 9 ANOS: CONTRIBUIÇÕES PARA UM DEBATE

MARKETING DE RELACIONAMENTO UMA FERRAMENTA PARA AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR: ESTUDO SOBRE PORTAL INSTITUCIONAL

Relatório de Atividades do Trabalho Social Residencial Recanto dos Pássaros Limeira/SP

Análise e Desenvolvimento de Sistemas ADS Programação Orientada a Obejeto POO 3º Semestre AULA 03 - INTRODUÇÃO À PROGRAMAÇÃO ORIENTADA A OBJETO (POO)

Curso de Especialização em POLÍTICAS PÚBLICAS, GESTÃO E SERVIÇOS SOCIAIS

Ministério da Educação Secretaria de Educação Superior Diretoria de Políticas e Programas de Graduação. Sistema de Seleção Unificada - SISU

PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSA DE INICIAÇÃO À DOCÊNCIA PIBID RELATÓRIO DE ATIVIDADES DO ALUNO BOLSISTA SUBPROJETO DE Semestre de 2011

Instrumentos Econômicos: Tributos Ambientais.

Relatório de Autoavaliação dos Planos de Ação

Faculdade de Direito Ipatinga Núcleo de Investigação Científica e Extensão NICE Coordenadoria de Extensão. Identificação da Ação Proposta

ABCEducatio entrevista Sílvio Bock

O que são Direitos Humanos?

introdução Trecho final da Carta da Terra 1. O projeto contou com a colaboração da Rede Nossa São Paulo e Instituto de Fomento à Tecnologia do

Coordenação de Pós-Graduação e Extensão. Legislação sobre cursos de Pós-graduação Lato Sensu e Credenciamento da FACEC

FATEC Cruzeiro José da Silva. Ferramenta CRM como estratégia de negócios

Profissionais de Alta Performance

AFETA A SAÚDE DAS PESSOAS

GASTAR MAIS COM A LOGÍSTICA PODE SIGNIFICAR, TAMBÉM, AUMENTO DE LUCRO

AULA 04 - TABELA DE TEMPORALIDADE

Procriação Medicamente Assistida: Presente e Futuro Questões emergentes nos contextos científico, ético, social e legal

10/04/2015 regeral_133_146

COMISSÃO PRÓPRIA DE AVALIAÇÃO DA FACULDADE ARAGUAIA

Instrumento para revisão do Projeto Político Pedagógico

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO - IED AULAS ABRIL E MAIO

O novo regime jurídico de habilitação para a docência: Uma crítica

medida. nova íntegra 1. O com remuneradas terem Isso é bom

Curso de Especialização em ENSINO DE QUIMICA

SUMÁRIO 1. AULA 6 ENDEREÇAMENTO IP:... 2

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA AD NOS PROGRAMAS DE PÓS- GRADUAÇÃO DA PUC/RS E DA UFRGS

A SRA. MARIA HELENA BARROS DE OLIVEIRA (REPRESENTANTE DA. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ FIOCRUZ) Bom-dia. Quero saudar a

Curso de Especialização em EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

REGULAMENTO CURSO DESCENTRALIZADO

Empresa como Sistema e seus Subsistemas. Professora Cintia Caetano

2- Está prevista formação para os avaliadores externos?

Ajuda ao SciEn-Produção O Artigo Científico da Pesquisa Experimental

EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA E AS NOVAS ORIENTAÇÕES PARA O ENSINO MÉDIO

Serviços de Saúde do Trabalho

Disciplina Corpo Humano e Saúde: Uma Visão Integrada - Módulo 3

Após o término da Segunda Guerra Mundial foram trabalhar no SíNo Quinta das Amoreiras, de propriedade de Augusto Camossa Saldanha, aqui entre Miguel

AVALIAÇÃO DE DOCUMENTOS E TABELA DE TEMPORALIDADE

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES COMISSÃO DE POLÍTICA GERAL INTRODUÇÃO

Unidade 3: A Teoria da Ação Social de Max Weber. Professor Igor Assaf Mendes Sociologia Geral - Psicologia

PERGUNTAS MAIS FREQÜENTES FEITAS PELO ALUNO. 1. O que são as Atividades Complementares de Ensino do NED-ED?

