FRAGMENTOS DO COTIDIANO DAS FORTIFICAÇÕES CATARINENSES. Thais Luzia Colaço Prof do Departamento de História da UFSC



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Transcrição:

FRAGMENTOS DO COTIDIANO DAS FORTIFICAÇÕES CATARINENSES Thais Luzia Colaço Prof do Departamento de História da UFSC As fortificações catarinenses sempre despertaram interesse e fascínio, não só pela sua expressão arquitetônica como pelos episódios que envolveram a sua existência. Publicações antigas e recentes são referências generosas para o conhecimento de sua história no contexto político, diplomático, arquitetônico e artístico. A carência de referências quanto ao cotidiano das pessoas que viveram nas fortificações catarinenses, nos séculos XVIII e XIX, é que motivou a elaboração desta pesquisa, visando realçar o papel destes personagens que ocuparam parte do território sul brasileiro. Em 1743, o Brigadeiro Silva Paes já afirmava que "(...) não bastão Fortificações sem haver gente que as guarnesa, e juntamente povoe, e cultive as terras(...)".1 Leve-se em conta que o contato com a documentação existente possibilitou, ainda que na forma de fragmentos, resgatar problemáticas das experiências de vida comuns aos habitantes das fortalezas. A Ilha de Santa Catarina por ser no sul do Brasil um porto seguro com capacidade de abrigar grandes esquadras, serviu desde o século XVI, como ponto de apoio e abastecimento das frotas que se dirigiam ao sul do continente americano. No século XVIII, a incitação dos conflitos entre Portugal e Espanha na disputa da região platina, tornou inadiável a ocupação e defesa da Ilha de Santa Catarina, a fim de efetivar o domínio português no sul do Brasil. Situada entre o Rio de Janeiro e a Colônia de Sacramento, a Ilha tornava-se um ponto estratégico militar. Com a intenção de marcar a presença portuguesa na região, criou-se, em 1738, a Capitania de Santa Catarina, vinculada ao Governo Central no Rio de Janeiro. Em 1739, tomou posse, como primeiro governador, o engenheiro militar Brigadeiro José da Silva Paes, idealizador do sistema defensivo da Ilha. Construiu quatro fortificações: a Fortaleza de Santa Cruz (1738), na Ilha de Anhatomirim; o Forte de São José da Ponta Grossa (1740), em Jurerê; o Forte de Santo Antônio (1740), na Ilha de Raton Grande; e a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição (1741), na Ilha de Araçatuba. Posteriormente foram construídos fortins menores, a fim de guarnecer a Vila do Desterro: Forte de São Francisco Xavier (1761), Forte Santana (1761), Bateria de AGORA N 19 45

São Caetano (1765), Forte de São Luís (1770), Forte de Santa Bárbara (1786), Forte de Nossa Senhora da Conceição (1786), e Forte de São João (1793). As fortalezas da Ilha de Santa Catarina tiveram também no século XIX a função de controlar a entrada e saída de navios, comunicando-se com estes quando ainda ao largo, através de sinais e avisos içados. Vários ofícios aos comandantes das fortalezas estabeleceram instruções para essa comunicação se efetuar na defesa de embarcações contra ataques de outras2; no controle de tráfego naval', em situações de guerra4; no controle de colonos e suas bagagens e em ocasiões festivas, com salvas de tiros de festim5. Também prestavam serviços à comunidade desterrense, contendo o alastramento das epidemias, servindo de postos de isolamento e acomodando em suas instalações doentes mentais da Capita1.6 Assim como, em diversas oportunidades, foram utilizadas para a prisão de diferentes tipos de infratores, tanto civis quanto militares.? A partir de 1738, o Brigadeiro José da Silva Paes trouxe auxiliares administrativos e índios "para os trabalhos braçais, e uma companhia de soldados vindos do Rio de Janeiro, para se juntarem aos 60 vindos um ano antes, de Santos. Este grupo de soldados foi a base do Regimento de Infantaria de Linha de Santa Catarina, o Regimento Barriga Verde". 8 Sentindo de imediato a necessidade de braços para a agricultura e de gente para guarnecer as fortalezas que iria erguer, Silva Paes recorreu à Coroa Portuguêsa, no sentido de promover a campanha migratória açoriana que ocorreu de 1748 a 1756. A população civil, os povoadores destinados à lavoura, entretanto, serviriam às Ordenanças, Guarda Territorial, pois o próprio edital de inscrição afixado nos Açores previa este serviço. 9 Segundo Fossari, "o governo das fortalezas era missão das patentes de Capitão, Tenente e Alferes... Sabemos que além das habituais patentes militares, faziam parte do contexto hierárquico dos quartéis e fortes os oficiais reformados, os inválidos, os recrutas voluntários e aqueles que além das suas patentes se distinguiram por alguma habilidade ou conhecimento extra, como boticário, ajudante de cirurgia, alfaiate, cozinheiro, músico e lavradores entre outros".10 Há, entretanto, registros comunicando ao Governador da Capitania o envio de tropas da Ilha da Madeira e da Ilha Terceira, do Regimento de Estremoz e do Rio de Janeiro, para sentarem praça.11 O contingente populacional das fortalezas não era formado só por homens, havia a presença de mulheres. Numa dessas remessas, veio o soldado de nome José Antonio, do 1 Regimento da Bahia, com sua mulher, Joanna Francisca dos Reys, por ordem do Vice-Rei Matquès do Lavradio "por querer acompanhar seu marido". 12 Também há indícios da existência de mulheres no Forte de São José, e de soldados, casados, com resi- ÁGORA No 19 46

