1 Introdução A literatura em ex-colônias portuguesas.



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Transcrição:

10 1 Introdução A literatura em ex-colônias portuguesas. Dos pontos de vista histórico e político, Brasil e Angola mantêm laços evidentes em relação às suas formações culturais. A conexão do Brasil com a África remonta aos tempos da escravidão, tendo sido iniciada no século XVII, e encerrada apenas após 1850, com o fim do tráfico negreiro no Atlântico Sul. 1 Durante o ciclo negreiro, a dependência do Brasil em relação, principalmente, a Angola, de onde vinha a maior parte dos escravos, era muito grande, de acordo Luis Felipe de Alencastro, que ressalta que a construção do Brasil se fez à custa da destruição de Angola. 2 O período de escravidão deixou marcas profundas no país. No âmbito sócio-político, o tráfico de escravos facilitou o extermínio das aldeias indígenas, tornadas desnecessárias, e gerou entre os senhores de engenho, os fazendeiros e o próprio governo, uma brutalidade e um descompromisso social e político que até hoje caracterizam as classes dominantes brasileiras. 3 Sem querer amenizar os estragos provocados pelo processo de escravidão tanto em Angola quanto no Brasil, mas sob outra perspectiva, vale ressaltar que o longo período caracterizado pelo comércio e exploração humanos resultou também no ingresso de costumes, tradições, línguas e rituais africanos no país. Nesse sentido, as afinidades culturais entre o Brasil e os países africanos de Língua Portuguesa vão muito além de suas trajetórias literárias. Todavia, tomando a literatura como objeto principal de estudo, esta ocupará lugar central no desenvolvimento das idéias que integrarão esta dissertação. A relação entre a literatura e a formação da identidade cultural do Brasil e de Angola apresenta aspectos semelhantes em diversos momentos, ainda que em 1 ALENCASTRO, Luis Felipe de. Com quantos escravos se constrói um país? In: Angola é aqui: nossa história africana. (Revista de história da Biblioteca Nacional). Ano 4, nº 39, dezembro de 2008, p. 18. 2 Ibid, p. 20. 3 ibid.

11 épocas distintas. Passados os anos de escravidão, reafirmaram a necessidade de estreitar seus laços, mas em um novo contexto, no qual o Brasil não representa mais a destruição, e sim a reconstrução. Depois da Segunda Guerra Mundial, os movimentos para libertação de Angola do domínio colonial português foram crescentes. Através da publicação de revistas e de outras manifestações escritas, jovens se reuniam na efervescente Luanda com o objetivo de resistir à dominação portuguesa. Sob esta perspectiva, o Brasil era uma grande fonte de inspiração: Panfletos e livros de formação política (incluindo textos católicos), revistas como Manchete e O Cruzeiro, e romances de escritores afinados com uma concepção marxista, como Jorge Amado (especialmente O Cavaleiro da esperança e Jubiabá) e Graciliano Ramos (sobretudo Vidas Secas), atravessaram o oceano pelas mãos de trabalhadores marítimos, exilados do regime ou estrangeiros. 4 Desse modo, percebe-se que o diálogo cultivado entre Brasil e Angola, ou seja, as influências recíprocas que vão se moldando ao jeito de cada país, seu ritmo e seu povo, com o objetivo de criar uma relação mais estreita entre eles, é muito proveitosa para os dois países. Assim como acontece com as literaturas de outras regiões compreendidas durante muito tempo como periféricas, a literatura angolana tem inegável relação com o percurso histórico do país. Os primeiros textos produzidos no país são desenvolvidos num contexto colonial, tendo sido marcados pela resistência necessária para a constituição da identidade cultural angolana, principalmente no final da década de 40, quando, através da poesia, o empenho político pela independência do país viria a se revelar. A literatura angolana foi desenvolvida tardiamente por diversos motivos de ordem política: o analfabetismo predominante no país durante o século XIX 5 somado às repressões sofridas pelos poucos jornalistas e escritores e seus textos combativos escritos na época dificultaram o florescimento e estabelecimento de um sistema literário angolano propriamente dito, de acordo com Óscar Ribas 6. Daí 4 BITTENCOURT, Marcelo. Conexão Brasil. In: Angola é aqui: nossa história africana. (Revista de história da Biblioteca Nacional). Ano 4, nº 39, dezembro de 2008, p. 27. 5 RIBEIRO, Gilvan Procópio. O signo do fogo, romance polifônico In: Vozes (além) da África: tópicos sobre identidade negra, literatura e história africanas. Minas Gerais: UFJF, 2006, p. 94 apud SANTILLI, 1985, p. 9. 6 LABAN, Michel (org.). Entrevista com Oscar Ribas (31-7-1984). Angola Encontro com escritores. Vol.1. Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, 1991, p.16.