WALDILÉIA DO SOCORRO CARDOSO PEREIRA

CUIDAR, EDUCAR E BRINCAR: REFLETINDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador BA, 7 a 9 de Julho de 2010

Agenda Estratégica Síntese das discussões ocorridas no âmbito da Câmara Técnica de Ensino e Informação

A QUESTÃO DO CONHECIMENTO NA MODERNIDADE

Copos e trava-línguas: materiais sonoros para a composição na aula de música

ATA DE REUNIÃO ORDINÁRIA DO CONSELHO DELIBERATIVO DA ASTCERJ, REALIZADA EM 27/04/2015.

AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL LEVANTAMENTO DAS MEDIDAS REALIZADAS

Regulamento da Monografia do Curso de Graduação em Direito

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

Manual de Pedido de Matrícula em Disciplinas pelo Q-Acadêmico WEB

Rio de Janeiro, 5 de junho de 2008

Ministério Público Federal PROMOÇÃO

Prefeitura Municipal de São Luís Manual de uso dos serviços da SEMFAZ. Prefeitura Municipal de São Luís Manual de uso dos serviços da SEMFAZ

Em primeiro lugar, gostaria, naturalmente, de agradecer a todos, que se disponibilizaram, para estar presentes nesta cerimónia.

Transcrição:

ENTRE O DIREITO E A MEDICINA: FATORES DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDICINA LEGAL ROBINSON HENRIQUES ALVES MARCIA HELENA MENDES FERRAZ Este trabalho busca compreender a institucionalização da medicina legal como disciplina do ensino superior no Brasil, num período em que, em outras partes, já estava plenamente estabelecida. Tal busca será efetuada utilizando-se, preponderantemente, dos diplomas legais vigentes no Brasil à época dos acontecimentos. Parte, ainda, da premissa que para o reconhecimento da institucionalização de uma área de conhecimento, precisamos de quatro componentes: ensino, pesquisa, divulgação e aplicação do conhecimento (ALFONSO-GOLDFARB; FERRAZ, 2002: 3-14). Nesse sentido, abordará aspectos da criação e modificações não só dos cursos de direito, mas também de medicina, de forma a compor um quadro que permita vislumbrar, na complexidade do debate não exclusivamente técnico, os fatores determinantes dessa institucionalização. Faz-se, entretanto, desde logo, digressão acerca do ensino da Medicina Legal nas escolas de medicina criadas antes mesmo de o Império ser estabelecido. Após a chegada da família real ao Brasil em 1808, com a transferência da Corte portuguesa, D. João, regente do reino, tomou diversas medidas, sendo uma de suas primeiras motivada pelo cirurgião-mór do reino, Dr. José Corrêa Picanço, qual seja, a criação da Escola de Cirurgia da Bahia, através da ordem régia de 18 de fevereiro de 1808, seguida pela Escola do Rio de Janeiro em 02 de abril do mesmo ano (MELLO SOARES, 1863: 405). Na Bahia, em decorrência das necessidades da época,eram ensinadas a cirurgia, a anatomia e a arte obstétrica, e, por conseguinte, seus estudantes podiam arvorar tão somente o título de Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Mestre em Direito, Doutorando em História da Ciência pela PUC-SP. Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência e Cesima - PUC-SP, Doutora em História da Ciência.

