A OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA NO SISTEMA PENAL MILITAR



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Transcrição:

A OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA NO SISTEMA PENAL MILITAR ALEXANDRE HENRIQUES DA COSTA 1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Autor das obras Direito Administrativo Disciplinar Militar, Manual Prático dos Atos de Polícia Judiciária Militar, Tropa de Choque Aspectos Legais e Roteiro de Investigação e Registro dos Crimes Militares. I INTRODUÇÃO. Trata-se a obediência hierárquica de uma dirimente penal prevista no Código Penal Militar determinante da exclusão da culpa do sujeito ativo de um delito castrense prevista em seu artigo 38, que reza: Art. 38. Não é culpado quem comete o crime: a) sob coação irresistível ou que lhe suprima a faculdade de agir segundo a própria vontade; b) em estrita obediência a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviços. 1º. Responde pelo crime o autor da coação ou da ordem. 2º. Se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior. Também a obediência hierárquica está prevista no artigo 22 do Código Penal comum, o qual não traz um delineamento tão esmiuçado quanto a disposição do Código Penal Castrense. Conforme ensina Damásio Evangelista de Jesus a ordem de superior hierárquico é a manifestação de vontade do titular de uma função pública a um funcionário que lhe é subordinado, no sentido de que realize uma conduta (positiva ou negativa) 1, ou seja, trata-se em si de um ato administrativo interna corporis de um superior hierárquico ao seu subordinado visando o funcionamento da Administração. II DO DEVER DE OBEDIÊNCIA. 1 Código Penal Anotado. 11. ed. São Paulo, 2001, p. 97.

A obediência hierárquica, sob o prisma do Direito Administrativo, é gerada em razão do dever de obediência do agente público, em que este impõe ao servidor o acatamento às ordens legais de seus superiores e sua fiel execução. Tal dever resulta da subordinação hierárquica e assenta no princípio disciplinar que informa toda organização administrativa 2. Trata-se de uma conseqüência do poder hierárquico inerente à Administração. O saudoso jurista Hely Lopes Meirelles ensinou que poder hierárquico é o de que dispõe o Executivo para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro pessoal 3. Afirmou que a hierarquia atua como instrumento de organização e aperfeiçoamento do serviço e age como meio de responsabilização dos agentes administrativos, impondo-lhes o dever de obediência 4. Conforme dissertou sobre o tema Maria Sylvia Zanella Di Pietro, os deveres dos servidores públicos vêm normalmente previstos nas leis estatutárias, abrangendo, entre outros, os de assiduidade, pontualidade, discricionariedade, urbanidade obediência, lealdade. O descumprimento dos deveres enseja punição disciplinar 5. Na Administração Pública Militar, mais especificamente na Polícia Militar, a obediência hierárquica encontra fundamento constitucional e infraconstitucional ex vi do artigo 42 da Constituição Federal e dos artigos 1º e 9º, 1º da Lei Complementar Estadual 893/01 (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar), que dispõem: Constituição Federal Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Regulamento Disciplinar da Polícia Militar Art. 1º. A hierarquia e a disciplina são as bases da organização da Polícia Militar. Art. 9º. A disciplina policial-militar é o exato cumprimento dos deveres, traduzindose na rigorosa observância e acatamento integral das leis, regulamentos, normas e ordens, por parte de todos e de cada integrante da Polícia Militar. Constata-se uma consagração da importância jurídica dada ao dever de obediência aos militares do Estado, visando-se preservar a própria instituição policial-militar. 2 3 4 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 396. Ibidem, p. 105. Ibidem, p. 105. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 518.

