A infância é uma invenção tardia na história da humanidade. Seu aparecimento. pode ser situado no tempo, data do século 18, com o Renascimento.



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Transcrição:

O QUE É SAÚDE NA INFÂNCIA HOJE * Cátia Olivier Mello Quero agradecer o convite do ITIPOA, feito para mim por intermédio da Psican. Lúcia Thaler, e dizer que é um prazer e uma honra estar aqui e conhecer este lugar no qual há tantas pessoas com as quais convivo, estudo e aprendo em outros momentos. 1. A invenção da infância A infância é uma invenção tardia na história da humanidade. Seu aparecimento pode ser situado no tempo, data do século 18, com o Renascimento. Antes da invenção da infância, adultos e crianças eram semelhantes, não havendo uma diferenciação nem na maneira de representar as crianças, como se observa nas pinturas que retratavam as crianças como mini-adultos, nem tampouco na maneira de compreendê-las ou abordá-las. Mas havia uma razão para que isso acontecesse. Até o final do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. O mundo enrolava-se em si mesmo: a terra repetia o céu, os rostos miravam-se nas estrelas, a pintura imitava o espaço. A representação se dava como repetição. Bem, desde o séc. XVII o mundo e a Ciência evoluíram no sentido da especialização, da possibilidade de classificação. Avançamos no sentido de não ser mais tudo semelhante, tudo igual. Todas as áreas passaram a ter especialistas, e as diferenças passaram a ser respeitadas e valorizadas. Assim, as crianças passaram a ser vistas como diferentes dos adultos também em função do advento da família nuclear, mais voltada para si e que, a partir de então passava a ser responsável pela educação somente de seus filhos, não havendo mais a responsabilidade compartilhada que antes havia entre os membros da família extensiva. * Psicanalista da SPPA, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS.

O Homem passou a olhar para si mesmo, a refletir sobre si mesmo e a descobrir que havia diferenças entre uma idade e outra. A vida passou a ser dividida em fases, regidas cada qual por uma lógica própria. Com isso, a individualidade e a subjetividade ganharam condições de serem criadas. Dom Quixote de la Mancha, ou os personagens de Shakespeare são possíveis de serem criados, atormentados, pensativos, confusos e reflexivos. A lógica vigente era o par simpatia-antipatia (Foucault). A primeira não se contenta em ser uma das formas do semelhante, mas tem o perigoso poder de assimilar, de tornar as coisas idênticas umas às outras, de misturá-las e fazê-las desaparecer em sua individualidade de torná-las, pois, estranhas ao que eram. A simpatia transforma, de sorte que, se seu poder não fosse contrabalançado, o mundo se reduziria a uma massa homogênea. Todas as suas partes se sustentariam e se comunicariam entre si sem ruptura nem distância. Eis porque a simpatia é compensada por uma figura gêmea, a antipatia. Esta mantém as coisas em seu isolamento e impede a assimilação; encerra cada espécie na sua diferença obstinada e na sua propensão a perseverar no que é. A identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e aproximar-se delas, preservando sua singularidade, é o contrabalançar constante da simpatia e da antipatia que o garante. Explica que as coisas cresçam, se desenvolvam, se misturem, desapareçam, morram, mas se reencontrem. Permitia que houvesse espaço e tempo. Do ponto de vista da estruturação da personalidade, sabe-se que é fundamental que haja mais do que diferença entre o que é de adulto e o que é de criança, é necessário haja hierarquia. O retorno às semelhanças na vida pós-moderna do séc. XX trouxe não se expressa somente na infância, aparece nas várias áreas do conhecimento humano. As crianças devem crescer rápido, vestirem-se rápido,

