DEPOIS DO TRABALHO A FESTA: O XIRÊ COMO EXPRESSÃO DE SOCIALIZAÇÃO NO CANDOMBLÉ 1



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Transcrição:

DEPOIS DO TRABALHO A FESTA: O XIRÊ COMO EXPRESSÃO DE SOCIALIZAÇÃO NO CANDOMBLÉ 1 Mary Anne Vieira Silva 2 maryannevs@ig.com.br Herta Camila Cordeiro Morato 3 hertacamila_@hotmail.com. RESUMO: O presente trabalho emerge de questionamentos que, a priori, nos parecem simples: qual o significado, basilar, da festa no Candomblé? Como se constitui o território-rede a partir dos ilês, das festas e dos praticantes dos candomblés? Para buscar responder a esses questionamentos se faz necessário aglutinar numa perspectiva crítica as dimensões que se ligam a esta religião no que tange os elementos: espaciais, religiosos, culturais e sociais. É no contexto do acompanhamento de festas do Candomblé de Ketu nessa região que tais questionamentos são gestados. Portanto busca-se evidenciar o Xirê, ou seja: a festa, como a expressão da socialização nessa religião, demonstrando que aquilo que vem a público resulta de muito trabalho e envolvimento por parte de quem a integra. Palavras-chave: Socialização. Candomblé. Cultura 1. ENTRE LÁ E CÁ...O CANDOMBLÉ NO ESPAÇO DIASPÓRICO A religião do Candomblé de Ketu teve sua gênese no Novo Mundo no contexto da expansão marítima européia do século XVI, a qual provocou a diáspora africana no continente americano. Uma significativa parte dos diferentes povos africanos foi trazida para as Américas na condição de escravos. Estes ficaram à mercê das intenções comerciais da metrópole trabalhando nas zonas de agricultura, mineração e nas áreas urbanas como escravos domésticos. De acordo com os estudos de Édison Carneiro 4, sobre a obra de Raimundo Nina Rodrigues, foi observado que os africanos que desembarcaram no Brasil vieram de três principais regiões do continente africano e constituíram dois grupos ou troncos lingüísticos distintos: os Bantos e os Sudaneses. O primeiro grupo (dos Bantos) veio da Angola e de Moçambique. O segundo (os Sudaneses) veio da Costa da Mina (sendo esta subdividida em: Costa do Ouro, Costa do Marfim e Costa dos Escravos) e da Costa da Malagueta. Os sudaneses desembarcaram na Bahia e de lá foram conduzidos para as zonas de mineração, ficando próximos às áreas urbanas. Os Bantos, por sua vez, foram levados para as zonas de agricultura.

Dentre os sudaneses encontravam-se os povos Jêjes e os Nagôs. Estes foram os primeiros que conseguiram organizar seus cultos religiosos, uma vez que, por terem ficado nas áreas de mineração e urbana, conseguiram alcançar em primeiro lugar condições que garantiam suas práticas religiosas, ou seja, algum tempo livre e mecanismos para obter renda, tais como trabalhos extras, venda de comidas, entre outros. Para os Bantos estas condições eram muito difíceis de serem obtidas uma vez que todos os seus esforços e disposição eram consumidos pelo trabalho exaustivo imposto pela prática agrícola. Portanto o Candomblé de Ketu, uma subdivisão Nagô, foi a primeira forma de organização do culto religioso de Matriz Africana no Brasil. Esta ocorreu no ano de 1830, na cidade de Salvador-BA. Assim, foi constituído a Casa Branca do Engenho Velho, também conhecido como Candomblé da Barroquinha. O modelo Nagô acabou se efetivando transformando-se numa espécie de elite religiosa. Sobre este aspecto, Nina Rodrigues foi acusado de criar a idéia da existência de um exclusivismo Nagô. Entretanto tal crença foi adotada sem resistência, por boa parte dos diversos povos africanos que vieram para o Brasil, por estar mais próxima da realidade africana do que o culto religioso do europeu que, à época, se expressava hegemonicamente com o Catolicismo. Sobre isso Edison Carneiro 5 observa que: (...) como reflexo do estado social que haviam atingido na África e do conceito que deles se fazia no Brasil, os Nagôs da Bahia logo se constituíram numa espécie de elite e não tiveram dificuldade em impor à massa escrava, já preparada para recebê-la, a sua religião, com que esta podia manter fidelidade à terra de origem, reinterpretando a sua maneira a religião católica oficial (...) O modelo Nagô foi aceito em toda parte, uma vez organizado o culto. Tal organização do culto Nagô visivelmente deu-se a partir da Casa do Engenho Velho, que posteriormente devido às disputas territoriais do sagrado, ramificou-se em duas bases tradicionais que são elas: Ilê Axé Gantois e Axé de Ôpô Afonjá. Para aclarar a hegemonia do culto Nagô, a historiografia brasileira dessa religião assevera que a disputa por território constituiu o maior fator de desmembramento do Engenho Velho. Nesse espaço triagonal, o Engenho Velho emerge como centro difusor, as demais casas se formaram por conflitos entre Iyalorixás, em que o poder dentro da religião, a posse do seu próprio território e o direito de 2

