PSICANÁLISE E MODA: Uma proposta de discussão sobre a transitoriedade



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Dito isso, vamos ao que interessa para se abrir um escritório contábil:

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Direito a inclusão digital Nelson Joaquim

Transcrição:

PSICANÁLISE E MODA: Uma proposta de discussão sobre a transitoriedade Carlos A. Lugarinho... vamos em frente, ainda mais que antecipar a moda de muitas estações pode ser considerado por alguns como uma infração de nosso verdadeiro dever, que é a de fazer no dia-a-dia. Olhemos o presente e, em vez de prever, vejamos... Marguerite de Ponty, pseudônimo de Stéphane Mallarmé A Psicanálise e a moda confluem na discussão do que vem a ser o transitório, daquilo que deixa marcas que se abrem e se tornam a cada momento novas. Simultânea e intrinsecamente, uma provocação para uma temporalidade que se recria a cada instante. Se para muitos a contemporaneidade está cindida entre a certeza absoluta e o caos total, algumas vozes têm se feito ouvir ao mostrar que, pelo contrário, essa fenda não isola, mas alimenta um tempo-espaço no qual o efêmero, o luxo e o frívolo representados pela moda ganham um status ético inovador. São intensas as mudanças experimentadas a partir do advento da globalização. Talvez a mais destacada, até por estar no bojo desse movimento, seja a virtualidade, a transitoriedade elevada a um nível exponencial. O virtual impregnou as relações sociais a partir da revolução ocorrida nas comunicações a tal ponto que o próprio processo de subjetivação não pode deixar de também absorvelo de algum modo. Isso nos obriga a ponderar de forma rigorosa nossos referenciais teóricos e nossa abordagem técnica, não sendo poucos os que têm insistido nessa seara, nas mais diversas áreas do conhecimento.

Especialmente a Psicanálise, que desde a sua fundação se inscreveu entre os saberes que tratam dos aspectos sociais e culturais que interferem nos processos de subjetivação, encontra-se hoje na posição ingrata, e ao mesmo tempo instigante, de repensar seu papel histórico a partir desse novo paradigma, desse novo (novo?) mal-estar. Freud, em seu poético texto Sobre a Transitoriedade (Freud, 1916), nos aponta com muita agudeza que pensar no que é transitório evoca uma antecipação da morte, o que remete a um luto a ser superado, um desapego a ser experimentado. Este ensaio foi escrito concomitantemente aos seus estudos para a publicação de Luto e melancolia (Freud, 1917) e a ele obrigatoriamente somos remetidos, para considerar o fator tempo como preponderante na tentativa de resolução dos conflitos gerados pela perda do objeto, do mesmo modo em que se encontra associado ao processo de retirada da libido do objeto, cuja escolha foi amplamente determinada por processos de identificação pré-egóica e marcada pela ambivalência, dado como perdido. A partir daí, poderíamos nos perguntar até que ponto a virtualidade, se a consideramos como um vir-a-ser, é um fenômeno estritamente contemporâneo. Será que os processos de subjetivação na atualidade são tão diferentes daqueles propostos por Freud e que posteriormente outros autores como Ferenczi e Lacan levaram adiante, apesar da nítida diluição que constatamos da metáfora paterna? De que modo e em que grau esses processos de subjetivação na atualidade estão submetidos a essas temporalidades, tão diversas dos tempos modernos vividos por Freud e seus primeiros seguidores? Como podemos encarar o sofrimento psíquico, dor permanente, em um cotidiano urdido pelo imediato transitório? Essas e muitas outras são questões que têm nos interessado e movido, tanto no nível individual quanto institucional.

