Cesar A. Guimarães Pereira Doutor e Mestre em Direito pela PUCSP Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini

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Transcrição:

A INTERAÇÃO ENTRE A CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE (CNY) E O DIREITO INTERNO BRASILEIRO: ROTEIRO PARA A COMPREENSÃO DO TEMA NO ÂMBITO DA HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇAS ARBITRAIS ESTRANGEIRAS Cesar A. Guimarães Pereira Doutor e Mestre em Direito pela PUCSP Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini 1. O regime geral dos tratados internacionais no direito brasileiro atribui-lhes a estatura de legislação ordinária. Embora não revoguem, suspendem a eficácia da legislação ordinária anterior ou de tratados, recebidos com esta natureza. O tema foi examinado pelo STF no RE 80004 (RTJ 83, p. 809), conforme exposto por JOÃO BOSCO LEE em A homologação de sentença arbitral estrangeira: a Convenção de Nova Iorque de 1958 e o direito brasileiro de arbitragem, em Arbitragem, coord. por SELMA FERREIRA LEMES, CARLOS ALBERTO CARMONA e PEDRO BATISTA MARTINS, Atlas, 2007, pp. 175-188. A solução dos aparentes conflitos de normas no tempo é dada por critérios como os da cronologia e especialidade. 2. No entanto, a CNY apresenta configuração peculiar. Não se destina a substituir ou alterar o regime resultante da legislação interna ou de outros tratados internacionais firmados pelo Brasil, mas de interagir com eles. Desse modo, a cronologia e a especialidade são menos relevantes como critérios para a definição do regramento aplicável em cada caso concreto. 3. A disciplina interna relativa à homologação de sentenças arbitrais estrangeiras é estabelecida pela Lei 9.307, de 1996. Além disso, foram firmados os seguintes tratados internacionais: a) Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial (Convenção do Panamá de 1975) objeto do Decreto Legislativo 90, de 6.6.1995, entrou em vigor para o Brasil em 27.12.1995. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 1.902, de 9.5.1996, publicado em 10.5.1996. b) Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa do MERCOSUL, aprovada pela decisão do Conselho do Mercado Comum 5-92, de 27.6.1992 (Protocolo de

Las Leñas) objeto do Decreto Legislativo 55, de 19.4.1995, entrou em vigor para o Brasil em 17.3.1996. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 2.067, de 12.11.1996, publicado em 13.11.1996. c) Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros (Convenção de Montevidéu de 1979) objeto do Decreto Legislativo 93, de 20.6.1995, entrou em vigor para o Brasil em 27.12.1995. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 2.411, de 2.12.1997, publicado em 3.12.1997. d) Convenção para o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (Convenção de Nova Iorque de 1958) objeto do Decreto Legislativo 52, de 25.4.2002. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 4.311, de 23.7.2002, publicado em 24.7.2002. e) Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional do MERCOSUL, firmado em Buenos Aires em 23.7.1998 objeto do Decreto Legislativo 265, de 29.12.2000, entrou em vigor para o Brasil em 9.10.2002. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 4.719, de 4.6.2003. O referido decreto contém a seguinte ressalva sobre o Acordo:... ressalvado seu art. 10, que deve ser interpretado no sentido de permitir às partes escolherem, livremente, as regras de direito aplicáveis à matéria a que se refere o dispositivo em questão, respeitada a ordem pública internacional. f) Acordo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, abrangendo o MERCOSUL, a Bolívia e o Chile, firmado em Buenos Aires em 5.7.2002 objeto do Decreto Legislativo 1.021, de 24.11.2005, entrou em vigor para o Brasil em 8.2.2009. Sua aplicação foi determinada pelo Decreto 6.891, de 2.7.2009. 4. Cada convenção se aplica a um determinado conjunto de Estados nacionais. A Lei 9.307 se aplica, como único regramento disponível, às sentenças oriundas de Estados que não integrem nenhum de tais conjuntos e não mantenham tratados em vigor com o Brasil. 5. Os fundamentos normativos para que (i) a CNY e demais tratados internacionais sejam aplicados com precedência em relação ao direito interno e (ii) a CNY não afete a vigência ou a aplicabilidade das demais normas aplicáveis (tratados e, subsidiariamente, lei interna) são o art. 34 da Lei 9.307 e o art. VII.1 da CNY. Este dispositivo estabelece que As disposições da presente Convenção não afetarão a validade de acordos multilaterais ou bilaterais relativos ao reconhecimento e à execução de sentenças arbitrais celebrados pelos Estados signatários nem privarão qualquer parte interessada de qualquer direito que ela possa ter de valer-se de uma sentença arbitral da maneira e na medida permitidas pela lei ou pelos tratados do país em que a sentença é invocada. O art. 34 da Lei 9.307 prevê que A sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos desta Lei.