2 cirurgião ou de outros, uma vez que, para a obtenção do grau de doutor, deveriam concluir seus estudos na Universidade de Coimbra. 1 A cadeira de medicina legal, contudo, foi introduzida muito mais tarde, vez que criada pela Carta de Lei de 03 de outubro de 1832 que reorganizou as Escolas de Cirurgia do Rio de Janeiro e da Bahia, agora denominadas Escolas ou Faculdades de Medicina. A medicina legal era indispensável para que aos cirurgiões egressos da Faculdade de Medicina da Bahia pudesse ser conferido o grau de doutor. Sua instauração, entretanto, teve de esperar a nomeação pelo governo geral do Dr. João Francisco de Almeida, em 1834 (MELLO SOARES, 1863: 415-418; 430-432). Verifica-se, então, que a medicina legal inicia seu percurso, no Brasil, como uma cadeira nas Escolas de Medicina, sendo que, nessa época, os Cursos Jurídicos acabavam de ser lançados em Olinda e em São Paulo. Na busca das raízes da instalação dos Cursos Jurídicos do Brasil, pode-se verificar essa preocupação já está presente imediatamente após a Proclamação da Independência por D. Pedro I. Uma consulta aos Anais da Assembleia Constituinte de 1823 demonstrou que já naquela época havia a preocupação com a criação de um curso jurídico no Brasil, com o intuito de demarcar diferenças com as instituições jurídicas da antiga metrópole, onde, até então os brasileiros, em grande número, obtinham bacharelado. Assim, em 14 de junho do mesmo ano, o deputado Fernandes Pinheiro (BRASIL, 1877: 63), em seu discurso à Assembleia, assevera que As disposições e efficacia desta assembléa sobre o importantíssimo ramo da instrucção publica, de que essa base solida de um governo constitucional ha de ser lançada no nosso codigo sagrado de uma maneira digna das luzes do tempo, e da sabedoria dos seus colaboradores. (...) a mocidade á quem um nobre estimulo levou á universidade de Coimbra, geme alli debaixo dos mais duros tratamentos e oppressão, não se decidindo apezar de tudo a interromper, e a abandonar sua carreira, já incertos de como será semelhante conducta avaliada por seus pais, já desanimados por não haver ainda no Brazil institutos, onde prossigão e rematem seus encetados estudos. Propõe, logo adiante (Idem, Ibidem) que no imperio do Brazil se crêe quanto antes uma universidade pelo menos, para assento da qual parece dever ser preferida a cidade de São Paulo, pelas vantagens naturaes, e razões de conveniência geral. 1 Para uma leitura mais pormenorizada: Ferraz, As ciências em Portugal e no Brasil, 191-211.

3 Entretanto, os Anaisda aludida Assembleia demonstram que essa proposta que sediava o Curso Jurídico na cidade de São Paulo não obteve aceitação unânime junto aos parlamentares, que traziam ideias e opiniões as mais variadas.as divergências se relacionavam a aspectos tais como a distância do litoral, ou, ainda a língua falada na Província de São Paulo. Veja-se a visão do deputado Silva Barbosa exposta na sessão de 18 de outubro de 1823 (BRASIL, 1877c, 139): Não tem razão a censura que se me fez, de querer monopolizar tudo para a côrte. Longe de mim, não só o espírito de monopólio, mas também o espírito de partido, e o espírito de localidade, que não distingue o patriotismo puro do egoísmo provincial. (...) Póde ser conforme á boa razão, que sejão obrigados a passar á hórrida serra do Cubatão, para se irem formar na requerida universidade de São Paulo? (...) Será decente, e coerente, esta língua. (...) Todos vêm que o Rio de Janeiro é a mais populosa cidade do Brazil. Os seus habitantes têm sido os mais distinctos na causa do Brazil, e estão na posse dos estabelecimentos litterarios, e na justa expectativa de sua conservação, e da creação de universidade em seu seio. Uma parte significativa do debate relacionava-se à escolha dos locais onde deveriam se instalar os novos cursos, sendo indicadas as províncias da Bahia, de Minas Gerais, da Paraiba, dentre outras. Dessa aparente simples questão, surgiram divergências defendidas com inúmeros argumentos, contra e a favor de cada uma das cidades. Nesse contexto, o deputado Carvalho e Mello, na sessão de 27 de agosto, defendia que o Curso Jurídico fosse estabelecido junto à Corte do Rio de Janeiro, trazendo duas razões, a saber (BRASIL, 1877b: 166): a primeira é a de que prosperarão muito melhor aqui os estudos pela presença do governo, cuja inspecção muito póde aproveitar, para que um estabelecimento novo siga regularmente o seu andamento, ministrando os socorros necessários, e levando com mão regular os mestres para que não afrouxem no cuidado de dirigir os seus discípulos. Mais copia de livros aparece nesta côrte pela abundancia do mercado; mais pureza há na linguagem; mais polidas são as maneiras dos habitantes, o que tudo influe para o progresso de uma mais civilisadainstrucção. A segunda é que (...) faltava para completar uma universidade o curso jurídico. Todavia, o debate continuou nessa mesma sessão do dia 27, uma vez que o deputado Fernandes Pinheiro asseverou a favor da escolha da cidade de São Paulo para receber o Curso Jurídico, aprovando o parecer apresentado à Assembleia nos seguintes termos (BRASIL, 1877b: 167): Notou-se de impropriedade o assento das duas universidades: quanto ao da cidade de S. Paulo (pois que com minha idéa concordou a illustrecommissão) não me allucinou de certo o natural pendor para a capital de uma provincia,na qual me honro de haver tido o berço; considerei principalmente a salubridade e amenidade do seu clima, sua feliz posição, a abundancia e barateza de todas as precisões e commodos da vida: o Tietê vale bem o Mondego do outro hemispherio.