Pensando de forma crítica o lugar da Psicanálise na contemporaneidade, é na leitura dos textos de Gilles Lipovetsky que encontramos, sem dúvida, o mais instigante e inovador desdobramento dessas questões, quando ele dá um estatuto ético-filosófico à Moda, conforme a breve exposição a seguir. A SEGUNDA REVOLUÇÃO INDIVIDUALISTA Se na civilização ocidental a modernidade se caracterizou pela instalação do Estado como fonte de orientação do social, equivalendo-se ou até mesmo suplantando a religião, através do desenvolvimento técnico-científico e do mercado econômico, ela também foi inaugurada pela revolução dos direitos humanos, quando pela primeira vez a sociedade humana toma para si a responsabilidade de responder pelas conseqüências e atos de seus membros sem necessitar de uma causalidade externa para se justificar. Liberdade, igualdade e fraternidade. O que está sendo experienciado na atualidade é outra revolução, ruptura com o anteriormente estabelecido, ao serem esgarçadas ao limite essas conquistas, sem a obrigatória intervenção do Estado. Assim, a tecno-ciência e o mercado são exercidos ao extremo, como extremas são, também, as formas de diversão, onde o limite da sobrevivência é e tem de ser continuamente testado, vide os esportes radicais. O conceito de liberdade se expande ao se individualizar, de modo que, citando Tércio Sampaio Ferraz Jr., a liberdade de um não termina mais onde começa a do outro, mas sim começa onde começa a liberdade do outro (Ferraz Jr., 2005). Em consonância, os rígidos limites impostos à sociedade foram gradativamente sendo derrubados, com o indivíduo conquistando uma autonomia em relação aos ditames sociais, de forma que acabou por descobrir que se ainda

não pode tudo, ele tem acesso a uma quantidade cada vez maior de bens e modalidades comportamentais, bastando-lhe fazer as escolhas, nessa nova e extrema versão de liberdade. Paradoxalmente, diluiu-se a noção de sujeito. A essa nova corrente Gilles Lipovetsky denomina de sociedade-moda, onde a liberdade é seu próprio limite, democracia ao extremo (Lipovetsky, 1989). Liberdade, diferença e individualismo, mas nada tão fácil como possa parecer. Para aquele pensador, essa última forma de democracia, se não foi erigida, encontrou seu justo substrato nos escombros do Muro de Berlin. A globalização e a conseqüente cristalização de um neo-individualismo cujo embrião já podia ser verificado desde meados do século passado através das manifestações culturais surgidas, fermentaram o que posteriormente ficou caracterizado por neomodernidade, mas que Lipovetsky amplia e distende para uma hipermodernidade, cujo ícone central é a Moda, baluarte da frivolidade para um império do efêmero que para nós, psicanalistas, soa mais forte em termos de transitoriedade. Acompanhando Lipovetsky, podemos inferir que essa transitoriedade se refere e se transmuta numa nova temporalidade, ensejada pela Moda, na qual o presente se basta a si mesmo enquanto construção de um possível futuro. O dito popular É hoje só, amanhã não tem mais ganha um sentido extra, se pensarmos que o amanhã só existirá como presente e o passado é uma fantasia que foi ultrapassada. O fundamento ético kantiano do imperativo categórico cede inexoravelmente sua toga ao prazer, ao hic et nunc contemporâneo, onde Lipovetsky, afastando-se tenaz e imponente de uma certa inteligentzia paranóica e niilista, enxerga um mundo quase infinito de possibilidades e escolhas, ali onde muitos só enxergam a ditadura do frívolo e da superficialidade (Lipovetsky, 2005).