6. Portanto, a relação da CNY com o direito interno tratados ou legislação nacional não é de exclusão, por especialidade ou cronologia, mas de convivência e vigência simultânea. 7. Há dois critérios para que se definam as regras aplicáveis em cada situação concreta: o princípio da máxima efetividade e a proibição do cherry-picking (escolha dos aspectos mais favoráveis de cada regime). 8. Exige-se que a definição do direito aplicável em cada caso seja pautada pela maior efetividade possível. Alude-se à regra do most favorable right ou direito mais favorável. Cabe desde logo esclarecer que o parâmetro diz respeito ao direito daquele que busca a homologação. Aplica-se o regime que mais favoreça a homologação, ou seja, o que estabeleça exigências menos abrangentes, na visão do interessado na homologação, para o reconhecimento da validade da sentença estrangeira ou para o procedimento de homologação. Um corolário disso é a proibição de, após a incorporação da CNY no direito interno, estar proibida a criação legislativa de requisitos adicionais para a homologação de sentenças sujeitas à CNY. 9. Um exemplo de adoção do regime interno mais favorável resulta da comparação entre o art. V.1 (d) da CNY e o art. 38, V, da Lei 9.307 (ambos sem grifo no original). Percebe-se que os requisitos da CNY são mais abrangentes e se aplicam ao procedimento arbitral, não apenas à instituição da arbitragem. (d) a composição da autoridade arbitral ou o procedimento arbitral não se deu em conformidade com o acordado pelas partes, ou, na ausência de tal acordo, não se deu em conformidade com a lei do país em que a arbitragem ocorreu; ou [Sem dispositivo correspondente] V a instituição da arbitragem não está de acordo com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória; 10. Um exemplo de utilização indevida do cherry-picking é a combinação entre o procedimento simplificado do art. 19 do Protocolo de Buenos Aires (Decreto 6.891, de 2009, idêntico ao do Protocolo de Las Leñas) e as condições de homologação previstas no art. V.1 e V.2 da CNY, ignorando-se as condições previstas no art. 20 do Protocolo de Buenos Aires. Isto pode fazer diferença porquanto o Protocolo de Buenos Aires exige a executoriedade da sentença arbitral em seu país de origem, sem fazer alusão à aplicação de um direito interno eventualmente mais favorável. Isso eliminaria qualquer possibilidade de homologação de sentença estrangeira não dotada de executoriedade (p. ex., uma sentença estrangeira anulada), desde que se estivesse diante de sentença sujeita ao Protocolo de Buenos Aires.