4 Nos debates diante da assembleia, havia, ainda muitos outros tipos de argumentação, manifestando-se uns pela necessidade de seu afastamento da sede do Império e de suas distrações e autoridade, e outros pelo pensamento oposto, a presença de distrações e autoridade eram compensadas por outros benefícios, como a presença dos Tribunais Superiores. Após todas essas discussões, a Assembleia Constituinte deliberou em 4 de novembro de 1823 que Cursos Jurídicos seriam instalados nas cidades de Olinda e de São Paulo (BRASIL, 1877c: 237), porém, o projeto não teve seguimento em decorrência de D. Pedro I ter determinado a dissolução da Assembleia Constituinte e nomeado uma comissão para a elaboração de uma Constituição mais próxima dos anseios do Imperador. De fato, no tocante aos estudos superiores, a Constituição outorgada em 1824 trazia em seu artigo 179, XXXIII que Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes constituíam uma garantia dos cidadãos (BRASIL, 1886: 32-35), sem indicar, expressamente, que deveriam ser criados Cursos Jurídicos. O que não significa que os defensores da criação dos cursos jurídicos não continuassem a buscar uma forma de instalá-los no país, ai incluído o Imperador. Lastreado no aludido art. 179, XXXIII da Constituição imperial e em consequência da necessidade que tinha a nova ordem política e social de os brasileiros pudessem prosseguir seus estudos no Brasil, o Imperador, por meio do decreto de 9 de janeiro de 1825, criou provisoriamente um Curso Jurídico no Rio de Janeiro (BRASIL, 1885: 4), que, entretanto, não chegou a ser instalado. A existência de cursos jurídicos no Brasil só se daria um tempo mais tarde. Em 1827, foram criados dois cursos jurídicos, um em Olinda, Pernambuco e outro na capital de São Paulo. A escolha de São Paulo como sede de um deles não foi fácil ou automática. As discussões travadas no Parlamento do Império demonstram, ao revés, que, para muitos dos parlamentares, São Paulo não representava a melhor opção, sobretudo considerando-se que o Rio de Janeiro não receberia tal curso. Todos os argumentos presentes nos debates perante a Assembleia Constituinte de 1823 alguns dos quais acima relatados tornaram novamente à baila. Da mesma forma que se observa quanto aos demais cursos superiores no Brasil, ao menos nas primeiras décadas do século XIX, a criação de cursos jurídicos não significou que as ligações com a tradição jurídica portuguesa tivessem sido rompidas. Primeiramente, o legislador