12 a importância da afirmação da cultura nacional que pressupõe, entre outras coisas, a criação de padrões de alfabetização e o estabelecimento de uma língua vernacular como principal meio de comunicação da nação. Por volta de 1870, uma parcela da sociedade despertou para a necessidade da formação de uma literatura nacional. Mas só a partir de 1975 o projeto literário proposto firma-se, apontando não mais para o exotismo regional literário do século XIX, nem para a busca da angolanidade dos textos, meta da década de 40, mas sim para a formação da nacionalidade angolana, uma situação social mais ampla e amadurecida que revela a necessidade de se alcançar uma consciência nacional. Antônio Cândido afirmava que apesar de toda obra ser pessoal por nascer de uma confidência, a literatura [...] é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma comunicação. 7 Esse lugar a que se refere Cândido, nos casos brasileiro e angolano aqui assinalados, é o de país colonizado, e o momento é a história de cada um desses países em relação ao processo colonial. Empenhados na conquista de suas autonomias culturais, Brasil e Angola, tendo em comum o processo de colonização portuguesa, encontram como um dos espaços de resistência, a Literatura. É nesse espaço, que conta com o poder da palavra como suporte, que a produção angolana toca na literatura brasileira, cuja produção serve, em determinado momento, como um espelho em que os angolanos gostavam de se mirar, procurando, contudo sua própria face. 8 Ou seja, o grande problema não seria a influência de outros países, pois Angola encontra na literatura brasileira uma influência saudável. É mais que evidente que o mal maior seria a imposição de uma influência, como é o caso da imposição portuguesa. As literaturas brasileira e angolana apresentam semelhanças em determinados momentos do processo de afirmação de suas literaturas nacionais. Considerando-se, evidentemente, as diferenças histórico-temporais e sócioculturais dos dois países, a busca por uma identidade cultural distinta da do 7 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Ouro Sobre Azul, 2006, p.147. 8 CHAVES, Rita. Angola e Moçambique Experiência Colonial e Territórios Literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p.71.

13 colonizador apresenta duas fases 9 : uma de rebeldia, pouco amadurecida e sem muito sucesso; outra mais consciente e confiante, que oferece novo rumo às literaturas nacionais dos dois países. No caso angolano, esta última fase, representada pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, desencadeia um terceiro movimento que vai além da afirmação da literatura nacional: reflete sobre a formação da nacionalidade do país. A Literatura Brasileira, na lenta maturação da nossa personalidade nacional 10, limitou-se, durante todo o século XIX, a produzir textos espelhados na produção literária de Portugal, ainda que o modelo português sofresse também influência francesa e inglesa. De qualquer modo, é o tom literário português que rege a literatura brasileira durante longos anos. O período em que culmina a rebeldia e a conseqüente negação dos valores portugueses na literatura brasileira se apresenta com o Romantismo, em 1836, passados quatorze anos da independência do país. Apesar da tentativa de superar a influência portuguesa, continua seguindo o modelo europeu. Contudo, e como era de se esperar, o intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra [...] ante particularidades de meio, raça e história nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe propõe [...]. 11 O romantismo literário brasileiro do século XIX, portanto, numa tentativa de se auto-afirmar, manifestou-se através da negação dos valores portugueses, ainda que sem sucesso. Tempos depois, autoconfiante e amadurecido, o Modernismo, já no século XX, muda a forma de pensar a ex-metrópole, ou melhor: assinala o fim da posição de inferioridade no diálogo secular com Portugal e já nem o leva mais em conta. 12 Assiste-se à afirmação de traços europeus em nossa formação, sim, contudo afirma-se também a essência nacional: a representação do índio, por exemplo, a partir de então, não é mais europeizada e a mestiçagem não é mais ignorada. O Modernismo tenta romper o sentimento de inferioridade que envolve a nossa cultura e procura instaurar um sentimento de triunfo. Acredito que processo semelhante se deu no âmbito da literatura angolana. Grande parte da produção do país, no período compreendido entre 1870 e meados 9 CANDIDO, Antônio. op. cit. p.118-127. 10 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Ed. cit.. p.118. 11 Ibid. 12 Ibid., p. 127.

