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Transcrição:

Nota de leitura Curso: Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica PUC-SP Disciplina: A idéia da música (1 o semestre de 2001) Professor: Arthur Nestrovski Aluno: Sérgio Freire Garcia Texto escolhido: ADORNO, T.W. Schoenberg e o progresso. In: Filosofia da Nova Música. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 33-107. Traduzido da edição alemã: Philosophie der neuen Musik. Frankfurt am Main: Europaische Verlagsanstalt, 1958. Ensaio terminado em 1940-41. Primeira edição alemã em 1949; segunda edição de 1958, com pequenos adendos sobre as últimas obras de Schoenberg. Foi também utilizada a seguinte edição alemã: ADORNO, T.W. Schönberg und der Fortschritt. In: Gesammelte Schriften: in zwanzig Bände / 12. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt am Main: Suhrkamp (Taschenbuch), 1997, pp. 36-126. A edição alemã traz na margem superior das páginas a divisão deste ensaio nas seguintes seções (os números das páginas são da edição brasileira): 1. Estremecimento da obra (p. 33) 2. Tendência do material (p. 35) 3. Crítica de Schoenberg à aparência e ao jogo (p. 38) 4. Dialética da solidão (p. 42) 5. Solidão como estilo (p. 45) 6. Expressionismo como objetividade (p. 46) 7. A organização total dos elementos (p. 48) 8. Desenvolvimento total (p. 50) 9. Idéia da técnica dodecafônica (p. 55) 10. Domínio musical sobre a natureza (p. 57) 11. Queda na falta de liberdade (p. 59) 12. Melodia e ritmo dodecafônicos (p. 62) 13. Diferenciação e perda de refinamento (p. 66) 14. Harmonia (p. 69) 15. Sonoridade instrumental (p. 73) 16. Contraponto dodecafônico (p. 75) 17. Função do contraponto (p. 79) 18. Forma (p. 80) 19. Os compositores (p. 86) 20. Vanguarda e ensino (p. 92) 21. Renúncia (Lossage) ao material (p. 95) 22. Caráter de conhecimento (p. 100) 23. Posicionamento frente à sociedade (p. 104) Em minha leitura, dividi este ensaio em três grandes partes. A parte central deste ensaio é a abordagem crítica da técnica dodecafônica (9-19); a parte que a precede (1-8) trata das características do expressionismo de Schoenberg, e a parte final (20-23) trata das relações entre vanguarda musical e sociedade. Antes de comentar o conteúdo destas partes (com início na página 6 desta nota de leitura), gostaria de listar as principais imprecisões que consegui detectar na tradução brasileira, que parecem confundir ou alterar a compreensão de alguns trechos deste ensaio (o negrito indica a minha tradução, que normalmente está acompanhada do termo alemão em parênteses):

Nenhuma crítica ao progresso é legítima, a não ser que se trate de (...) (p. 10, prefácio) (Keine Kritik am Fortschritt ist legitim, es wäre denn die, welche...)..., exatamente como ocorria na época do baixo-contínuo (Generalbässära), em que as sucessões de quinta... (p.36) Além disso, os compositores dodecafônicos hesitam (schwanken.., ob sie...oder) por amor à pureza da escritura entre evitar todas as duplicações de oitava, ou admiti-las novamente, pela grande clareza que introduzem. (p.37, nota de rodapé no. 2) A enfermidade que acometeu (befallen) a idéia de obra... (p.38) Os vestígios (...) como mensagens do Id (des Es), que perturbam (...) (p.40) Na verdade, esta sempre abala (...) a superfície artística (kunstvolle). (p.41, nota de rodapé no. 6) O fato de que os operários (...) à angústia que aquele que está separado da produção material experimenta frente a ela. (p.44) O expressionismo permanece, contra a vontade (wider Willen), o que por volta de 1900 se reconhecia abertamente como sendo a arte, isto é, solidão como estilo. (p.45) A poesia diz: (p. 46) Am Wegrand (À beira do caminho) Tausend Menschen ziehen vorüber, den ich ersehne, er ist nicht dabei! Ruhlos fliegen die Blicke hinüber, fragen den Eilenden, ob er es sei... Aber sie fragen und fragen vergebens. Keiner gibt Antwort: Hier bin ich. Sei still. Sehnsucht erfüllt die Bezirke des Lebens, welche Erfüllung nicht füllen will, und so steh ich am Wegrand-Strande, während die Menge vorüber fliesst, bis erblindet von Sonnenbrand mein ermüdetes Aug sich schliesst. Mil homens (pessoas) passam, o que eu almejo não está lá! Sem descanso os olhos sobrevoam, perguntam aos apressados se ele está lá... Mas eles perguntam e perguntam em vão. Ninguém responde: Aqui estou. Fique calmo. A ansiedade preenche os domínios da vida, cuja satisfação não se realizará, e então fico na margem da beira do