5 brasileiro, como o reformador dos Estatutos da Universidade de Coimbra, preocupava-se com o ensino da legislação do país; por outro lado, as cadeiras aqui implantadas replicavam, em sua maioria, as encontradas na Universidade de Coimbra, como, por exemplo, as cadeiras de Direito Natural, Direito Público, Direito das Gentes. Após tanto tempo como colônia e tão pouco tempo independentes, não poderia ter sido feito de outra forma, refletindo muitas das disposições dos estatutos da Universidade de Coimbra de 1772, talhadas à época de D. José I, assistido por seu Ministro o Marquês de Pombal. Podemos dizer, então, que, como não havia ensino da medicina legal aos estudantes de Leis em Coimbra, tampouco essa cadeira tinha lugar nos recém criados cursos de Olinda e São Paulo. Se os moldes de Coimbra foram calcados no Curso Jurídico no Brasil, não significa, entretanto que isso deveria ser obrigatoriamente respeitado. Pois, carece realce, por outro lado, que do Projeto de regulamento para o Curso Jurídico elaborado pelo Visconde de Cachoeira constava que seriam necessários estudos ligados à realidade brasileira (BRASIL, 1827: 12), podendo ser citado o estudo do Direito Mercantil Marítimo ou, também, da Economia Política. E, em tal contexto, poderia se pensar numa cadeira de Medicina Legal, como acontecia em outras partes da Europa, como na França ou mesmo em Portugal, embora tardiamente, como veremos adiante. Não chega a ser surpreendente o fato de que a legislação da antiga metrópole tenha influenciado a legislação do Brasil independente, já que a transferência da Família Real impôs que as instituições outrora existentes em Portugal fossem aqui estabelecidas e continuassem a seguir o seu modelo. Não se esqueça, ainda, que os membros das famílias mais abastadas faziam seus estudos, em grande parte, em Coimbra. Assim, para ilustrar essa dependência, pode-secitar,que oito dos dez primeiros professores do Curso Jurídico instalado em São Paulo tinham feito seus estudos em Coimbra (José Maria de Avellar Brotero, Balthazar da Silva Lisboa, Luiz Nicolau Fagundes Varella, Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral, Antonio Maria de Moura, Thomaz José Pinto de Cerqueira, João Cândido de Deus e Silva)e dois em Paris (Carlos Carneiros de Campos e Clemente Falcão de Souza) (MACHADO JUNIOR, 2010: 73).

6 Do quanto exposto até aqui, o estudo da Medicina Legal ficava cantonado aos estudantes que frequentavam as Faculdades de Medicina tanto no Brasil, como em Portugal. E, no caso do Brasil, apenas após 1834... Interessante notar que, somente em 1836, com o decreto que reformou a Instrução Superior portuguesa e unificou a Faculdade de Cânones e a Faculdade de Leis, 2 criou-se uma só Faculdade de Direito na Universidade de Coimbrae, ainda no seu bojo, institui-se, também, uma cadeira de Medicina Legal, mas não do âmbito dessa nova Faculdade. Seus estudantes deveriam frequentá-la junto à Faculdade de Medicina (PORTUGAL, 1837: 191-194). Um novo movimento relativamente ao locus adequado para a existência de uma cadeira de Medicina Legal ganhara força em 1891, quando, nos cursos jurídicos brasileiros, a cadeira de Medicina Legalfoi criada em, pelo decreto 1232-F (BRASIL,1891: 5-67). Tal evento suscitou, novamente, discussões no que concernia à localização dos cursos jurídicosno Brasil, atingindo, em especial o curso localizado, há mais de seis décadas, em São Paulo. Os argumentos foram os mais variados e pretendiam, todos, ser o mais razoáveis possíveis Um desses argumentos, entretanto, chama muito nossa atenção. É o que traduz a tentativa de transferir a Faculdade de Direito de São Paulo para a Corte, sob o fundamento de que, no Rio de Janeiro, a cadeira poderia ser ministrada juntamente com o curso de medicina. Além disso, os acadêmicos ficariam mais próximos dos tribunais superiores e, por conseguinte, das mais importantes disputas jurídicas do país (BRASIL, 1860: 49).Essa possibilidade, entretanto, não vingou e São Paulo manteve seu curso jurídico assim como se estabeleceu a cadeira de Medicina Legal, que foi entregue ao Dr. Amâncio de Carvalho, médico pela Faculdade de Medicina da Bahia, que elaborou seu programa (FACULDADE DE DIREITO, 1891: 15), onde constam, por exemplo, os seguintes tópicos: IV Estudo medico-legal dos casamentos; motivos de opposição, de nullidade e de separação do corpo. (...) VI Dos ferimentos e outras offensasphysicas em geral (lesões corporaes segundo a expressão do novo codigo criminal), seu estudo em relação com a natureza dos agentes vulnerantes; classificação destes. Destarte, da leitura desses itens, verifica-se que a Medicina Legal deveria ser utilizada na aplicação do direito. Além da criação e efetiva implantação da cadeira de Medicina Legal junto à Faculdade de Direito bem como de programas de aulas que indicam o inter-relacionamento dessas duas 2 Decreto de 05 de dezembro de 1836.