11. Cabe destacar que há incerteza na jurisprudência internacional sobre a vedação absoluta do cherry-picking, com decisões que a admitem e outras que aplicam rigorosamente a vedação. Ou seja, na jurisprudência internacional há exemplos de homologação deferida com base na combinação de requisitos oriundos de mais de um diploma normativo. No entanto, tais decisões são criticadas. 12. Como princípio geral, deve-se respeitar a opção do requerente da homologação pelo direito aplicável que lhe pareça mais favorável, não devendo o órgão jurisdicional aplicar de ofício um regime diverso do pretendido pelo requerente. Não há impedimento a que a homologação seja denegada sob um regime, mas venha a ser futuramente concedida se requerida sob outro regime, mais favorável à homologação. 13. Percebe-se que o princípio da máxima efetividade derivado da mostfavorable-right provision pode ser fonte de insegurança jurídica para as partes. Retira a previsibilidade sobre o tratamento a ser dado em um determinado Estado a uma sentença arbitral estrangeira, uma vez que uma sentença que não poderia ser homologada em face das condições da CNY pode vir a ser homologada à luz do direito nacional ou de outros tratados igualmente aplicáveis. 14. Um exemplo sempre lembrado da aplicação exacerbada da mostfavorable-right provision é a jurisprudência francesa acerca da homologação de sentenças arbitrais estrangeiras já anuladas no seu local de origem. Uma análise abrangente de diversos episódios e das construções doutrinárias correspondentes é realizada por ADRIANA BRAGHETTA em A importância da sede da arbitragem, Renovar, 2010, pp. 125-214. Na França, o argumento central é que o Código de Processo Civil francês não impede a homologação de sentenças estrangeiras anuladas. Aplica-se o direito local por ser mais favorável à homologação, ou seja, com base na noção de maior efetividade. Também se reconhece uma deslocalização da sentença arbitral internacional, reduzindo-se a importância do tratamento dado à sentença pelo judiciário do local em que foi proferida. 15. Em outros sistemas nacionais, a discussão acerca da homologação de sentenças estrangeiras anuladas parte de outros pressupostos. Um ponto de partida usual para essa construção é o regime do art. V.1(e) da CNY, cuja redação transmite a ideia de facultatividade na denegação da homologação: 1. O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão [no original em inglês, uma das línguas oficiais, may ] ser indeferidos, a pedido da parte contra a qual ela é invocada, unicamente se esta parte fornecer, à autoridade competente onde se tenciona o reconhecimento e a execução, prova de que: (e) a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou suspensa por autoridade competente do país em que, ou conforme a lei do qual, a sentença tenha sido proferida. 16. Também se adotam dois conceitos importantes, o de jurisdição primária e o de jurisdição secundária. Os locais referidos no art. V.1(e) da CNY local em que foi proferida ou conforme a lei do qual foi proferida têm jurisdição primária,

significando que tem a prerrogativa de anular a sentença com efeitos erga omnes. Os demais Estados têm jurisdição secundária. Podem recusar a homologação, mas isto não impede que a sentença seja homologada em outro Estado, justamente porque sua jurisdição não alcança o desfazimento da sentença em si. Ao tratar do tema, ADRIANA BRAGHETTA alude a controle primário e controle secundário (ob. cit., p. 220), expressões que parecem adequadas para traduzir as noções de jurisdição primária e secundária referidas na doutrina internacional. 17. No sistema brasileiro, não há espaço para que se invoque algum direito interno mais favorável para afastar o art. V.1(e) da CNY. O art. 38, VI, da Lei 9.307 prevê que somente poderá ser negada a homologação se o réu demonstrar que a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada. Ou seja, poderia haver um regime mais favorável no caso de sentença anulada pelo judiciário do Estado cuja lei foi aplicada, caso seja diverso do local de prolação da sentença. Mas esta é uma situação de rara ocorrência prática. 18. Por outro lado, a redação do art. 38 da Lei 9.307 também não impõe a recusa de homologação como solução obrigatória. O teor do art. 38 não é distinto do do art. V.1 da CNY, pelo que a discussão sobre a facultatividade da recusa pode também ser travada em face da Lei 9.307. 19. No Superior Tribunal de Justiça, há um processo em curso (SEC 5782-AR) que envolve um pedido de homologação de sentença proferida na Argentina e lá anulada. No momento de preparação destas notas (dezembro de 2012), havia já parecer do Ministério Público pela denegação da homologação, afastando-se a aplicação dos critérios internacionalmente discutidos acerca da homologação de sentenças estrangeiras anuladas. Este será um importante leading case sobre o tema no Brasil o primeiro de que se tem notícia tanto perante o STJ quanto o STF, que detinha a competência para a homologação até a edição da Emenda Constitucional 45, de 2004. 20. Dois casos representativos da discussão internacional sobre esse tema são os chamados casos Yukos e Maximov, ambos oriundos da Holanda e relativos a sentenças arbitrais russas. O primeiro foi julgado em 28.4.2009 e se referia a uma sentença arbitral relativa a uma série de empréstimos para a aquisição de ações. Foi objeto de comentário de ALBERT JAN VAN DEN BERG intitulado Enforcement of Arbitral Awards Annulled in Russia, publicado no Journal of International Arbitration 27 (2): 179-198, 2010, Kluwer Law International, no qual se defende que a decisão não aplicou de modo adequado a legislação aplicável fundamentalmente, a CNY. 21. Em sua decisão, a Corte de Apelação de Amsterdam adotou como premissa de fato a circunstância de o judiciário russo haver anulado as sentenças arbitrais de modo tendencioso. Adotou ainda como critério de decisão a análise da própria sentença de anulação, aferindo se esta seria passível de homologação perante o judiciário holandês. Tendo rejeitado a possibilidade, em tese, de