A importância deste supra citado dever é tanta que as legislações penal militar e disciplinar policial-militar trazem um sistema preventivo-repressivo em sua parte especial, instituindo um crime punido com detenção e uma transgressão disciplinar de natureza grave respectivamente: Código Penal Militar Art. 163. Recusar obedecer a ordem do superior sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução: Pena detenção, de um a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave. Regulamento Disciplinar da Polícia Militar Art. 13. As transgressões disciplinares são classificadas de acordo com sua gravidade em graves (G), médias (M) e leves (L). Parágrafo único. As transgressões disciplinares são: (...) 29. não cumprir, sem justo motivo, a execução de qualquer ordem legal recebida. Quanto ao supramencionado crime militar, aplicável aos militares do Estado, ensina Célio Lobão, referindo-se sobre sua objetividade jurídica, o objeto da tutela penal é o interesse relativo à subordinação, ao respeito devido pelo inferior a seu superior. O objeto da tutela do Código Penal Militar é o interesse relativo à autoridade e à disciplina sob o aspecto da obediência às ordens emanadas do superior hierárquico, em face do dever militar imposto em lei, regulamento ou instrução 6. As determinantes repressivas são tão efetivas que o próprio Superior Tribunal Militar, por meio da Apelação nº 31.879, esclareceu que pratica crime de insubordinação o militar que se recusa simplesmente a cumprir ordem de serviço que é dada pelo superior. Na esfera disciplinar também a tutela repressiva também é efetivada, somente justificadas as circunstâncias para o não cumprimento da ordem se advindas do artigo 34 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, que estão devidamente relacionadas à exclusão da antijurididade ou culpabilidade da conduta, não se apontando no citado dispositivo legal uma causa explícita que se possibilite o não cumprimento de uma ordem. Em consonância ao exposto, constata-se que na Administração Pública Militar o sistema hierárquico é garantido em muito maior grau do que na Administração Pública em geral, pois naquela não se determina ao não cumprimento de uma ordem superior apenas uma sanção 6 Direito Penal Militar. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 189.

disciplinar delimitada pela Lei do Funcionalismo Público comum, mas a possibilidade de restringir ao militar do Estado sua liberdade, isto tanto pelo Código Penal Militar quanto pelo próprio Regulamento Disciplinar da Polícia Militar. III DA OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA. Neste sentido, ensina Damásio Evangelista de Jesus vislumbrando a diferença existente entre o sistema penal comum e o castrense quanto à obediência hierárquica: Atualmente, não se admite mais o cego cumprimento da ordem legal, permitindo-se que o inferior examine o conteúdo da determinação, pois ninguém possui dever de praticar uma ilegalidade. Não se coloca o subordinado numa condição de julgador superior da ordem, o que criaria um caos na máquina administrativa, mas a ele se outorga o direito de abster-se de cumprir uma determinação da prática de fato manifestamente contrário à lei, mediante uma apreciação relativa. Relativa porque não lhe cabe julgar a oportunidade, a conveniência ou a justiça da prática do fato constitutivo da ordem, mas somente a sua legalidade. No sentido do texto: RT, 490:331. Em certos casos, a obediência deve ser absoluta e não relativa, como acontece no sistema militar, em que não cabe ao subordinado a análise da legalidade da ordem. Então, se a ordem é ilegal, é ilegal também o fato praticado pelo subordinado. Mas, como não lhe cabe discutir sobre sua legalidade, encontra-se no estrito cumprimento de dever legal (dever de obedecer à ordem) 7. O penalista militar José da Silva Loureiro Neto não somente concordou com o ilustre jurista Damásio E. de Jesus 8 como também esclareceu que realmente a subordinação constitui a base de todo o ordenamento militar. Como bem enfatiza Gaetano Sucato (1941:308), parece impossível conceber um corpo militarmente ordenado que não fosse tutelado o respeito pela pessoa do superior, não somente no que concerne à integridade física, mas também relativamente à autoridade, ao prestígio e ao decoro 9. A possibilidade de um subordinado contestar uma ordem de seu superior relativa a matéria de serviço é extremamente difícil, principalmente em razão da presunção de legitimidade inerente ao ato administrativo praticado por este. Ensina o saudoso jurista Hely Lopes Meirelles que 7 8 9 Código Penal Anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 97. Direito Penal Militar. São Paulo: Atlas, 1995, p. 68. Ibidem, p. 131.