posse dos assentamentos do antigo centro difusor marcaram a posição que os terreiros da Bahia passaram a designar após 1830. Para Carneiro 6, o Candomblé do Engenho Velho deu, de uma forma ou de outra, nascimento a todos os demais e foi o primeiro a funcionar regularmente.[...] três negras da Costa, de quem se conhece apenas o nome africano Adêtá (Iyá Dêtá), Iyá Kalá e Iyá Nassô[...] por muito tempo estas três mulheres emprestaram grande brilho à casa. O matriarcado é um dado que promove várias inferências aos debates sobre gênero para a religião em questão. Ao retomar a própria dissensão do Engenho Velho, as filhas dessas matriarcas constituíram as bases das filiações que se propagaram no território brasileiro, sob formas diversas de cultos e ritos que se constituíram a partir da base tríplice tradicional. O Candomblé se estrutura por uma densa tessitura de elementos que se amalgamam por aspectos: espaciais/territoriais, naturais, religiosos, culturais e sociais. 2. O CANDOMBLÉ EM SUA ESSENCIALIDADE... As crenças africanas estão diretamente ligadas ao culto aos elementos da natureza: às águas (doce e salgada), ao fogo, às matas, aos alimentos, dentre outros. No contexto do Candomblé cada campo da natureza se torna um domínio de um Orixá, ou seja: de um deus africano. Orixá é energia. Porém, este assume no imaginário social formas humanas, materializadas, em seus princípios femininos e masculinos. Assim, por exemplo, a Orixá Oxum será concebida como a deusa das águas doces, dona do amor, patronesse da fertilidade e personificada numa mulher com seios fartos, corpo escultural e possuidora de docilidade. Já o Orixá Oxossi será concebido como o dono das matas, o caçador, aquele que torna possível que o alimento esteja à mesa, ele será um homem forte e viril. Os arquétipos que os orixás assumem nesse ideário social, foram estudados pela antropóloga Rita Laura Segato 7. Em seu estudo refere-se a uma relação existente entre a equivalência que se estabelece entre os membros e os orixás do panteão sobre as bases familiares de comportamento entre uns e outros[...] os orixás servem como uma tipologia para classificar pessoas de acordo com a personalidade 8. 3