A SOCIEDADE-MODA Mais do que qualquer coisa, o pensamento de Gilles Lipovetsky em relação à sociedade-moda e aos indivíduos que a compõem gira em torno do conceito de potência, real e virtual. Justamente pelo fato de permitir cada vez mais uma quantidade maior de bens de consumo, esses bens estão à disposição prêt-à-porter, com sua bula de utilização cada vez mais detalhada, facilitando ao máximo a tarefa de usufruir, melhor dizendo, o desfrute do prazer. Só não tem quem não quer. Entretanto, como são produzidos a cada dia mais e diversos bens, os sujeitos se sentem como perdidos diante da plêiade de objetos, sentimentos (e não afetos) e possibilidades, de forma que a in-felicidade passa a ser socialmente considerada como decorrente única e exclusivamente de uma falha individual que determina uma escolha individual. Vive-se na contemporaneidade, portanto, o paradoxo da liberdade. O homem é continuamente instado a exercer sua potência, numa ininterrupta exigência de felicidade, mas ele se confunde ao tentar infinitamente descobrir qual é a real a partir da virtual. Muitas vezes ele vai optar pelo erro, o que poderia ser até interpretado como uma positivação da impotência, o que também não deixa de ser outra potência contemporânea. Ou ainda o que Fédida chamaria de paradigma negativo da nova pragmática do si mesmo para descrever a depressão, acrescentando que esta poderia ser encarada como a contrapartida psicopatológica de uma idealização da performance, necessária para se manter adaptado e criativo nas mutações e mudanças aceleradas que vivemos (Fédida, 2002). É preciso esclarecer que Fédida está, neste contexto, criticando uma visão muito em voga de que o tratamento do sujeito depressivo poderia consistir apenas numa intervenção no nível comportamental. Entretanto ele o faz a partir de um diagnóstico bastante preciso que nos interessa aqui, pois nesta escala amplia-se

exponencialmente o leque de resultados possíveis advindos das escolhas das quais falávamos acima. Lipovetsky utiliza-se da figura da mulher e da evolução de seu papel na sociedade ocidental para exemplificar sua sociedade-moda, o que pode ser resumido numa palavra: sedução. A mesma sedução exercida pelo objeto de luxo, exemplo de atração paradoxal, que nos dias de hoje tem de se haver com uma temporalidade eivada de imediatismo e renovação, cercada, porém, de uma intemporalidade que determina uma continuidade, uma persistência do desejo. A sociedade hiper-moderna é sedutora também ao extremo, ao mesmo tempo avassaladora, mas também aberta à contestação. A isso ele denomina de a última democracia, aquela que não mais depende de um desenvolvimento natural para justificar um futuro. Ela é paradoxal na essência, como passa a ser a sociedade e o próprio indivíduo. É dessa forma, numa desconstrução de tipo derridiana, que Gilles Lipovetsky vai nos seduzindo e nos abrindo as portas para um novo olhar sobre a contemporaneidade, e que nos leva obrigatoriamente a pensar na contribuição que a Psicanálise tem a dar a essa abordagem, sem esquecer dos aportes que essa nova ética pode conferir à teoria e, por extensão, sua prática. UMA PSICANÁLISE-MODA? É impossível desvincular as apresentações sintomáticas que observamos na clínica dessa nova subjetivação e socialização. O aumento dos quadros depressivos e fóbicos coincidente ao estabelecimento da globalização e individualização no mínimo nos induzem a pensar que existe um mal estar com tanto prazer imediato. Nas palavras de Chaim Katz, um desconforto, remetendo-se à etimologia de

Unbehaglichkeit e enfatizando o sentido de carência de, em detrimento do simples negativo ou oposição à idéia de bem estar ou aconchego, sempre acompanhando o pensamento freudiano. Segundo Katz, especialmente desde 1930, Freud pensará que o destino das pulsões será a insuportabilidade, o que ele denominou de o dysconfortável. Essa carência de conforto talvez seja o que pode aproximar, e ao mesmo tempo, discriminar o conceito de transitoriedade para Freud e para Lipovetsky, uma vez que no texto freudiano o encontro com a transitoriedade dos objetos do mundo demanda um luto a ser atravessado numa duração de tempo que permita o circuito pulsional adquirir um caráter circular, no sentido do objeto perdido, ou velho, para o novo, passando obrigatoriamente em algum momento pelo investimento do Eu. Já a transitoriedade em Lipovetsky e sua sociedade-moda nos apresentam uma tendência à simultaneidade, em que a duração, em nosso caso do luto pelo objeto perdido, tende a zero com novos objetos exigindo investimento continuamente. Dessa forma, o circular tende ao retilíneo, o processo de luto sempre incompleto e ao mesmo tempo, interminável, fixado na negação da morte do objeto. Nesse tipo de circuito pulsional, o que fica cada vez mais desinvestido é o Eu, o que aponta para um estado de melancolia ou pior, à sensação já descrita por Joyce McDougall referindo-se ao modo de funcionamento de uma certa estrutura perversa, em que a castração não faz sofrer, não é irreparável, e mais, representa a condição mesma do gozo... (McDougall, 1978). Esta afirmação de Mc Dougall é complementar à de André Green, quando este diz que a recusa da morte do objeto contribui para uma fantasia de imortalidade do Eu (Green, 1988). Se a moral sexual mudou e se diluiu, ela pode não mais ser o fator determinante para o surgimento dos distúrbios psíquicos como na época de Freud, mas também não pode ser simplesmente ignorada, uma vez que o afrouxamento