Os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade, que, nos Estados de Direito, informe toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde a exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderiam ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução. A presunção de legitimidade autoriza a imediata execução ou operatividade dos atos administrativos, mesmo que argüidos de vícios ou defeitos que os levem à invalidade. Enquanto, porém, não sobrevier o pronunciamento de nulidade os atos administrativos são tidos por válidos e operantes, que para a Administração, quer para os particulares sujeitos ou beneficiários de seus efeitos 10. Nestes termos também assim entende a ilustre jurista Maria Sylvia Zanella Di Pietro 11. Devidamente apresentado ao início da discussão do tema, prevê o artigo 38 do Código Penal Militar que se o militar agir em estrita obediência a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviços responderá pelo crime somente o autor da ordem, salvo se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso ou houver excesso nos atos ou na forma da execução. IV REQUISITOS DE UMA ORDEM DE SUPERIOR HIERÁRQUICO. A ordem de um superior, que vinculará em absoluto o subordinado no seu cumprimento, deverá deter em seu bojo alguns requisitos mínimos, que cumpridos excluirão a culpabilidade do militar cumpridor, sendo eles: a) Que seja de um superior. O conceito de superior nos é dado pelo artigo 24 do Código Penal Militar, in verbis : o militar que, em virtude da função, exerce autoridade sobre outro de igual posto ou graduação, considera-se superior, para efeito da aplicação da lei penal militar. O conceito de ordem nos é dado por Renato Astrosa Herrera como a expressão da vontade do superior dirigida a um ou mais subordinados para que cumpram com uma prestação ou abstenção no interesse do serviço. 10 11 Direito Administrativo Brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 141. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 72 e 191.

b) Que a ordem seja relativa ao serviço. Entende-se por aquela relacionada com as funções do inferior, dentro de suas atribuições funcionais, que atendam aos interesses da corporação a que pertence, não as que beneficiam interesses particulares. c) Que a ordem seja da competência funcional do superior. Os regulamentos militares e normas gerais de ação dispõem a respeito das atribuições do posto e graduação de todo militar. Conseqüentemente, a ordem emanada do superior deve relacionar-se com sua função, com seu dever de ofício. d) Que a ordem obedeça aos requisitos formais. A ordem pode ser de natureza escrita, verbal e por sinais convencionais. Em princípio todo ato administrativo é formal, pois só assim poderá ser aferido pela Administração e também pelo Judiciário em caso de constatação de sua validade. É expresso em ordens de serviço, memorandos, despachos normativos etc. Excepcionalmente a ordem pode ser verbal, em caso de transitoriedade da manifestação da vontade do superior, como em casos de urgência, de instrução militar etc. e) Que a ordem seja cumprida dentro de estrita obediência à ordem do superior. Significa que o subordinado, ao cumprir a ordem de seu superior, não pode ir além do que foi determinado. Caso contrário, responde pelo excesso, não havendo, portanto, excludente de culpabilidade. f) Que a ordem não seja manifestamente ilegal. Considera-se manifestamente ilegal uma ordem quando são evidentes sua ilicitude ou ilegitimidade, sem que haja possibilidade de dúvida. O que pode inexistir, na lição de Frederico Marques, se a ordem não for manifestamente ilegal e o funcionário não se exceder em seu cumprimento, é a ilicitude a parte subjecti por ausência de vontade antijurídica. Diante de uma ordem dessa natureza, a vontade do subordinado não pode determinar-se normalmente. Se o superior dá a ordem, nos limites de sua respectiva competência, revestindo-se ela das formalidades legais necessárias, o subalterno ou presume a licitude da ordem (erro de fato), ou se sente impossibilitado de desobedecer ao funcionário de onde a ordem emanou (inexigibilidade de outra conduta): de uma forma ou outra, é incensurável o proceder do inferior hierárquico, e, por essa razão, o fato praticado não é punível em relação a ele 12. 12 LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. São Paulo: Atlas, 1995, p. 66-7.