homologação de tal sentença estatal, a Corte de Apelação concluiu pela inaptidão de tal sentença para anular as sentenças arbitrais. Por conseguinte, reputou que as sentenças arbitrais deviam ser homologadas na Holanda. 22. Nos seus comentários, VAN DEN BERG critica tanto a premissa (reputa que não havia prova da atuação tendenciosa, apenas notícias da imprensa que a Corte tomou como definitivas) quanto o método e a conclusão. Afirma que a Corte teria virado de cabeça para baixo a CNY ao adotar o critério de aferir a possibilidade de homologar a sentença anulatória para concluir sobre a homologação ou não da sentença arbitral anulada. 23. Um caso mais recente, ainda em curso, é o chamado caso Maximov, também da Corte de Apelação de Amsterdam. O caso é numerado como 200.100.508/01 e recebeu decisão em 18.9.2012. Nessa decisão, a Corte determinou a realização de perícia para aferir a adequação da anulação da sentença arbitral por parte do judiciário russo, com base no convencimento do judiciário holandês de que a anulação pode ter derivado do interesse em beneficiar o réu (NLMK), uma companhia integrante da Administração Pública na Rússia. 24. VAN DEN BERG analisa diversas possíveis formas de se aplicar a CNY de modo a possibilitar, em certos casos, a homologação de sentenças anuladas. Uma delas parte da premissa de que a redação da CNY oferece discricionariedade ao órgão jurisdicional de homologação para promover ou não a homologação diante da configuração de alguma das causas de não-homologação previstas nos arts. V.1 e V.2 da CNY. Surge daí a necessidade de se controlar a discricionariedade. VAN DEN BERG cita artigo de JAN PAULSSON (Enforcing arbitral awards notwithstanding a local standard annulment (LSA), 9 ICC International Court of Arbitration Bulletin 14, no. 1, 1998) e sua própria resposta (Enforcement of annulled awards?, 9 ICC International Court of Arbitration Bulletin 16, no. 2, 1998). PAULSSON separa, considerando os fundamentos adotados, as anulações em anulações por critérios internacionais (ISA) e anulações por critérios locais (LSA). Os critérios internacionais corresponderiam substancialmente aos critérios (a) a (d) do artigo V.1 da CNY e outras previsões similares. Segundo VAN DEN BERG, a proposta de PAULSSON corresponde ao direito aplicável na Europa, em que vige a Convenção Europeia sobre a Arbitragem do Comércio Internacional, de 21.4.1961 em Genebra. Segundo o artigo IV(2) desta Convenção,... parágrafo 1 deste Artigo limita a aplicação do artigo V(1)(e) da Convenção de Nova Iorque apenas aos casos de anulação previstos no parágrafo 1 acima que são muito similares aos previstos na CNY. Porém, tal convenção é aplicável apenas na Europa. Por isso VAN DEN BERG chega à seguinte conclusão: Thus, the current state of affairs, in my opinion, is that the enforcement of na arbitral award that has been set aside in the country of origin is possible only if a treaty offers a legal basis for it. This is provided by Article IX(2) of the 1961 European Convention for clearly defined grounds. Without such a solution provided in a treaty, it is, in my view, legally not possible, on the basis of the New York Convention, to recognize and enforce an award abroad that has been set aside in the country of origin (ob. cit., p. 198).