dências nas proximidades do mesmo.13 Cabe fazer uma ressalva à possibilidade de alguns índios terem convivido e trabalhado junto aos soldados de baixas patentes, escravos e sentenciados, na construção de edifícios militares, servindo na Marinha e nas fortificações da Ilha.14 Grande parte destes soldados estavam na condição de "desclassificados sociais", pois há registros de deportados encaminhados para servir na Ilha. Em 1791, um ofício designa a remessa de um soldado desertor para ser punido e um paisano. 15 Até mesmo oficiais por mau comportamento eram destacados para servir na Ilha.16 Abordada a questão do contigente populacional das fortalezas é preciso salientar que a documentação existente no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina e na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, trazem indícios do cotidiano das fortalezas que no mínimo apotam para a miserabilidade nas formas de sobrevivência e para a rebeldia como consequência advinda da extrema pobreza. Assim sendo, os moradores enfrentavam dificuldades quanto ao pagamento do soldo. O atraso era uma constante nos anos de 1780 a 1833. 17 A insatisfação era uma preocupação para a Coroa, que para evitar rebeliões, se utilizava da estratégia de liberar as tropas nas épocas mais críticas, quando o soldo atrasava, ou quando o plantio das sementes assim o exigisse. 18 Uma vez que as tropas eram recrutadas entre colonos e lavradores, seu envolvimento com a terra os mantinha ligados à região e, disponíveis no momento em que o Estado exigisse. É importante ressaltar que nas Provisões da Rainha D. Maria I nas do Príncipe Regente eram enviadas contínuas remessas de dinheiro para as folhas Militar, Civil Eclesiástica, tanto para a Ilha de Santa Catarina como para o Continente de São Pedro e ao mesmo tempo é comum encontrar-se relatos de soldados com soldo atrasado de um ano. No ano de 1794, junto com a remessa de dinheiro para pagamento do soldo, enviado de Lisboa, fazia-se a seguinte recomendação: "Vos ordeno mui expressamente que a quantia que agora se remete, não deve ser despendida em outra couza mais que nos soldos, que presentemente hão de vencer em tres meses...",19 deixando a entender que havia desvio de verbas. A questão do atraso ou não pagamento do soldo nos remete a problemática do abandono das fortalezas, evidenciado pelo estado precário em que chegaram ao final do século XVIII, se refletiam também nos trajes de seus soldados, que muitas vezes não recebiam uniforme, contrastando com a opulência da indumentária das Ordenanças, Milícias e Corpos de 1 Linha." Em 1823 o Presidente da Província comunica que não fornecerá mais o fardamento, devido ao péssimo estado das finanças da mesma, e que este deverá ser requerido à Corte; autorizando os AGORA N 19 47