Estes são associados em suas características místicas com aquelas ditas da personalidade humana. No processo de iniciação, cada membro assenta seu Orixá no ori a cabeça. O neófito, ao iniciar, vincula-se a essa religião como filho de um Orixá e a um zelador de santo que passa a formar uma quase inseparável rede que reproduz o modelo orgânico familiar. Com esse ato, compõe-se a rede de filiação que é a base do Candomblé, ou melhor, território-terreiro, Orixá, pai/mãe e filhos. O Candomblé, ainda necessita, para sua prática e vivência, inúmeros ritos e cultos. Neste sentido o Candomblé foi idealizado como uma religião em que se cultuam os Orixás em forma de oferendas e rituais como meio para agradecer as dádivas e as conquistas alcançadas. Além disso, expressa o louvor à presença do Orixá e é, também, um mecanismo para a manipulação do sagrado, sendo este em seu contexto, intrinsecamente ligado aos elementos da natureza. De acordo com Édison Carneiro 9 o objetivo principal do Candomblé parece ser a presença dos Orixás entre os mortais. Como mencionado acima, isso só se torna possível quando o fiel passa por um rígido e complexo ritual de iniciação e este ocorre, espacialmente, dentro do Ilê Axé 10. O Ilê Axé se constitui como um espaço carregado de símbolos sagrados. Cada parte do seu território assume uma dimensão material sacralizada, como por exemplo: os assentamentos dos Orixás, os jardins, a vegetação, o barracão que abriga o altar (Peji), as camarinhas (ou quartos de santos), o rundeme (local em que o candidato à iniciação permanece até o dia de sua Saída), a cozinha (onde são preparados os alimentos que serão oferecidos aos Orixás), dentre outros. Outro aspecto importante é o do Candomblé ser uma religião iniciática. Nesse sentido, sua composição assume uma organização hierocrática na qual as relações de poder ficam pautadas no tempo de iniciação do praticante. Desta feita, quanto mais tempo de iniciação o praticante tiver mais poder dentro da religião ele terá. Esse poder vem através do conhecimento dos fundamentos e dos Orôs 11 da religião. Depois da iniciação, o fiel, deve pagar obrigações para o seu Orixá. Estas assumem, também, o aspecto de confirmação da iniciação. De modo geral, o iniciado deve pagar quatro obrigações para obter o título de êbomi (filha ou filho de santo com mais de sete anos de feitura). Estas obrigações são pagas quando se completa o 4

primeiro, terceiro, quinto e sétimo ano de iniciação, respectivamente. Passar para a condição de êbomi permite, entre outras coisas, que o iniciado tenha seus próprios filhos de santo, conduza uma cerimônia de Candomblé, assuma determinados cargos na Casa, além de ter permissão de abrir o seu próprio Ilê. Para além disso significa sua independência em relação ao seu pai/mãe de santo. Sobre essa rede hierárquica, a senioridade é um aspecto que no Candomblé, em sua estruturação interna, passa a ser a condição de respeito e reconhecimento para aqueles que obedecem. Seu território é permeado por um espaço fechado, em que, a rede de iniciados deverá cumprir gradualmente esses níveis. Para quem é do Candomblé a permanência em um Ilê Axé poderá ser a possibilidade de apreender os conhecimentos que garantem poder e posição de respeito entre os próprios praticantes. O conhecimento é a força existencial para quem pratica a religião, para curar tem-se que saber matar esse saber, ainda em sua maior parte, se obtém pela oralidade, proximidade e permanência junto aos zeladores. Mesmo em espaço fechado o Candomblé articula outras redes sociais. A abertura dessa religião acontece com as festas, as quais se desvelam ao público como um momento de socialização. 3. CANDOMBLÉ É FESTA... A palavra Candomblé no momento de sua constituição significou, apenas, a ocasião em que se realizavam o louvor aos Orixás. Com o passar do tempo e a popularização da religião, esta passou a significar o próprio lugar em que se realizam os cultos. A festa no Candomblé, na perspectiva da antropóloga Rita Amaral 12 (...) é uma das mais expressivas instituições dessa religião e sua visão de mundo, pois é nela que se realiza, de modo paroxístico, toda a diversidade dos papéis, dos graus de poder e conhecimento a eles relacionados (...) Nela não encontramos apenas fiéis envolvidos na louvação aos deuses; muitas outras coisas acontecem na festa. Nela andam juntos a religião, a política, a economia, o prazer, o lazer, a estética, etc.. 5