14 do século XX, assim como o romantismo brasileiro, caracterizava-se pela exaltação das belezas naturais da terra, da fauna e da flora, evidenciando as paisagens e a sensualidade das mulheres negras. Com um tom de exotismo e de pouca criatividade, foram poucos os que conseguiram esquivar-se dos paradigmas do cânone colonial que dominava o país, de modo que a almejada ruptura com os modelos de produção textual portuguesa não foi plenamente alcançada. A seguir a esse período, as produções que surgem entre 1948 e 1975 pretenderam estabelecer fronteiras tanto físicas como literárias, no ímpeto de cadaverizar o colonizador e suas centenárias práticas de apagamento histórico e cultural 13. A produção angolana, nesse momento, se volta para a tradição oral, apreendida como um instrumento sólido para a manutenção do imaginário do país e para a preservação da palavra africana. A partir da década de 60, verifica-se o forte engajamento político da maioria dos autores angolanos. Através da utilização de vozes coletivas e de mensagens políticas, os textos produzidos neste período são como verdadeiras armas de combate. Com o fim da colonização, a busca pela diferença no campo literário persiste, mas a idéia de negação do colonizador cede lugar a novas ideologias e condições estéticas. A língua portuguesa, herança incontestável do colonizador, estabelece-se em grande parte do território angolano, no entanto, [dobra-se] às necessidades de seus novos utentes [fazendo-se] ela própria um instrumento que se volta contra o processo de dominação, abrindo-se para o dialogismo cultural que passa a veicular. 14 Desse modo, à língua portuguesa incorporam-se termos, expressões além de estruturas tanto sintáticas como morfológicas das diversas línguas nacionais, entre elas o quimbundo, muito comum nas narrativas de Boaventura Cardoso e Luandino Vieira, por exemplo, que anunciam os novos contornos da língua que vai se tornando cada vez menos européia e cada vez mais angolana. Em grande parcela dos textos narrativos, a tradição da oralidade continuou servindo como base, mas o plano ideológico apresentou mudanças, apontando para as novas formas de enfrentamento que viriam a constituir a moderna ficção angolana. Assim, tanto a literatura brasileira quanto a angolana, em dado momento, começaram a enfatizar aspectos lingüísticos na produção 13 PADILHA, Laura Cavalcante. Jogo de cabra-cega: ficção angolana e desterritorialização. In: Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002, p. 48. 14 Ibid., p. 51.