recrutas a fazerem o serviço nas fortalezas sem uniforme.21 Observa-se que a única referência que se tem à respeito dos soldados destacados nas fortalezas é a de que apresentavam-se sem uniforme, em farrapos, descalços, recebendo "soldo de fardamento" atrasados, um desprezo total por parte das autoridades; o que não se evidencia no tratamento aos militares que serviam na Vila.22 Nos séculos XVIII e XIX, as condições de saúde da população local e das tropas que guarneciam as fortificações da Ilha eram precárias. Conforme depoimento do viajante estrangeiro Golovnin, em 1808, os soldados apresentavam suas "fisionomias pálidas e famintas" sugerindo um perfil de fraqueza e subnutrição.23 Os militares dispunham do Hospital ou Enfermaria Militar e tinham um batalhão específico da área da saúde, o chamado "Corpo de Enfermeiros".24 Alguns tipos de moléstias que acometiam os soldados eram as seguintes: pequenos machucados25, infecção do peito, constipação", febre, inflamação, gonorreia, cancro, chagas das pernas, tênia 27, oftalmopatia, dor sobre o peito, pleuresia28, reumatismo agudo nas articulações29, tuberculose, abcesso hepático, eplepsia, hérnia, sífilis, varíola, fraqueza pulmunar, orquite 39 e insanidade mental. As baixas de soldados por invalidez ou afastamento para tratamento de saúde, já se faziam presentes desde o século XVIII31, chegando a existir em Desterro, a Companhia de Inválidos da Capital." Alguns soldados usavam de artifícios para conseguirem dispensa do serviço militar, como em 1782, quando dois soldados simularam estar enfermos." Os recursos para os tratamentos das doenças nos quartéis, curiosamente provinham "(...) penas economias feitas com as praças q' comem no rancho cuja tem produzida a quantia de 28.800 rs. das sobras do mesmo, esta tem sido aplicada para Remedios, de Botica, e dietas determinadas pelo cirurgião(... )".34 As pessoas que viviam nas fortalezas, mantinham relacionamento com a Freguesia da Capital e com as diversas embarcações nacionais e estrangeiras, sofrendo também contato com as doenças próprias de sua época. As epidemias se alastravam pelos exércitos. A varíola, no século XIX, castigou as tropas "em trânsi,o ou em depósito".35 As formas de sobrevivência giravam em torno daquilo que poderia ser extraído do meio ambiente. A base da alimentação consistia em gêneros produzidos na região. Assim, então, a alimentação dos habitantes da Ilha de Santa Catarina foi em geral a mesma que se consumia nas instalações militares. Os moradores plantavam mandioca, milho, favas e batatas. O mar era farto de pescado e crustáceos. Possuíam em abundância muitas frutas e a cana de açúcar. Bovihos, suínos, peixes, e até a carne de macaco era consumida." ÁGORA N 19 48