caminho, enquanto a multidão passa, até que cego pelo calor do sol meus olhos cansados se fechem. A posição da mônada (Monade) absoluta na arte é duas coisas: resistência à má socialização e também predisposição a uma socialização pior. (p.46) Se chamamos objetividade (Sachlichkeit) à obrigação de uma construção exata, a objetividade (...) (p.47) Desta maneira, a música não recai, como o texto, aquém (hinter) do estágio de conhecimento do expressionismo, e sim (sondern) o ultrapassa. (p.47-8) A música tradicional teve de lidar com (hatte...hauszuhalten) um número extremamente limitado de combinações sonoras, especialmente no sentido vertical. Devia conformar-se em encontrar (abfinden) continuamente o específico, mediante constelações do universal, que, paradoxalmente, deviam apresentá-lo como idêntico ao irrepetível. (p.48) Durante o romantismo (Während der Romantik), isto (...) (p.49) 2

Esta destreza em sua impenitente ingenuidade tornou-se hoje agressiva. A organização integral da obra de arte - sua única objetividade possível hoje -, que confronta esta destreza, é precisamente o produto de uma subjetividade que, em virtude de sua casualidade, é denunciada pelo artesanato musical [Musikantenmusik]. (p.50) Daí resulta um sistema de domínio sobre a natureza. (p.57) Segundo a filosofia da história de Spengler, em fins da época burguesa, rompe-se (bricht...durch) o princípio de autoridade pura, que ela inaugurou. (p.57) Schoenberg, em cuja música está secretamente mesclado um elemento deste positivismo que constitui a essência de seu opositor Stravinsky, extirpou, em conseqüência da disponibilização da música para expressão documental (in der Konsequenz der Verfügbarmachung von Musik für protokollarischen Ausdruck) o sentido, pelo menos na medida em que este, segundo a tradição do classicismo vienense, pretendia estar presente somente no contexto da fatura (Faktur) musical. Mas a fatura como tal deve ser exata, ao invés (anstatt) de ter sentido. (p. 59) Precisamente sua origem na subjetividade determina a casualidade de qualquer organização (beliebiger Setzung), logo que se põe positivamente frente ao sujeito como ordem reguladora. (p. 60) O radicalismo com que a obra de arte técnica (technische Kunstwerk) destrói a aparência..(p. 61) (as outras obras-primas nesta página também devem ser obras de arte) (...) como também da falsa compulsão natural do efeito da sensível (Leittonwirkung), da cadência automatizada. (p. 63) A mais fina elaboração da música é obtida ao preço de uma perda de refinamento (Vergröberung) crescente. (p. 67) Semelhante percepção direta de um intervalo objetivamente de segunda como um intervalo de terça está excluída além (jenseits) da tonalidade: esta percepção pressupõe um sistema preciso de coordenadas e se determina através de sua diferença frente ao sistema. (p. 67) Se hoje se quer articular formas maiores é necessário recorrer a meios bem mais intensos, a drásticos contrastes de registro (Lage), da dinâmica, da escrita, do timbre, e por fim, a invenção dos temas vem relacionar-se estreitamente a qualidades cada vez mais evidentes (sinnfälligere) (p. 68) O ouvido atento não pode, no espaço dos doze sons do croma, subtrair-se às sensação de que cada som particular complexo (komplexen), pede em princípio, como complemento simultâneo ou sucessivo, aqueles sons da escala cromática que o mesmo espaço não comporta. O fato de que Schoenberg, numa de suas mais grandiosas composições dodecafônicas, (...) tenha citado (zitiert) o princípio do ostinato, que até então tinha excluído, tem sua razão de ser nestas circunstâncias: o ostinato deve estabelecer um nexo que já não existe entre um som e outro (von Klang zu Klang) e nem sequer em um som particular. (...) Este absurdo não pode ser confundido com (verwechseln) a escassa compreensibilidade do que não está bem organizado, mas há de anexar-se mais acertadamente à nova classe de organização. A técnica dodecafônica substitui a mediação, a transição, o impulso da sensível (Leittönigkeit) pela construção consciente; mas esta se paga com a atomização dos sons. (p. 71) 3