Faltante um dos requisitos supramencionados, o subordinado não estará resguardado pela dirimente penal em testilha, respondendo pelo ato praticado. Cabe ressaltar que de todos os requisitos mencionados o mais difícil de refutar é a manifesta ilegalidade da ordem, cujas determinantes são muito imprecisas, não havendo uma objetividade clara em suas considerações. V MANIFESTA ILEGALIDADE DA ORDEM DE SUPERIOR. Manifesta ilegalidade é aquela visível de forma imediata, de plano, pois, caso não seja visível, será o autor exculpado e o emissor da ordem responsabilizado 13. Conforme ensina Jorge Alberto Romeiro, quanto à obediência hierárquica prevista no Código Penal Militar, a expressão manifestamente, usada no art. 38, há de ser entendida, de acordo com as circunstâncias, de forma objetiva, como conhecimento instantâneo da criminosidade do ato, sem necessidade de outras reflexões (ohne weiteres Nachdenken erkennt), como bem acentua Joaquim Schölz, a propósito de vocábulo semelhante (offensichtlich) no CPM alemão (Wehrstrafgesetz), a respeito do mesmo assunto. O juiz não deve levar em conta a capacidade de conhecimento do subordinado, mas a de qualquer soldado (beliebigen Soldaten), que não distinga por sua inteligência, nem por sua maior ou menor responsabilidade pessoal (Zurechnungsfähigkeit). O caráter criminoso do ato deve ser manifesto para todo o mundo (Jedermann), como, v.g., a ordem de agressão a um subordinado por vingança pessoal. Se o caráter criminoso do ato não é manifesto, o subalterno que cumpre a ordem ilícita está coberto pelo artigo, salvo se se exceder, quer quanto aos limites do ato, quer quanto à sua execução. Neste caso, torna-se co-autor do crime do superior 14. VI CONCLUSÃO. Neste contexto, não visível de plano a ilegalidade da ordem expedida caberá ao subordinado cumpri-la, estando dirimida a sua culpa na esfera penal militar, ex vi da alínea b do artigo 38 do Código Penal Castrense, bem como na esfera disciplinar, consoante ao que dispõe o caput do artigo 10 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar. Haverá então somente responsabilidade penal e disciplinar ao superior que emanou a ordem ilegal, sem que esta de plano fosse reconhecida como tal, revestida de aparente legalidade, isto, inclusive, em face da presunção de legitimidade inerente aos atos administrativos praticados pelos agentes públicos, dos quais fazem parte os militares. 13 14 NEVES, Cícero Robson Coimbra e outro. Apontamentos de Direito Penal Militar. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 197. Curso de Direito Penal Militar (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 1994, p. 124-5.

Na orla castrense o maior rigor na exigência pronta ao cumprimento pelos subordinados das ordens superiores determina reflexamente uma maior responsabilidade aos que as emanaram pelas conseqüências de suas determinações, o que se torna natural quando de um regime institucional extremamente hierarquizado e disciplinado. Assim sendo, emanada a ordem pelo superior hierárquico competente detentora de todos os requisitos a ela inerentes, principalmente por não ser manifestamente ilegal, restará toda a responsabilidade pelas suas conseqüências no plano jurídico ao superior, e não ao subordinado, sendo inexigível conduta diversa deste frente a uma ordem não manifestamente ilegal. VII BIBLIOGRAFIA. DE JESUS, Damásio E. Código Penal Anotado. 11. ed. São Paulo, 2001. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. São Paulo: Atlas, 1995. NEVES, Cícero Robson Coimbra e outro. Apontamentos de Direito Penal Militar. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 2005. ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 1994.