Nessa linha de pensamento a autora menciona que, o espaço religioso do Candomblé extrapola a dimensão puramente sagrada e abarca, de modo universal, a sociabilidade humana nas suas mais variadas composições, sem negar o espaço sagrado, a vivência e a experiência humana. Pelo contrário, esta é privilegiada pelo entendimento de que: a vivência da religião e da festa é tão intensa que acaba marcando de modo profundo o gosto e a vida cotidiana do povo-de-santo. A religião passa a se confundir com a própria festa 13. As festividades candomblecistas também se constituem como espaços provedores da alteridade. Nestes são promovidos encontros que tanto primam pelo aspecto sagrado/religioso quanto pelo social que acabam sendo basilares para a experiência humana. Nelas ocorrem os encontros entre o Eu com o Outro, entre o Eu com o Orixá, do Outro com o Orixá e dos Orixás entre si (visto que há o transe, e nele o iniciado recebe o seu Orixá). Além disso, estas se tornam espaços para a afirmação identitária/territorial de minorias sociais, tais como os homossexuais. A rede de relações que a festa do Candomblé estabelece pode ser analisada na formação de territorialidades interpostas/sobrepostas. Para aquelas constituídas em uma interposição, pode-se aqui inferir sobre a inserção e domínio em termos de liderança desta religião, hoje notadamente garantida pelos homossexuais. Estes, por sua vez, encontram no Candomblé uma elevada posição de poder, em virtude do sério exercício de senioridade que a religião requer. A hierocracia religiosa passa a dar ao segmento homossexual a garantia de autoafirmação em termos de orientação e inserção social/política, além de respeito junto a uma rede significativa de seguidores. Estes últimos obedecem a seus zeladores em decorrência do domínio exercido pelo cargo de Babalorixá ou Iyalorixá, que para a cosmovisão desse credo, formado por um sistema autocrático, compara-se ao cargo de um Papa católico. Em termos das sobreposições territoriais, as festas promovem um ambiente diverso em termos de ajustes sociais, laços de solidariedades, disputas por espaço, legitimidade e inversão social. A sobreposição é estabelecida quando se analisa todo o processo de organização e realização de uma festa, uma vez que os vetores que promovem a dinâmica são plurais e dissonantes. 6

O calendário festivo desta religião é constituído por festividades fixas e não fixas. Os festejos fixos seguem toda uma orientação permeada por elementos míticos e tem suas datas relacionadas às festividades católicas. Este fato decorre de que muitas Casas, com o objetivo de rememorar os tempos da escravidão, se reaproximam do sincretismo religioso (neste caso o que justapõe as divindades africanas dos santos católicos). Assim, provavelmente, tem-se um calendário fixo no Candomblé na seguinte disposição: FESTA ORIXÁ DATA SINCRETISMO COM OS SANTOS CATÓLICOS Padê Exu Início das festividades, depois das Águas de Oxalá, geralmente no mês de fevereiro Feijoada de Ogum Ogum Entre os meses de março e abril XXXXXXXXXXXXXXXX São Jorge Fogueira de Xangô Xangô Junho São João e São Pedro Olubajé Omolú Agosto São Lázaro Águas de Oxalá Oxalá Entre setembro e janeiro (fim do ciclo festivo) Jesus Cristo Outras festas podem ser celebradas no contexto do Candomblé, tais como as consagradas a Ibeji (sincretizados como os gêmeos católicos Cosme e Damião) em setembro, o Ipetê de Oxum (N.Sra. da Candelária) e o Acarajé de Iansã (Sta. Bárbara) em dezembro e as festa consagradas a Iemanjá que freqüentemente ocorrem entre os meses de dezembro e fevereiro. Para além dessas festas, no Ilê ocorrem as que homenageiam o Orixá patrono do Terreiro, o Orixá da mãe/pai de santo e as de obrigações dos filhos da Casa, bem como as de aniversário dos Orixás e de oferenda aos mesmos. É certo que tais festas consomem significativamente tempo, mão-de-obra e recursos financeiros para que sejam realizadas. Um exemplo disso é a festa Águas de Oxalá, esta tem duração de quinze dias. Nela todas as águas das quartinhas da Casa são trocadas em rituais fechados que se estendem pela madrugada afora. Ademais, são realizados sacrifícios de animais para Oxalá. 7