chegarem á adolescência rápido, para aí parar o tempo e não envelhecerem nunca. É um retorno ao semelhante, visto deste ângulo. Cada época de mudanças requer reflexão, e é a isso que me disponho hoje. 2. Contemporaneidade Ser contemporâneo significa viver o seu tempo e refletir sobre ele. Não temos mais 50 anos de história para nos distanciarmos do fato histórico como era de costume. A neutralidade é um conceito constantemente revisitado. Tempo líquido, relações fugazes, falta de permanência da memória, emoções superficiais. Ser contemporâneo é viver o seu tempo e conseguir refletir sobre ele. É conseguir ver o que de escuridão há nas experiências, pois que o que está iluminado pode estar ofuscado pelo brilho da obviedade e da hiper-realidade. Trouxe exemplos do Calvin porque acho que ele é contemporâneo, e já o era desde que foi criado, o que me ilustra que essa criança Calvin já estava prevista. Não o vejo como alguém hiperativo, e peço que não o vejam apenas por este vértice. Peço que o vejam como uma criança que tenta se pensar. As crianças não estão fora desse contexto e a infância, consequentemente, também não. Aliás, são eles que já nasceram num mundo no qual a informação não é algo ao qual precisem aceder. Ela lhes é inerente. A tecnologia faz parte do modo de comunicação, de expressão, de diversão de seu tempo. Não é uma ferramenta, como é para seus pais. Ela é de certo modo, o modus operandis do mundo em que nasceram. Manejam-se bem, conhecem-na melhor do que seus pais. Não se assustam com a sua utilização. Como qualquer outra coisa que tenham que aprender ou que venham ter que assimilar, não a conhecem. Usam-na antes de saber o que vem a ser. Como uma colher, como um brinquedo, como um casaco, como um lápis de cor. Primeiro assimilam o seu uso (no sentido piagetiano do termo), depois acomodam-nos ao seu esquema referencial conceitual. A primeira reflexão que quero

fazer é que independente de qualquer coisa, observa-se (contemporaneamente falando) que as crianças saudáveis hoje são felizes tanto quanto sempre foram. 3. Metacognição O conceito de metacognição nos ensina que uma das características distintivas da nossa espécie é que sabemos que sabemos, temos consciência do nosso conhecimento, de quem somos, e a Psicanálise nos ajuda a que tenhamos também um conhecimento afetivo acerca de nossos sentimentos, que possamos optar e compreender nossas escolhas, que nosso universo afetuoso é construído na intersecção entre nós e os outros. Nossas crianças são, como nós, contemporâneas. Como nós, estão submetidas à mesma lógica que nos rege: enquanto experenciamos um fato, refletimos sobre ele. Mas será a mesma reflexão de que estamos falando? Sem entrar em detalhamento conceitual, observa-se que refletimos, sim, hoje em dia sobre o que nos ocorre. Observamos por exemplo que os acontecimentos hoje em dia estão em todo lugar, não somente nos jornais. A contemporaneidade parece-se muito com o inconsciente: não está apenas embaixo, está cima, ao lado, atrás está em outro lugar. Nunca está onde parece estar. A necessidade de atualização sobre o mundo é de tal ordem que quando se consegue chegar lá, já temos que nos encaminhar para outro lugar. Sempre desacomodados. Mas como suportar isso quando somos crianças e ainda não temos o referencial de maturidade para a desconstrução? Quando ainda precisamos acreditar e idealizar as figuras de autoridade? Quando a desidealização ainda está longe de ser uma tarefa evolutiva na infância? Quando os próprios adultos também não sabem como explicar ou proteger da violência, da insegurança? Será que a maleabilidade da personalidade