25. ADRIANA BRAGHETTA examina detalhadamente este tópico (ob. cit., pp. 198-201) e as demais condicionantes para uma decisão sobre o tema no âmbito do direito brasileiro inclusive a inter-relação entre os diversos tratados e diplomas legislativos em vigor (ob. cit., pp. 303-335). Chega a conclusões similares: O sistema de controle na sede, apesar de imperfeito, é extremamente útil e deve ser respeitado, salvo três exceções: se estivermos no âmbito da Convenção Europeia de 61, se as condições de reconhecimento forem mais benéficas que as de Nova Iorque (porque assim previsto no próprio sistema) ou se a sentença anulatória violar a ordem pública do país receptor (...) Se a lei brasileira vier a ser reformada, podemos ainda melhorar a já destacada posição brasileira no cenário internacional, limitando os efeitos da anulação do laudo à semelhança da Convenção Europeia de 1961. Mas, até lá, se anulado o laudo na sede, o Brasil não deve, em princípio, reconhecê-lo, por força tanto da Convenção de Nova Iorque, quanto da do Panamá ou de sua legislação interna, salvo se a sentença anulatória violar a ordem pública brasileira (ob. cit., pp. 361 e 364). Especialmente esta última ressalva dá lugar a que a discussão acerca da homologação de sentenças arbitrais anuladas na origem não possa ser afastada de modo simples e em abstrato, sem a adequada atenção às circunstâncias do caso concreto. 26. Diante disso, os pontos que o STJ deverá enfrentar na SEC 5782-AR são os seguintes: a) Aplica-se a exigência de coisa julgada e executoriedade constante do Protocolo de Buenos Aires (Decreto 6.891, de 2.7.2009)? Cabe destacar a diferença de redação entre a CNY e o Protocolo de Buenos Aires. Na CNY, alude-se a O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão ser indeferidos... ; no Protocolo de Buenos Aires, prevê-se que as sentenças... terão eficácia extraterritorial... quando reunirem as seguintes condições:.... Ou seja, a facultatividade por vezes reconhecida na CNY não está presente no Protocolo de Buenos Aires. b) A homologação é discricionária quando preenchida uma causa de recusa de homologação prevista na CNY? c) O STJ pode investigar as causas da anulação na origem? Que critérios e métodos devem ser adotados para esse controle, no âmbito do juízo de delibação? d) A decisão judicial estrangeira de anulação atende a esses critérios? 27. Como este, há outros casos em que a jurisprudência do STJ vem enfrentando temas recorrentes na experiência internacional acerca da CNY. A SEC 856 analisou o requisito de convenção arbitragem escrita do art. II da CNY, concluindo pela existência da convenção em face das circunstâncias do caso (especialmente a participação sem objeção no processo arbitral). A SEC 3709, julgada em 14.6.2012, discutiu a definição da lei aplicável segundo a CNY para regular a representação da parte na arbitragem e a validade dos compromissos por ela assumidos no processo arbitral.

28. Percebe-se uma aproximação entre a experiência brasileira e a jurisprudência internacional no âmbito da aplicação da CNY, uma derivação direta do crescimento da integração econômica e jurídica do Brasil. Os problemas que vêm sendo submetidos ao judiciário brasileiro exigem uma adaptação metodológica e a compreensão da jurisprudência internacional como instrumentos para a sua solução adequada. Informação bibliográfica do texto: PEREIRA, Cesar A. Guimarães. A interação entre a Convenção de Nova Iorque (CNY) e o direito interno brasileiro: roteiro para a compreensão do tema no âmbito da homologação de sentenças arbitrais estrangeiras. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 69, novembro 2012, disponível em http://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].