No contexto dos trabalhos que antecedem as festas toda uma logística deve ser garantida. Deve-se alimentar e acomodar os praticantes que estão trabalhando no Ilê, o que significa despesas extras com o fornecimento de água, energia elétrica e alimentação. Entretanto, tudo é feito com muita alegria na perspectiva de que esse trabalho é realizado para prestigiar o Orixá e agradá-lo. Outro aspecto fundamental é o da inversão social que o culto do Candomblé assume, seja no contexto da festa como no cotidiano da vida do Ilê. Tanto a geógrafa Aureanice de Mello Corrêa (2005) quanto a antropóloga Rita Amaral (2005) ressaltam essa característica ao observarem que os iniciados, quando em transe com o seu Orixá, saem de sua condição humana e social (seja ela qual for) e passam a ser um deus, visto que, por meio de si, baila o seu Orixá. No cotidiano do Ilê esta inversão é vivenciada nas relações de poder que são estabelecidas obedecendo a um sentido hierocrático. Neste, o que vale não é a condição social do iniciado e sim o seu tempo de iniciação e as obrigações que já foram pagas. 4. MOMENTO DA FESTA, ORIXÁ EM TERRA... O Xirê é o momento organizado para que os Orixás desçam à Terra para celebrarem junto aos seus filhos a vida com alegria e festividade. Esta é a ocasião em que a festa se desvela publicamente. É ao toque dos atabaques (Rum, Rumpí e Lé) que se estabelece a ligação entre o Orum (morada dos Orixás) e o Ayê (a Terra). Para tanto, a mãe ou o pai de santo utilizam um instrumento chamado adjá (pequena campa de cabo longo) para provocar a chegada dos Orixás. Os iniciados adentram o barracão compondo uma roda ordenada hierocraticamente, sempre se iniciando pelo mais velho, pai/mãe de santo, entremeada pelos êbomis, equedes (mulheres que não entram em transe e que ficam auxiliando os Orixás) e sendo finalizadas pelos iaôs (praticantes com menos de sete anos de iniciação) e abiãs (pessoas não iniciadas que participam do culto e de algumas funções na Casa). Sobre isso Amaral afirma que: Desde a entrada da roda-de-santo no barracão, portanto, todos os papéis religiosos são vividos intensamente, numa atuação sincrônica, cujos elementos ordenadores são dados pelo Xirê (...) Assim que o 8