é mais afeita à contemporaneidade do que a do adulto? De qualquer modo, a infância hoje convive com esta ética e esta estética. Assim, encontraremos crianças que se confundem com a hiper-exposição ao mundo virtual, aos personagens que não são totalmente bons nem totalmente maus, mas que são hiper-reais. A integração entre aspectos bons e maus de uma mesma pessoa está sendo exigida, a meu ver, um pouco antes do que cada sujeito pode fazê-lo. E saudavelmente muitas crianças reagem a isso, talvez tendo pesadelos, talvez ficando mais quietos, talvez não querendo mais ver determinado filme que todos assistem sem problemas. É a singularidade de cada um que está em jogo. Saúde mental, nesses casos, será mostrar por intermédio de um sintoma que a informação veio cedo demais (foi demais). 4. Os adultos A saúde na infância hoje depende também dos adultos, como sempre dependeu. Depende da geração que hoje é ativa e adulta proporcionar às crianças um tempo para que, mesmo sendo contemporâneas, possam também idealizar o adulto, manter a hierarquia. Aceitar serem questionados não porque a adolescência chegou mais cedo, mas porque são contemporâneos, e isso faz parte do nosso ser-e-estar-nomundo. O fato de as informações estarem disponíveis mais cedo, muito mais cedo do que seria bom faz com que, mesmo os pais que filtram determinado tipo de informação às crianças se vejam em situação de precisar explicar, descrever, ou quanto mais não seja significar situações ás quais seus filhos estão submetidos na escola ou em casa de outras famílias. É o mundo contemporâneo. É o mundo no qual as fronteiras do público e do privado estão muito mais permeáveis e não se trata de gostar ou não gostar, criticar ou elogiar. Vivemos uma mudança de paradigma, uma revolução de costumes.

Os adultos seguem tendo que se enfrentar com os lutos da infância dos seus filhos, os quais os remetem aos seus próprios lutos (os adultos lutos). A essas crianças que necessitam de significação para este universo que se lhes apresenta, seguem vigentes os parâmetros de desenvolvimento conhecidos: fases de desenvolvimento psico-sexuais que evoluem em direção à aquisição de uma identidade individual e grupal, identificações com figuras de autoridade com as quais estabelecem vínculos de confiança e segurança, elaboração dos lutos da infância, etc. 5. Neurose infantil Freud situa no processo de desenvolvimento a neurose infantil, segundo a qual todo indivíduo precisa passar e ultrapassar para se tornar uma pessoa civilizada. Comparaa, inclusive, a religião como sendo a neurose infantil da humanidade em Futuro de uma ilusão. Sem entrar em detalhes desse trabalho, quero enfatizar aqui que a tarefa de se tornar adulto envolve esforço e lutos, como é do conhecimento de todos, além de muitas alegrias... Freud, nesse trabalho, marca que quando o ser humano se dá conta que precisará de cuidados pela vida afora e que, mesmo se tornando adulto, sentirá sempre um desamparo inerente, pode optar pela religião para que um ser divino possa atender a essa necessidade, digamos, humana. O trabalho psíquico de seguir acreditando na autoridade e confiando nela por identificação requer um esforço um pouco mais extensivo no nosso tempo, pois que mais cedo as crianças se dão conta de que dependem do adulto e que são vulneráveis. 6. Saúde na infância hoje Assim, penso que saúde na infância hoje é conviver com essas duas grandes linhas mestras: a contemporaneidade com sua exigência de uma condição de pensar-se e o direito a ter um tempo para construir esta capacidade passando pelas experiências necessárias para isso. Assim, o direito à neurose infantil, a ter sintomas transitórios

