A INFÂNCIA EM SEU UNIVERSO SINGULAR: PROTAGONISMO E REFLEXIVIDADE Gianine Maria Pierro (1); Maria da Conceição Passeggi (2) (Pós Doutoranda PPGED/GRIFARS/UFRN FFP/UERJ gianine@oi.com.br) (Profª Titular PPGED/GRIFARS/UFRN mariapasseggi@gmail.com) RESUMO Esta comunicação se volta para as questões do protagonismo infantil, destacando o olhar e reflexões sobre a escola contadas por alunos de escolas de periferia na rede pública de ensino na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Nossa intenção é dar visibilidade à infância através de suas vozes, destacando a reflexividade da criança para pensar o mundo, o papel da escola e a produção do conhecimento. Para tanto dialogamos com o pensamento de Bruner, Josso, Passeggi, Pino. A metodologia referida na pesquisa autobiográfica utiliza as rodas de conversa, propostas por Passeggi (2011), das quais participam de 5 a 6 alunos com idade entre 6 e 10 anos, em escola pública de Ensino Fundamental. Nesses encontros são contadas histórias utilizando livros ou vídeos de historias infantis. Nas rodas de conversa as crianças narram, desenham, refletem e apresentam proposições através da produção de histórias ou vídeos, considerando suas experiências nas instituições educacionais reais onde frequentam e estudam, reconhecendo suas formas específicas de ver e representar o mundo, assumindo o lugar de novas gerações de atores sociais, posição política e ética com a qual nos identificamos. Os resultados que vamos encontrando nesta investigação reafirmam a dimensão antropológica e social, a diversidade e a pessoalidade da infância, como também das infâncias, rompendo com a naturalização de que só os adultos pensam e refletem sobre infância e educação, desafio sobre o qual nos debruçamos nesta pesquisa. Palavras-chave: Pesquisa autobiográfica; Protagonismo infantil; Reflexividade; Rodas de conversa.
INTRODUÇÃO Um homem nunca é um individuo; seria melhor chamá-lo um universo singular Franco Ferrarotti Nesse texto pretendemos cruzar caminhos e olhares sobre os estudos da infância, à luz das ciências humanas, contribuindo para o campo da educação e seu manancial teórico através dos estudos sobre as pesquisas autobiográficas, suas concepções, dimensões e metodologias. Pensando a Educação como processo e prática significativos nas relações sociais, a problemática que se coloca pretende, com a criança e seus olhares dignos de interesse, tornar visível o lugar de sujeito e de mediador nos processo de aprender, nas reflexões sobre a cultura e a escola e assim levantar algumas bandeiras com as quais estamos na luta pela educação: protagonismo infantil, mediações e subjetividade. Esta perspectiva vem sendo incorporada pelas pesquisas do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, AutoBiografia e Representações - GRIPHAR, na UFRN, cadastrado no CNPq, e investigada no projeto Era uma vez um lugar de aprender: olhares, experiências e imaginário de crianças lançados para a escola, que apresenta como justificativa socializar e produzir, junto com alunos e professores do Ensino Fundamental, qualidade ao processo de ensino-aprendizagem, tendo no protagonismo infantil ponto de referência, potencializando interrogações e transformações. Os estudos sobre a pesquisa autobiográfica fundam concepções, dimensões e metodologias e seu aporte assume tanto a perspectiva interdisciplinar como transdisciplinar. A opção em investigar a infância através deste tipo de pesquisa se justificativa porque socializa e produz, junto a professores e alunos, qualidade no processo de ensino-aprendizagem, oferecendo oportunidades de tomada de consciência, potencializando aberturas, interrogações e transformações. Desejamos assim compreender a inserção da criança no mundo da escola, numa perspectiva dialógica entre o estatuto de criança e de aluno, contribuindo para a reflexão sobre cultura escolar
e a cultura da infância focalizando aproximações, conflitos ou distanciamentos, a partir das narrativas sobre o que dizem as crianças sobre a escola. Especificamente nesta comunicação apresentamos as bases conceituais que sustentam esse caminho e o protocolo dessa investigação, com algumas inferências preliminares que foram observadas e vividas na pesquisa, uma vez que os dados estão em fase de análise. A mirada sobre a infância A infância tem sido alvo de atenção e construção de aporte teórico nos diferentes campos do conhecimento. O olhar e a voz da criança, como objeto e elementos de pesquisa, podem compor fontes para colorir ou ilustrar o que se estuda e conhece sobre a infância. Ao rompermos com a naturalização de que só os adultos pensam e refletem sobre a infância e a educação, descortina-se o desafio sobre o qual objetivamos nossa pesquisa: dar visibilidade às vozes da criança através de narrativas sobre suas experiências nas instituições educacionais reais onde frequentam e estudam, reconhecendo suas formas específicas de ver e representar o mundo, assumindo o lugar de novas gerações de atores sociais. No campo da pesquisa com crianças podemos nos surpreender e perceber que estamos longe de atender às demandas da sociedade atual. Para pensar na melhoria da educação básica no Brasil e avançar na perspectiva das políticas educacionais, é necessário dar visibilidade às vozes das novas gerações de atores sociais que ingressam na escola, possibilitando que falem de suas vivencias sobre as instituições educacionais reais que frequentam. Embora alguns autores venham trabalhando na compreensão da criança como sujeito Corsaro (2009), Cruz, (2008) e Sarmento (2005), é possível aprofundar esta compreensão ao nos aproximarmos dos trabalhos de Pino (2005) sobre o caráter cultural do psiquismo humano, estudos embasados na origem social das funções mentais superiores ou culturais desenvolvidos por Vygotski (1998).