15 literária, incorporando a fala coloquial do povo, bem como a oralidade, de modo a refletir o compromisso com a sedimentação de uma nacionalidade cultural. Em relação à literatura contemporânea, e nessa fase inclui-se Portugal ao lado do Brasil e Angola e dos demais países africanos de língua portuguesa, esta é marcada por um descentramento caracterizado pela dissociação entre Estado e nação, que promove a reescrita da última de um ponto de vista social, afastadas as limitações coercitivas do Estado, conforme estudos de Benjamin Abdala Junior. No entanto, o caráter social e crítico dessa fase desvincula-se das ideologias panfletárias e cantos coletivos sociais das décadas anteriores, recorrendo a recursos de metáfora, ironia, paródia e experimentalismos lingüísticos. Na literatura angolana, o romance de Pepetela, Geração da Utopia, é um dos textos que cultiva uma oposição ao Estado; mas não apenas ao Estado colonial, e sim ao Estado como um todo que não estabelece diálogo com a sociedade. Desse modo, ultrapassando as fronteiras do Estado-nação, o escritor angolano situa a pluralidade nacional para além do Estado 15, de modo que o sentimento nacional as especificidades literárias, temáticas e lingüísticas passe a se desenvolver a partir de uma nação reimaginada sob um ponto de vista popular. Afinal, a força do povo, tendo em vista as diferentes experiências, a diversidade social e de objetivos históricos, pode resultar em estratégias de significação deslocadas, isto é, descentradas. O povo, mais que símbolo de um corpo político patriótico ou de eventos históricos, representa uma complexa estratégia retórica de referência social, como escreve Homi Bhabha. Para ele, [o] povo tem de ser pensado num tempo-duplo; o povo consiste em objetos históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no pré-estabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em sujeitos de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através dos qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo. 16 15 ABDALA Jr, Benjamin. Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa: perspectivas político-culturais. In: Revista Metamorfoses nº 1, CJS para Estudos Literários Luso- Afro-Brasileiros/UFRJ. Edições Cosmos e CJS, 2000, p. 117. 16 BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Tradução Eliana Lourenço de Lima Reis [et alii]. 2ª Reimpressão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 206-207.

16 No caso da literatura brasileira, o escritor Jorge Amado é um exemplo desse descentramento que marcou a literatura de ênfase social. O sonho da sociedade socialista manifesta-se em romances lírico-revolucionários que enfatizam a supremacia da sociedade civil e de seus organismos em relação ao poder do Estado brasileiro, segundo Abdala Junior. Vemos assim, em resumo, nas palavras do pesquisador, a perspectiva da comunidade dos países de língua portuguesa, sob mediação social, alargando o sentimento de nacionalidade, sobre as brechas do Estados Nacionais. 17 Tendo em vista a afirmativa anterior, pode-se sugerir que o sentimento nacional cultivado além das barreiras do Estado permite maior aproximação cultural entre os países de língua portuguesa, já que o ponto de vista se desloca, abrindo novas possibilidades de abordagens literárias, lingüísticas e temáticas, possibilitando, assim, a formação de novos reagrupamentos determinados por afinidades culturais 18, como é o caso da constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que, de acordo com Benjamin Abdala Junior, pode ter sido favorecida pelo enfraquecimento dos Estados Nacionais 19, no sentido empregado por Hobsbawm que afirma que hoje os cidadãos estão menos dispostos do que antes a obedecer às leis do Estado 20, tendência que pode contribuir para o cultivo de uma aproximação entre esses países no âmbito cultural. Partindo da busca por suas identidades culturais, seguido da necessidade de afirmação das mesmas, as trajetórias literárias do Brasil e dos países africanos de Língua Portuguesa assemelham-se, ainda que em épocas diferentes, em vários momentos do processo de formação de suas literaturas. Mais além, a literatura contemporânea assinala um ponto de encontro entre as literaturas brasileira, africanas de língua portuguesa, e também portuguesa, representando, em tempos de globalização, não só a possibilidade de fortalecimento dos laços entre esses países, mas também a formação de uma comunidade de afinidades culturais. A integração desses países aponta para o grau de fortalecimento cultural de cada nação que permite a possibilidade de aproximação entre eles, sem 17 ABDALA Jr, Benjamin. op. cit., p. 117-118. 18 Ibid. p. 115. 19 Ibid. 20 HOBSBAWN, Eric. O declínio do império do Ocidente. In: O novo século: entrevista concedida e Antonio Polito. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 37.