7 áreas de conhecimento, a Medicina Legal passa a ser objeto de discussão e estudos por pessoas que têm formação médica, bem como por aqueles que são juristas. A interface de duas áreas de estudos direito e medicina julgada adequada para os estudos na cadeira de Medicina Legal, pode ser verificada em outras instituições. Assim, em São Paulo, pode-se citar a criação, em 1896, dasociedade de Anthropologia Criminal, Sciencias Penaes e Medicina Legal, formada por médicos e juristas, cujos estatutos previam a criação de uma revista e indicavam, como um de seus objetivos, ações para que a legislação brasileira fosse adaptada aos modernos princípios da ciência (SOCIEDADE DE ANTHROPOLOGIA, 1896: 91). Conclusões. A pesquisa que realizamos nos mostrou que foram muito grandes as dificuldades para a criação e instalação não só dos estudos de medicinas como também os jurídicos. Dificuldades muitas vezes oriundas, muito mais da disputa política entre províncias do estado do Brasil, do que do debate sobre as diversas ciências. Diferentemente de outros países, a criação das primeiras escolas de ensino superior quer de Medicina quer de Direito no Brasil não contemplou a cadeira de Medicina Legal dentre as disciplinas indicadas para a formação de seus estudantes. Especificamente, o debate sobre a implantação da cadeira de Medicina Legal junto às Faculdades de Direito indicaria que, por um lado o estudo de uma área de conhecimento não se exaure nela mesma, e, por outro, que questões externas ao debate epistemológico dirigem, muitas vezes, as decisões. Tratava-se de uma nova área no Brasil e para o reconhecimento dessa nova área de conhecimento, na espécie analisada, a Medicina Legal e sua consequente institucionalização, outros fatores deveriam ser contemplados. Haveria a necessidade de que além de seu estudo houvesse sua divulgação, bem como a possibilidade de sua aplicação. A Medicina Legal, conquanto ligada à medicina, teria por escopo auxiliar a compreensão e aplicação do direito.

8 Referências. ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria; FERRAZ, Márcia H. M. Raízes históricas da difícil equação institucional da ciência no Brasil. São Paulo em perspectiva. [online]. 2002, p. 3-14. v. 16.n. 3. BRASIL. 1860. Annaes do Parlamento brazileiro. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional. t. 2..1877a.Annaes do Parlamento brasileiro: Assembléa Constituinte. Rio de Janeiro: TypographiaParlamentar. t. 2.. 1877b. Annaes do Parlamento brasileiro: Assembléa Constituinte. Rio de Janeiro: TypographiaParlamentar. t.4.. 1877c. Annaes do Parlamento brasileiro: Assembléa Constituinte. Rio de Janeiro: TypographiaParlamentar. t.6.. 1885. Collecção de Decretos, Cartas Imperiaes e Alvarás do Império do Brazil de 1825. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.. 1886. Collecção das Leis do Império do Brazil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. parte primeira.. 1891. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. fascículo primeiro. FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO. 1891. Programma de ensino para o ano de 1891. São Paulo: Typ. da Companhia Industrial de São Paulo. FERRAZ, Márcia Helena Mendes. 1997. As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituoso da química. São Paulo: EDUC. MACHADO JÚNIOR, Armando Marcondes. 2010. Cátedras e catedráticos: curso de bacharelado faculdade de direito: universidade de São Paulo: 1827-2009. São Paulo: Mageart.

9 MELLO SOARES, A. J. de. 1863. Corographiahistorica, chronographica, genealogica, nobiliaria, e politica do Imperio do Brasil.Rio de Janeiro: Typographia brasileira. t. 1 segunda parte. PORTUGAL. 1837. Collecção de leis e outros documentos officiaes publicados desde 10 de setembro até 31 de dezembro de 1836. Lisboa: Imprensa Nacional. sexta série. SOCIEDADE DE ANTHROPOLOGIA CRIMINAL, SCIENCIAS PENAES E MEDICINA LEGAL. 1896. Estatutos da Sociedade de Anthropologia Criminal, ScienciasPenaes e Medicina Legal de São Paulo. Revista da Sociedade de Anthropologia Criminal, ScienciasPenaes e Medicina Legal. ano 1. v. 1. UNIVERSIDADE DE COIMBRA. 1772. Estatutos. Coimbra : Imprensa da Universidade. livro 3..