A experiência cultural da espécie humana, no entendimento de Pino (2005) é uma condição única e fundante que beneficia a experiência cultural da espécie humana para devir um ser humano1 (PINO, 2005, p.46). Este autor considera que através da aquisição dos mecanismos da cultura o ser humano vive um segundo nascimento, uma vez que o nascimento biológico não garante, por si, só a condição humana, sendo necessário passar do estado de natureza para o estado de cultura. A relação entre a criança e o mundo se firma ao construir significações, com e através da presença do Outro, mediador entre a criança e o universo cultural (PINO, 2005). No entanto entende-se que a criança, neste processo, não será um agente passivo já que ela participa ativamente, de maneira e em graus diferentes, em função do seu próprio amadurecimento biológico e das suas características pessoais, seus desejos e emoções recriando no plano pessoal, os sistemas simbólicos, como condição do seu acesso à cultura. A mediação necessária do Outro (adulto; professor; colega) não impede que seja ela sujeito do processo de internalização das funções culturais, por isso no âmbito da escola nos questionamos sobre o sentido das aprendizagens para a criança, e assim é que nos perguntamos: como a cultura é construída na escola? O que a criança fala de suas experiências de aprendizagem? Bruner (2001) escreve a respeito da constituição social da mente e chama atenção para o papel da escola na promoção da atividade compartilhada, da reflexão, do diálogo e da negociação no contexto educacional. Essas atividades, segundo o autor, se apresentam como formas de equipar a mente com habilidades voltadas à compreensão, à percepção e à ação crítica no mundo social e cultural. Para Bruner (2001) a partir dos elementos da cultura, a criança narra para si mesmo e para o outro o que lhe acontece. (p. 90) Assim ao construir suas narrativas, ela situa ou contrasta seus relatos dentro de um amplo modelo cultural, organizando sua experiência, contando uma história que faça sentido para ela, conferindo significado aos acontecimentos e não necessariamente, para resolver seus dramas. Ao tomar como instrumento de pesquisa as narrativas de crianças da pré-escola e da escola, uma das linhas de pesquisa que desenvolvemos no grupo de pesquisa
GRIPHAR, cuida-se, com rigor, da interpretação do que dizem as crianças para dar sentido ao que aprendem e ao que vivem na escola, servindo-se da noção de reflexividade para questionar as práticas de investigação e os processos de produção de conhecimento sobre a infância. Bruner (2001) levanta detalhadamente, alguns preceitos, mutuamente relacionados, que enfatizam os poderes da consciência, da atividade de reflexão, da amplitude de diálogo e da negociação no contexto educacional e que falam da necessidade de equipar as mentes com habilidades para compreender, sentir e agir no mundo cultural. (BRUNER, 2001, p. 46). Assim o recurso das narrativas se apresenta como um instrumento privilegiado onde a percepção da criança sobre a cultura escolar indica possibilidades, caminhos e melhoria do sistema educacional na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. A voz das crianças não deve ser encoberta pelas interpretações e generalizações do adulto, ao contrário desejamos a interlocução como metodologia no trato de dados e informações e de legitimação da criança como ser capaz de refletir sobre suas experiências ao narrar suas vivências, porque enraizadas em suas realidades e na diversidade cultural do país. A mirada da infância nas rodas de conversa Na convivência com a escola pública onde realizamos esta pesquisa, situada no município de São Gonçalo do Amarante, no Estado do Rio de Janeiro, percebemos um ambiente dinâmico onde alunos, professores e funcionários interagem na busca de reinventar um processo de aprendizagem de qualidade, mas que necessita de investimento nas condições físicas e de pessoal, dada a dura realidade que enfrentam as escolas que atendem populações carentes. Nesta escola, com um total de 64 professores trabalhando além daqueles que compõe a equipe de gestão escolar, estão matriculados 911 alunos que estudam da Educação Infantil ao Ensino Fundamental, distribuídos em 32 turmas, sendo 03 turmas de Educação infantil e as outras 29 turmas são freqüentadas por alunos de Ensino Fundamental, do 1º ao 9º ano. Os alunos da escola, se olhados nas suas atitudes cotidianas, são alegres, brincam, correm pelos corredores e rampas, freqüentam suas