A pesca, a agricultura e até mesmo a criação de animais eram atividades desenvolvidas pelos soldados, como forma de suprir a falta de pagamento do soldo, atendendo às suas necessidades básicas de sobrevivência." Ainda podemos contar com as informações da pesquisa arqueológica realizada no Forte de São José, que indica como parte da alimentação dos soldados, os seguintes alimentos: moluscos (gastrópodo, berbigão, ostra e marisco), peixes (corvina, pescada amarela, bagre e miraguaia), mamíferos aquáticos, mamíferos terrestres (gado e porco) e aves.38 Vê-se, ainda, que a Coroa não só atrasava ou deixava de pagar soldos, mas também havia mazelas quanto ao abastecimento. Do fornecimento dos Armazéns Reais dependiam as fortalezas da Ilha, as prisões, as praças avulsas e as praças reformadas. Para suprir as necessidades de 3.225 praças pelo prazo de um mês foram enviados, em 1793, 500 arrobas de arroz, 2.660 alqueires de farinha de pão, 2.497 alqueires de feijão e 30.000 achas de lenha, sem contar as rações de carne e a aguardente, que também eram rotineiramente enviados. 39No entanto, há correspondências que reclamam do atraso das remessas e até das privações por que passavam as tropas." As fortalezas situadas longe da Vila, mal servidas de condução e acesso e com bem pouca gente, também estavam privadas de assistência religiosa. "Desde 1747 que Silva Paes se esforçara em pedir padres para elas, e até mesmo os cléricos que acompanhavam os casais açorianos, no movimento povoador de 1848-1856, mostravam repugnância de irem assistir às fortalezas".41 As condições precárias de sobrevivência, o abandono em que estavam sujeitos os moradores, o não cumprimento das obrigações por parte da Coroa, a forma como os soldados eram arregimentados para fazer parte do corpo de tropa criava todo um ambiente propício a rebeldia. Neste sentido, para se manter a disciplina militar utilizouse de um rígido sistema de sanções, além das penas de prisão, existiam os castigos corporais, como por exemplo: pranchadas", tronco para punição", trabalhos forçados", acorrentamento das pernas (carrinho)45 e pena de morte. Com todo este aparato de repressões, nem sempre a conduta dos soldados e até mesmo dos oficias, era exemplar. Aparecem casos de soldados respondendo ao Conselho de Guerra por infrações cometidas por distúrbios e perturbações fora das fortalezas, roubos nas vizinhanças, homicídio, rebelião, insubordinação, abandono e deserção. Encontrou-se informações de soldados roubando civis", m i I itares47 e estabelecimentos comerciais", alguns tiravam a farda para cometerem crimes sem serem identificados". Um fato que merece ser evidenciado foi o que aconteceu na Fortaleza Ndssa Senhora da Conceição de Araçatuba em 1839. Houve um amotinamento por parte dos soldados, que aliando-se aos ÁGORA N 19 49

rebeldes da Revolução Farroupilha, entregaram-lhes toda a munição e a fortaleza. Seguindo-se várias atitudes criminosas, assassinaram o Comandante Alferes Pedro Fernandes, após tê-lo conduzido para Laguna. Apesar da distância, não houve grandes dificuldades em aprisionar estes criminosos, que se encontravam acampados na Praia da Pinheira. Todos os envolvidos foram condenados à pena de morte e carrinho (argola de ferro que se adaptava às pernas dos soldados por castigo)". Outro quadro a ser visualizado no procedimento, destes soldados, eram as frequentes deserções. Este era um grande problema que se vê através de inúmeros 'documentos dos séculos XVIII e XIX, nos vários corpos do Exército. A solução encontrada por parte do Governo Central para o não esvaziamento do corpo militar, era, em geral, o perdão aos desertores que se apresentassem, dentro de um prazo estabelecido, divulgado pelo Palácio do Governo do Rio de Janeiro.51 Também na Sexta Feira Santa, que era considerada o "Dia do Perdão", se perdoavam alguns criminosos, inclusive a sentenciados condenados a cumprir penas nas fortalezas." No auge da disputa pelo território platino no século XVIII, o governo português fez um grande investimento em construções, organizacão de uma estrutura militar, promoção da emigração açoriana, com o objetivo de trazer homens para povoar, produzir e servir às armas. Com toda esta infraestrutura instalada, ao mesmo tempo Portugal abandonou estes homens a sua própria sorte, como se verifica nas insatisfações dos militares referentes ao atraso do pagamento do soldo, na pobreza de suas vestes, na indisciplina, nas deserções, no sistema de repressão, no serviço militar obrigatório e permanente, nas suas péssimas condições de saúde e na ausência de assistência religiosa. No século XIX, já não existia mais a ameaça dos vizinhos espanhois. Muitas fortificações deixaram de ser praça de guerra e foram adaptadas para outras atividades: no controle do tráfico naval; na inspeção de navios nacionais e estrangeiros infectados de doenças contagiosas; na instalação de postos de isolamento em ocasiões epidêmicas, tanto para atender pessoas da localidade, quanto viajantes; na recepção de colonos; na utilização de prisão para criminosos e doentes mentais da Capital. O isolamento das fortificacões obrigou seus habitantes a se adaptarem a uma vida simples e rude. Mesmo com todas estas dificuldades, sobreviveram e atingiram os propósitos da Coroa Portuguêsa: ocuparam, mantiveram e serviram de apoio à integração do sul do Brasil ao domínio português. ÁGORA N o 19 50