dos laços intersubjetivos, associados à recusa da castração, ainda responde por grande parte das queixas que se apresentam nos consultórios psicanalíticos, muitas vezes disfarçados numa caracterologia do tipo eu me basto, muitas vezes de forma explícita naqueles pacientes que não conseguem estar sós, que não suportam o silêncio ou que necessitam estar em constante atividade, aludindo para o que Melanie Klein denominou defesa maníaca. Retornando a Joyce McDougall, o incremento notável das adições, tanto nas relações sociais como na demanda por análise, em detrimento das queixas sexuais, estaria intimamente ligado a uma crescente procura, de caráter ambivalente, por uma fusão com o objeto tomado como substituto materno, fixando evolutivamente os sujeitos numa fase que corresponderia à do objeto transicional de Winnicott. Poderíamos, então, supor estarmos vivendo em tempo de transicionalização dos objetos. Os objetos dados e criados simultaneamente, dentro de um campo de ilusão, ou porque não dizer, virtual, o capitalismo fazendo as vezes de uma mãe suficientemente boa. Inclua-me fora!, dizem os jovens, em conformidade a esse movimento paradoxal determinado pela sociedade-moda. Ora, se a inclusão não é mais uma opção individual, incluir-se fora é sua face transgressora. No entanto, como pensarmos a transgressão, que sempre caracterizou, por exemplo, a transferência psicanalítica diante do status quo, nesse tempo de esvaimento das continuidades? Não seria prematuro tentarmos fazer qualquer afirmação acerca das possibilidades, quando nossos pacientes estão ainda em pleno processo de ajustamento a essa nova realidade? Marqueteiros têm identificado uma nova classe de consumidor, a geração millenium. Composta de jovens de 12 a 15 anos, ela está redefinindo as regras da propaganda e por conseqüência, do mercado, pelo fato de estarem totalmente inseridos no mundo virtual e da simultaneidade, coisa que mesmo seus

pares na faixa dos 18 só foram tentados a experimentar para não serem considerados velhos e ultrapassados, já que para eles não se trata de um comportamento natural. Ficamos tentados, então, a imaginar que só poderemos avaliar corretamente todas as implicações dessas mudanças, quando essa potência atingir, também simultaneamente, todas as gerações viventes, num momento de possível estabilidade futura. Por outro lado é lícito, se acompanhamos Lipovetsky, pensarmos que não podemos mais esperar por estabilidade nesse futuro, pois ele em si é o presente transgredido pelo ato, pelo desejo e, principalmente, pelo corpo, suporte pulsional por excelência e alvo das demandas narcísicas subjetivas por que alvo das demandas narcísicas do outro inserido na sociedade-moda, indo de encontro ao pensamento de Jurandir Freire Costa. Interessante notar que Costa assume uma postura crítica em relação aos processos, descritos por Lipovetsky, de subjetivação e socialização e como esses processos se externam nas relações interpessoais, ao questionar que a certeza de que o antes não era bom não é razão para a afirmação de que o agora é melhor (Costa, 2004). Certamente é diferente e toda diferença presume uma potência de transgressão. É nessa potência de transgressão que ainda imaginamos a força da Psicanálise. Para o bem e para o mal, a Psicanálise tem se incluído fora. Durante muito tempo os psicanalistas viveram a ilusão de que ela estivesse na moda. Não mais. Ela continua, sim, em moda. Talvez por isso cada vez mais se discuta a necessidade de se recriar a abordagem clínica dos pacientes, através de uma ampliação do leque de autores-referência, o que obrigatoriamente inclui aqueles que não só pressupõem, mas também positivam o paradoxo como tema de produção teórica. Afinal de contas, é da aceitação da potência de um paradoxo que se desenrola o pensamento de Lipovetsky. Diante disso, poderíamos pensar o futuro