...e tornada (realizada - gemacht) assim na fase expressionista. (p. 74) (...) mas a paleta colorista das obras tardias tem o caráter da concessão (Konzession). Essa paleta procede menos da estrutura dodecafônica do que da estruturação (Satz), ou seja, do interesse pela clareza. Este mesmo interesse é, contudo, ambíguo. Ele exclui todos os estratos musicais em que, segundo a exigência específica da composição, se aspira não à clareza destes, mas antes o contrário, com o que se apropria sem cerimônia (umstandlos) do postulado neo-objetivo da eqüidade do material (Materialgerechten), de cujo fetichismo material a técnica dodecafônica, também em sua relação com a série, tanto se aproxima. (p. 75) (...) tendiam com desesperada energia a equilibrar o coral, construído sobre o baixo, com a polifonia genuína (...) (p. 76) Mas este mérito diminui quando cai a base harmônica do impulso (harmonische Stein des Anstosses) e quando o contraponto já não pode legitimar-se mediante a formação de acordes perfeitos. (p. 77) Webern sabia muito bem porque tratava, em suas últimas obras, de derivar o princípio canônico da própria estrutura serial, enquanto Schoenberg evidentemente tornou-se finalmente sensível contra (gegen) todos estes artifícios aplicados ao novo. (p. 77) A arte da imitação e do cânone supõe precisamente esta consciência dos graus harmônicos ou pelo menos um modo tonal com o qual, contudo, não se pode confundir (verwechseln) a série dodecafônica, que trabalha atrás dos bastidores. (p. 77) Nunca uma parte se agrega a outra de maneira realmente livre, mas o faz sempre como derivação e é precisamente a completa liberdade dos feitos de uma voz para tomarem parte nas outras, (que representam) sua negação recíproca, que as coloca numa relação de reflexo, em que está latente a tendência a se suprimir (aufheben), em última instância, a independência recíproca das partes, ou seja, todo o contraponto no acorde de doze sons. (p. 78) (...) e tendem, não a uma representação de uma meta (Zielvorstellung), mas ao equilíbrio irrepetível. (p. 81) Todo som pertence à série como qualquer outro; como é possível, então, uní-los sem separar (subtrair) as categorias dinâmicas formais da substância compositiva? (p. 82) Até hoje a teoria musical oficial não se esforçou por precisar o conceito de continuação como categoria formal; contudo, sem a contraposição de acontecimento (Ereignis) e continuação (Fortsetzung) as grandes formas da música tradicional, e ainda as de Schoenberg, não podem ser compreendidas. (...) (p. 83) A verdadeira superioridade das grandes formas está em que somente elas podem criar o instante em que a música se converte em composição. Este instante é essencialmente estranho ao lied, e por isto (darum) os lieder são subordinados à medida mais rigorosa. Eles (estes instantes?) permanecem imanentes nas entradas (Einfall) dos lieder, enquanto a grande música se constitui através de sua liquidação (während grosse Musik sich konstituiert durch dessen Liquidation). Esta anulação só se realiza retrospectivamente, mediante o ímpeto (Schwung) da continuação. Toda a força de Schoenberg apoia-se nesta capacidade. (p. 84) A técnica dodecafônica surgiu do princípio, geralmente dialético, da variação. Este princípio postulava que a insistência na identidade e a contínua análise desta no processo da composição todo trabalho motívico é análise, divide o existente em 4

mínimos - dão como resultado o perpetuamente novo. Mediante a variação, o dado musical, o tema no sentido mais estrito, transcende a si mesmo; mas a técnica dodecafônica, elevando o princípio da variação à totalidade e considerando-o como absoluto, eliminou-o com um último movimento conceitual. Tão rápido quanto se torna total, desaparece a possibilidade de transcendência musical; (p. 84-5 tradução ampliada) Na realidade, esse construtivismo impera somente sobre a ordem dos momentos, sem juntá-los (aufschliessen) uns aos outros. (p. 86) A mais íntima beleza das obras de Berg é devida, contudo, menos à superfície compacta de seu êxito (Gelingen) do que à sua íntima impossibilidade; (p. 90) Mas esta modernidade não se refere de modo algum aos produtos. Esses esquemas tratam os ouvintes com os últimos métodos da psicotécnica e da propaganda e eles mesmos estão construídos com critérios propagandísticos, mas precisamente por isto seguem ligados ao sempre igual da tradição fragilmente solidificada (??) (ans immer Gleich der brüchig-erstarrten Tradition). (p. 93) Mas isto induz o sujeito a renunciar (lossagen) novamente a seu material, e esta renúncia constitui a tendência mais interior do último estilo de Schoenberg. Por certo que a dessensibilização (ou indiferenciação - Vergleichgültigung) do material, forçado no cálculo da série, envolveu justamente esta má (schlechte) abstração, que