NOTAS PIAllA, Walter F. O Brigadeiro José da Silva Paes. Estruturador do Brasil Meridional. Florianópolis: UFSC, 1988. p. 142. BPESC - Jornal O NOVO IRIS. Desterro, n.47-23.08.1850, p.1. APESC - Registro do Presidente da Província ao Comandante de Armas em 27.05.1823. BPESC - Jornal O CRUZEIRO DO SUL. Desterro, n.133-28.07.1859 - p.1. BPESC - Jornal O NOVO IRIS. Desterro, n. 51-06.09.1850 - p.1, n.58-13.09.1850 - p.1 e n. 6-26.03.1850 - p. 1. BPESC - JORNAL DO COMMERCIO. DesterrO, n.66-25.03.1883 - p.1. BPESC - Jornal REPUBLICA. Desterro, n.40-07.01.1890- p.3. MELO, Oswaldo Ferreira de. História sócio cultural de Florianópolis. Florianópolis: Lunardelli, 1989. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os açorianos. Florinanópolis: IOESC, 1950. p.45. FOSSARI, Teresa Domitila. A pesquisa arqueológica do sítio histórico São José da Ponta Grossa. Anais do Museu de Antropologia 1987/1988. Florianópolis:SC, 1992. p. 21 e 22. APESC - Ofícios Diversos ao Governador Geral da Capitania entre os anos de 1775 e 1776. APESC - Oficio do Vice-Rei ao Governador Geral da Capitania em 21.08.1776. FOSSARI, Teresa Domitila., Op. cit., p.59. APESC - Ofício do Governador Geral da Capitania ao Vice-Rei em 22.06.1796. APESC - Ofício do Vice-Rei ao Governador Geral da Capitania em 08.05. 1791. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: memória II. Florianópolis: UFSC, 1971. p.22. APESC - Ofícios do Vice-Rei ao Governador Geral da Capitania nos anos de 1780 a 1833. APESC - Ofício do Vice-Rei ao Governador Geral da Capitania em 13.04.1791 e 04.02.1823. APESC - Provisões do Conselho Ultramarino em 30.10.1794. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: memória II. p. 15. APESC - Registros Gerais do Presidente da Província em 11.01.1823. LESSON, René Primevère. Capiítulo XII. Ilha de Santa Catarina. Relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Florianópolis: Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1979. p.266. 23. GOLOVNIN, Vassili. Capítulo XIX. Ilha de Santa Catarina. Relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX p.206. ÁGORA N 19 51

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FONTES ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA - APESC Livros dos Chefes de Polícia - século XIX. Livros dos Engenheiros - século XIX. Ofícios do Vice-Rei ao Governador Geral da Capitania - séculos XVIII e XIX. Registros Gerais dos Presidentes da Província - século XIX. Registros do Presidente da Província aos Comandantes de Armas - século XIX. Provisões do Conselho Ultramarino - século XVIII. BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA - BPESC O CONCILIADOR - 1873. O CONSERVADOR - 1875, 1886. CORREIO DO SUL - 1858 CRUZEIRO DO SUL - 1859. JORNAL DO COMMERCIO - 1883. O MENSAGEIRO - 1855. O NOVO IRIS - 1850, 1851. REPUBLICA - 1890. BIBLIOGRAFIA BERGER, Paulo. (comp.) Ilha de Santa Catarina. Relato de Viajantes Es trangeiros nos séculos XVIII e XIX. Florianópolis: Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1979. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os açorianos. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1950.. Medicina, médicos e charlatões do passado. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1950..Nossa Senhora do Desterro: memória I e II, notícia I e II. Florianópolis: Imprensa da UFSC, 1971. FOSSARI, Teresa Domitila. A pesquisa arqueológica do sítio histórico São José da Ponta Grossa. Anais do Museu de Antropologia 1987/1988. Florianópolis: UFSC, 1992. MELO, Oswaldo Ferreira de. História sócio cultural de Florianópolis. Florianópolis: Lunardelli, 1989. PIAllA, Walter Fernando. O Brigadeiro José da Silva Paes. Estruturador do Brasil Meridional. Florianópolis: UFSC, 1988. AGORA N 19 53