17 comprometer as características nacionais de suas culturas, tendo como base o comunitarismo da língua e da cultura, como alternativa, ainda, à globalização hegemônica que, apesar de pressupor trocas culturais baseadas na reciprocidade, continua a preservar a homogeneidade dos grandes centros. O fortalecimento de comunidades culturais, como defende Abdala Junior, poderia ser uma forma de canalizar comunitariamente o processo do mundo pretensamente globalizado para que ele se torne efetivamente globalizado. 21 Seria a hora, portanto, como sugere Boaventura Cardoso, de passarmos das boas intenções aos actos. 22 Como Ministro da Cultura de Angola, o escritor afirma que não há dúvidas de que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é uma comunidade de afectos 23, todavia, a existência de laços culturais e históricos que unem esses países não são suficientes para promover uma fluida circulação de bens culturais 24 nas comunidades. Para a eficácia do projeto proposto pela CPLP são necessárias ações efetivas, de acordo com o escritor, que envolvem o empenho dos Ministérios de Cultura, interesses de empresários, verbas, enfim, uma cooperação mútua entre os países. Vale ressaltar que o Brasil é o sexto maior investidor em Angola 25, o que aponta para o crescente empenho em cooperar com o restabelecimento daquele país, levando em consideração que a desigualdade, exclusão social e exploração do trabalho infantil são aspectos comuns às duas nações. Pareceu-me importante assinalar de forma breve como os percursos literários de Brasil e países africanos de língua portuguesa muitas vezes se encontram no desejo de reescrever sua história, libertando-se dos discursos e influências do colonizador. Apesar das trajetórias literárias de cada país desenvolverem-se cada uma a sua maneira, ao seu tempo e com seu projeto literário próprio, encontram-se em vários momentos do passado e, por fim, na contemporaneidade, em que se registra a construção de um projeto políticocultural muito maior, voltado para as ações mundiais relativas à globalização. 21 ABDALA Jr, Benjamin.. op. cit., p. 121. 22 CARDOSO, Boavetura. Entrevista. In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia; MATA, Inocência (Org.) Boaventura Cardoso, a escrita em processo. São Paulo: Alameda, União dos Escritores Angolanos, 2005, p. 36. 23 Ibid. 24 Ibid. 25 VAN-DÚNEM, José Octávio Serra. Paz para recomeçar. In: Angola é aqui: nossa história africana. (Revista de história da Biblioteca Nacional). Ano 4, nº 39, dezembro de 2008, p. 31.

18 Assim, a aproximação dos processos de formação das nacionalidades culturais do Brasil e de Angola, tendo em vista as trocas culturais realizadas entre esses países, quer iluminar a face do mundo contemporâneo voltada para a idealização de projetos político-culturais que se mostram necessários frente ao crescimento da mundialização da economia capitalista, para usar a expressão de Abdala Junior. 26 Todavia, formada há dez anos, a CPLP ainda não conseguiu atingir seus objetivos, quais sejam, reduzir a distância entre os países de língua portuguesa, promover o intercâmbio cultural entre essas nações, enfim, criar uma comunicação entre os países através de convênios culturais e da cooperação entre seus dirigentes. 27 Segundo Boaventura Cardoso, o diálogo entre as literaturas brasileira e angolana é muito menor hoje do que na década de 50. Naquela época, segundo ele, os livros que chegavam a Angola eram consumidos rapidamente, diferentemente da situação atual que parece bastante desanimadora segundo a afirmação do escritor, que diz que [o] público em geral, no entanto, desconhece a literatura brasileira. 28 Tendo em vista essa situação, de certo modo de retrocesso, o escritor ameniza: algo está a ser feito para que surja a mudança. Os Ministros da Cultura da CPLP estão conscientes dessa realidade, e têm vindo a tomar algumas medidas que reputo oportunas e acertadas, como, por exemplo, a Bienal das Artes Plásticas e do Festival de Música, a cooperação entre os nossos arquivos cinematográficos e a criação do Fundo Cultural da CPLP (por enquanto a depender de financiamentos a agenciar a partir de uma conferência de doadores). 29 O estreitamento das relações entre Brasil, Angola e os demais países de língua portuguesa, portanto, depende não apenas, mas principalmente de ações da esfera política, no sentido de efetivar acordos e convênios que proporcionem um intercâmbio numa via de mão dupla, de modo a que todos os países recebam e ofereçam seus bens culturais na mesma medida. 26 ABDALA Jr, Benjamin. op. cit., p. 114. 27 CARDOSO, Boaventura. Entrevista. In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia; MATA, Inocência (Org.) Boaventura Cardoso, a escrita em processo. São Paulo: Alameda, União dos Escritores Angolanos, 2005, p. 36. 28 Ibid., p. 35. 29 Ibid., p. 36.