da Psicanálise em termos de responder ao desafio das novas temporalidades, elaborando novas questões, mesmo que para os próprios psicanalistas. Talvez no momento tenhamos que nos indagar se o que desejamos é uma Psicanálise haute couture, refinada artesania, luxo para poucos, com força de criar tendências, ou prêt-à-porter de grife, pretinho básico acessível a muitos, tendências atuadas e repetidas, porém imersas no imaginário social. Talvez seja necessário que a Psicanálise inclua-se fora do fora, apostando na própria potência e na produção de tempos indeterminados, conforme dito por Auterives Maciel, assim como de certo modo o fazem até hoje as resistentes costureiras particulares, também conhecidas como modistas. Por ora, voltemos por breve que seja ao demasiado humano futuro nietzscheano: Nosso tempo dá a impressão de um estado interino; as antigas concepções do mundo, as antigas culturas ainda existem parcialmente, as novas não são ainda seguras e habituais, e, portanto não possuem coesão e coerência. É como se tudo se tornasse caótico, o antigo se perdesse, o novo nada valesse e ficasse cada vez mais frágil. Mas assim ocorre com o soldado que aprende a marchar: por algum tempo ele é mais inseguro e mais desajeitado do que antes, porque seus músculos são movidos ora pelo velho sistema, ora pelo novo, e nenhum deles pode declarar vitória. Nós vacilamos, mas é preciso não se inquietar por causa disso, e não abandonar as novas aquisições. Além disso, não podemos mais voltar ao antigo, já queimamos o barco; só nos resta ser corajosos, aconteça o que acontecer. - Apenas andemos, apenas saiamos do lugar! Talvez nossos gestos apareçam um dia como progresso; se não, que nos digam as palavras de Frederico, o Grande, a título de consolo: Ah, mon cher Sulzer, vous ne connaissez pas assez cette race maudite, a laquelle nous appartenons (Ah, meu caro Sulzer, você não conhece o bastante essa raça maldita à qual pertencemos).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - Costa, Jurandir F.: O vestígio e a aura:corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. - Forbes, J., Reale Junior, M. e Ferraz Junior, T. S. (orgs.): A invenção do futuro: um debate sobre a pós-modernidade e a hipermodernidade. - São Paulo: Manole, 2005. - Freud, S.: Sobre a Transitoriedade. In ESB, vol. XIV, 1916. - Freud, S.: Luto e melancolia. In ESB, vol. XIV, 1917. - Green, A.:Narcisismo de vida, narcisismo de morte. - São Paulo: Ed. Escuta, 1988. - Fédida, P.: Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. São Paulo, Ed. Escuta, 2002. - Katz, C. S.: Sobre Derrida e a crueldade: apontamentos, in www.estadosgerais.org/atividades_atuais/katz-crueldade.shtml - Lipovetsky, G.: O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. - Lipovetsky, G. e Roux, E. : O luxo eterno. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. - McDougall, J.: Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. - Nietzsche, F.: Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005. - Ponty, M. de: Indiscrição.- O chapéu Berger e o chapéu Valois: um terceiro chapéu deste outono. Cotas de malhas e couraças para 1874 e talvez 1875, com a saia da estação. Elogios por nós discernidos a nós mesmos e algumas repetições. In La Dernière Mode, Paris, 1874 transcrito em Range rede revista de literatura Rio: ano 5, nº 5, 1999.