estruturantes, à área de ilusão winnicotiana, à construção de heróis e vilões claramente delimitados à semelhança de sua própria onipotência infantil. Direito a querer brincar, a poder brincar e a não querer brincar. Mas principalmente a aprender a brincar com o corpo da mãe, com o seu próprio corpo, com objetos de brincar para que, futuramente, possam ser substituídos pelas coleções, pelos hobbies e pela cultura. Porque brincar é, por definição, o espaço-tempo no qual é possível brincar e saber que se está brincando. Ser um personagem e não sê-lo ao mesmo tempo. Criar e ser criado no espaço intermediário proporcionado pelo contato com o outro. Brincar é contemporâneo. Johan Huizinga, autor de uma das obras mais importantes sobre o assunto (1938), descreve o jogo como sendo possuidor de cinco características formais: o jogo é livre; é supérfluo (no sentido de que pode ser adiado e nunca imposto por uma necessidade física ou moral); tem limites de tempo e espaço; possui regras próprias e tem valor ético. Para marcar ainda mais esta semelhança entre jogo e cultura, a autora se utiliza de outros autores para mostrar a diferença entre civilização e cultura. Enquanto a civilização tende a minimizar as diferenças nacionais, enfatizando o que é comum aos seres humanos, a cultura ressalta tais diferenças, marcando a identidade particular de grupos. A cultura manifesta-se, pois, dentro deste referencial, como um jogo. Para Jacques Henriot (1976), a consciência é essencial para o ato de jogar: um jogo que não é consciente não é jogo. Pesquisa sobre o que estavam fazendo: aprendendo ou brincando? O autor entende tal dialética como uma das particularidades do jogo, e caracteriza a ação lúdica por 3 elementos: a incerteza (imprevisibilidade dos resultados e efeitos); a duplicidade real-irreal e o processo de ilusão (estado de faz-de-conta, no qual tudo é de brincadeira ).

Para este autor, não é o brinquedo que determina a ação de jogar, mas sim o jogador. Já para Roger Callois (1967), o jogo é essencialmente uma combinação de liberdade, limite e invenção, e os classifica em jogos competitivos (rivalidade), jogos de azar (abandono da vontade ao adversário que é o destino), simulacros (sujeito se faz parecer com alguém que não é ele mesmo), jogos de vertigem (destruição temporária da estabilidade da percepção ao pânico). Para além da atitude do jogador, existe a questão filosófica de para que existe o jogo, afinal de contas? Qual a razão da existência da predisposição da ilusão no ser humano? Para Henriot, o jogo proporciona a ilusão de uma vida livre, de livres escolhas, sem entraves. Fora dele o homem está determinado, confinado por sua história. Combinação de liberdade, limites, criação, fascínio e paixão, elementos do domínio da Estética, o jogo aproxima-se da Arte. Há, pois, uma boa razão para o jogo não sumir da vida do Homem: é ele quem o faz um ser livre. Penso que saúde na infância hoje, mais do que nunca foi, inclui a capacidade de brincar, pensando nessas caracterísitcas que foram citadas. Com o advento da tecnologia e da hiper-realidade dos jogos de vídeo-game, a fronteira realidade-fantasia ficou muito mais complicada. Mas como as crianças encaram este como um brinquedo como os outros, a capacidade de fazer de conta e de pensar-se contemporaneamente passou a ser feita, no contexto da infância, mais do que nunca no contexto da fantasia e do brincar. Pra elaborar este trabalho eu perguntei a tantas crianças quantas consegui o que era ser uma criança com saúde. Obtive como resposta que uma criança com saúde era quem tinha amigos, tinha parentes pra cuidar dele, não ficava muito doente, brincava de brinquedos e de computador e estudava. Fui em busca da definição saúde pela OMS é estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades. Fiquei impressionada com a semelhança.

Hoje a infância ficou mais complexa, ou pelo menos diferente. Se o séc. 18 trouxe a delimitação da criança e do adulto, o séc. XXI traz a necessidade que se saiba que essa diferença existe, mas que isso não impeça a brutal urgência de trabalhar com o mundo virtual e com a velocidade de processamento da informação, com o borramento das fronteiras entre o público e o privado... para que fantasia e realidade não sejam delimitadas apenas por saber se o vídeo-game está ligado ou desligado, ou que intimidade não seja assistir ao BigBrother, para que possamos fugir da lógica binária curtiu ou não curtiu. Felizmente as crianças de todos os séculos sempre trouxeram consigo a leveza, a alegria e a esperança de quem tem a vida pela frente, de quem confia no futuro e não o teme. Confio nelas para que construam uma nova ética para acompanhar o nosso novo mundo. As crianças saudáveis de hoje continuam utilizando o brincar para compreender-se, seja no concreto ou na virtualidade, construindo assim a ferramenta principal: a subjetividade. Muito obrigada pela atenção.