salas de aula, carregam e deixam cair mochilas e objetos pessoais, organizam-se em grupos, conversam bastante entre eles, se relacionam com os adultos da escola, dominam os espaços do prédio no dia a dia das relações e rotinas que vivem na escola. Estamos participando com muita freqüência das atividades e da dinâmica da sala de aula construindo vinculo com crianças e professoras. Nesta escola temos três turmas de cada ano escolar com 25 a 30 crianças na lista de presença, porém a freqüência dos alunos varia bastante. Como metodologia realizamos as Rodas de conversas (Passeggi et alli 2014) com contação de histórias explorando o universo imaginal e da sensibilidade onde a memória e a narrativa se encontram. As rodas são fotografadas e gravadas em vídeos. As histórias no formato de vídeos ou filmes 1 de pequena duração, foram selecionadas considerando o interesse e a faixa etária / ano escolar, seja para alunos das turmas de 1º ano (crianças entre 6 e 7 anos) ou para os alunos do 2º ano (crianças com idade que variam de 8 a 10 anos) Depois da apreciação do vídeo são propostas às crianças que desenhem sua escola para contar, ao personagem da história, como sua escola é, o que fazem e vivem ali. Enquanto desenham as crianças conversam sobre diversos assuntos: a história que assistiram; a sua sala de aula; sobre a interação com os objetos plásticos (lápis de cor; hidrocor; papel ofício); sobre características dos colegas; sobre seus desenhos e sobre as atividades na escola. Como protocolo de pesquisa as crianças, em horário escolar, atendendo à dinâmica do professor para tarefas de grupo, são dividas em grupos variam de 5 a 6 crianças de cada vez. Assim todas as crianças da turma têm participado das rodas de conversa. Este processo está organizado em etapas sequenciais: inicialmente passamos o vídeo, depois enquanto conversam as crianças desenham como é sua escola. Num segundo momento escaneamos seus desenhos e apresentamos para elas, bum segundo 1 Vídeos: Onda, de Susy Lee. Ed Cosac Naif. 2008 para as turmas do 1º ano A menina que odiava livros de Manjusha Pawagi e Jeanne Franson para as turmas de 2º ano www.youtube.com/watch?v=geql2czxr7q
momento da rodas de conversa, seus desenhos em forma de video, a fim de que analisem e reflitam sobre o que e como seus desenhos apresentam a escola. De acordo com Passeggi et al (2014, p 10) pela reflexividade autobiográfica, a criança dota-se da possibilidade de se desdobrar como espectador e como personagem do espetáculo narrado; como pensador e como objeto pensado; enfim, como objeto de reflexão e como ser reflexivo. Esta afirmação nos impulsiona na busca por novas questões epistemológicas, éticas e de métodos na direção do que hoje compreendemos por pesquisa com crianças, numa relação dialógica entre o ser e a representação de si. As representações através das narrativas e dos desenhos têm como intenção capturar e compreender as experiências que fazem com que crianças se apropriem e se façam sujeitos na escola, como forma de biografização. Do ponto de vista teórico e epistemológico, DeloryMomberger (2012), admite como princípio que o humano apreende e vive cada instante de sua vida como o momento de uma história: história de um instante, história de uma hora, de um dia, de uma vida. (p. 525) Tomar as narrativas como objeto de reflexão é acreditar que, no âmbito da educação, elas compõem um método de construção do conhecimento que fundamentam a reflexão. Essa noção transfere-se para a concepção da educação como construção e reconstrução de histórias pessoais e sociais, transversalizando e revelando cenas comuns e experienciais do cotidiano escolar afirmando a singularidade dos processos de aprendizagem e formação. Nessa etapa de transcrição das fitas e das gravações que foram realizadas nas rodas de conversa, diante da qual nos deparamos neste momento, para a análise desses achados usaremos como eixos duas temáticas: `Era uma vez um lugar de aprender...` e `Onde tem escola tem criança?`
CONCLUSÃO No mundo ocidental a escola tem um importante lugar já que lhe é atribuída grande parte da responsabilidade pela educação de crianças e jovens e pela transmissão de conhecimento, produzindo significados e contextos, no amplo sentido de cultura. No processo de inserção da criança no mundo da escola, a socialização e a subjetivação, são duas faces indissociáveis e que nos trazem perguntas, conflitos e contradições sobre a cultura escolar e a sua missão, quanto às políticas educacionais, a cidadania, as perspectivas conteudísticas da escola e as perspectiva da criança. Por isso nos aproximamos da escola vivida/construída/pensada por crianças. Uma escola onde brotam demandas sugerindo que mesmo diante de tantos desencontros e desafios ainda seja possível produzir, encontrar energia para ressignificar a escola e a aprendizagem confirmando que o diálogo com as novas gerações é uma escolha política e ética, ainda que a atualidade esteja impregnada por uma percepção da infância construída em torno do que a criança poderá ser, o seu devir. Outra perspectiva que está sendo reafirmada nesta investigação é a dimensão antropológica e social, a diversidade e a pessoalidade da infância, como também das infâncias, ao romper com a naturalização de que só os adultos pensam e refletem sobre infância e educação. Na abertura deste texto trouxemos o pensamento de Ferrarotti (2014) com o qual compartilhamos e ampliamos nossa visão da infância: consideramos cada criança um universo singular e com ela pretendemos revisitar a escola e suas aprendizagens na arena onde se encontram a prática singularizante do homem e o empenho universalizante de um sistema social.
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