orixá vira, outros papéis são acionados: a equede deve acompanhálo, vesti-lo, secar-lhe o suor do rosto e dançar com ele, a mãe ou o pai de santo que devem receber a reverência do orixá, os alabês que devem saber o quê e de que modo deve ser tocado para aquele orixá 14 (...). Se não existe Candomblé sem festa também não existe Candomblé sem música. No Candomblé de Ketu as músicas são cantadas na língua Ioruba. Elas expressam os feitos dos Orixás, seus mitos e suas lendas. Geralmente as festas se iniciam com o Padê (despacho) para Exu (porque este é o Orixá que está mais próximo dos seres humanos, podendo levar seus pedidos para os demais Orixás, ademais é um pedido de licença para que tudo ocorra bem) e se finalizam com cantigas para Oxalá porque ele é o pai de toda a criação. Nesse ínterim, toca-se e dança para outros deuses do panteão africano, sendo eles: Ogum, Oxossi, Omolú, Ossaim, Oxumarê, Xangô, Ogum, Logun Edé, Iansã, Obá, Nanã e Iemanjá. Neste contexto, os mitos são vivenciados nos ritos garantindo, assim, a existência do culto. Em meio a toda essa festividade e celebração, que se realiza envolta de elementos esteticamente ricos que vão desde as paramentas dos Orixás à ornamentação do barracão, está o espectador, o visitante. Neste momento público, o Candomblé encontra a sua principal via de renovação porque é exatamente ali que é despertado o interesse dos futuros iniciantes no culto. Desta feita, o Candomblé não assume diretamente um caráter proselitista, mas seduz, desperta o interesse do observador provocando-o a querer conhecer melhor sua realidade religiosa, seja ao fazer um jogo de búzios ou realizar limpezas espirituais, como, por exemplo, os ebós. 5. APÓS O TRABALHO... As festas realizadas por todos os grupos, inclusive os urbanos, por vários motivos, desempenharam um papel muito mais importante na cultura do que se costuma admitir. A festa é um encontro social, momento de contato, ali a multiplicidade de anseios, valores e crenças dos grupos, parcialmente se une ao sentido hierofânico de cultuar o Orixá. Na condição de encontro social ela também instiga novas posicionalidades ao tratamento não somente das festas de Candomblés, mas da própria cultura que representa. Historicamente, esta ainda se encontra semanticamente negativada por 9

conhecimentos impostos por culturas hegemônicas, o que promove repensar esse conhecimento no seio de outra construção de saber que se volte à diversidade cultural. É imprescindível mencionar que a diversidade cultural nesse texto, não é entendida como uma associação de termos que primam por considerar as diferenças por meio de ações universalizantes, pelo contrário ela se apresenta em um pensamento liminar, em que essa diversidade assume a concepção de diferença a partir de um árduo exercício de alteridade. O eixo em que se inseriu o texto caminha para atentar sobre a possibilidade de uma política direcionada aos grupos étnicos e para valorização da cultura, por meio de uma ação que promova as manifestações culturais socialmente produzidas por grupos minoritários no Brasil. NOTAS 1 Essas análises são parte de discussões preliminares gestadas nos Projetos de Pesquisa: Igbadu: A História do Candomblé em Goiás, liderado pela Profa. Dra. Eliesse dos Santos Teixeira Scaramal e Mães de Santo: Domínios Territoriais, Sociais e Históricos do Sagrado em Goiânia, liderado pela Profa. Ms. Mary Anne Vieira Silva. Ambos os projetos são financiados pela FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) e executados pela equipe de pesquisadores do CieAA (Centro interdisciplinar de estudos África-Américas) sediado pela Universidade Estadual de Goiás/ UnUCSEH. 2 Docente e Coordenadora do Curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás Anápolis; Coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas (CieAA) e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Goiás IESA/ UFG. Sob a orientação da Profa. Dra. Maria Geralda de Almeida. 3 Bolsista/Estagiária do PVIC/CieAA. Graduanda em História pela UEG/UnUCSEH/Anápolis. Sob Orientação Profa.Ms. Mary Anne Vieira Silva. 4 CARNEIRO, E. Candomblés da Bahia. Editora TecnoprintS/A, 1948 5 Op. cit. pp.16-17. 6 Op.cit. (1948, p. 30) 7 SEGATO, R.L. et. all. Inventando a natureza: família, sexo e gênero no Xangô do Recife. IN: Candomblé, Religião do Corpo e da Alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro, PALLAS, 2000. 8 Op.cit. (2000, p. 49) 9 Carneiro. Op.cit. p. 71 10 Também conhecido como Terreiro de Candomblé e Roça de Santo. 11 Conhecimentos vistos como segredos. 12 AMARAL, R. XIRÊ: O modo de crer e de viver no Candomblé. São Paulo, Educ/PALLAS, 2005, p.30 13 Idem. Ibid. p.30 14 AMARAL, (2005, p.51) 10