logo o sujeito sente como auto-alienação. Mas ao mesmo tempo é essa dessensibilização que permite ao sujeito romper a barreira da matéria natural em que até agora estava confinada a história da música. (p.96) (...) contra a qual havia se rebelado (rebelliert) inutilmente, (...) (p.96) Com sua hostilidade pela arte a obra se aproxima do conhecimento (Erkenntnis). (p. 100) Quando a análise técnica demonstra que o momento saliente (hervortretend) da falta de sentido é um momento constitutivo da técnica dodecafônica, aqui está contida não somente (nicht bloss) a crítica da técnica dodecafônica - no sentido de que a obra de arte total, inteiramente construída e portanto coerente em tudo, entra em conflito com sua própria idéia. Mas também (Sondern), em virtude da incipiente falta de sentido, elimina-se (wird...gekündigt) o caráter fechado inerente à obra. (p. 103) A música e o pranto abrem (öffnen) os lábios e dão liberdade ao homem. O sentimentalismo da música inferior (unteren) recorda, em forma degradada, o que a música verdadeira (obere) pode precisamente conceber à margem da loucura: conciliação. (p. 104) Somente como o sonho matutino ressoa com os rumores do dia, é que a música de Beethoven - música burguês a levada a seu ponto culminante - ressoa com o estrondo e o ideal dos anos heróicos da classe burguesa, e não é a audição atenta, e sim o conhecimento abstratamente mediado dos elementos e sua configuração que assegura o conteúdo social da grande música. A crua atribuição da música a classes e grupos é meramente assertiva e se converte muito facilmente na tolice da perseguição ao formalismo com a qual se estigmatiza como decadência burguesa tudo aquilo que se abstém de fazer o jogo da sociedade existente, e que atribui à dignidade da democracia popular a decadência da composição burguesa - pelúcia romântica tardia e patética. (p. 104) (tradução modificada e ampliada) 5

A técnica integral da composição não nasceu do pensamento do Estado (Staat) integral nem tampouco do pensamento de eliminá-lo. (p. 106) Este ensaio, ao contrário do que seu título aparentemente promete, se constitui na crítica mais completa e refinada que a técnica dodecafônica de Schoenberg já sofreu, e raros são os momentos onde Adorno não demonstra a aporia da aplicação realmente a fundo de seus princípios. Isto se dá principalmente em relação à concepção de composição musical que Schoenberg tinha em mente: estruturação de melodia, harmonia, contraponto, instrumentação, desenvolvimento, contrastes, dinâmica formal os principais elementos do universo sonoro tradicional. Mas associar Schoenberg ao fracasso da técnica dodecafônica não é o tema deste ensaio. É antes a trajetória totalmente consciente e coerente deste compositor - cuja obra, (...) de extremo a extremo, pode ser entendida como processo dialético entre momento expressivo e construção (p. 82) - que Adorno tenta nos descrever, desde as primeiras peças atonais até sua última fase, quando Schoenberg compõe com a série, domina-a com superioridade, mas também como se nada tivesse ocorrido. (p. 90). Um título alternativo para este ensaio poderia ser A Paixão de Schoenberg segundo Adorno (sic...). Partindo de movimentos corporais do insconsciente, de shocks, de traumas, que ficam registrados no meio da música (p. 40), passando por problemas insolúveis como os de um escritor que tenha que servir-se expressamente do dicionário e da gramática em cada período que escreve (p. 86), até chegar ao final do inverno da técnica dodecafônica (p.94), porém sem recair na irracionalidade que a precedeu (idem). Este percurso dialético, no entanto, está longe de ser um êxito. Na conclusão, encontramos: A nova música tomou sobre si todas as trevas e as culpas do mundo. Toda a sua felicidade apóia-se em reconhecer a infelicidade; toda a sua beleza em subtrair-se à aparência do belo. (...) É verdadeiramente uma mensagem encerrada numa garrafa. (p. 107) A dissonância emancipada - uma das marcas da música do século XX -, é assim tratada por Adorno: Com efeito, no acorde, a dissonância está superada unicamente no duplo sentido hegeliano. Os novos acordes não são os inofensivos sucessores da antiga consonância. (...) Desta forma, continuam dissonando, não em relação às consonâncias eliminadas, mas em si mesmos. (p. 72) Acredito que este ponto de vista é ainda válido até hoje. Um dos principais pontos levantados por Adorno, com desdobramentos importantes na música posterior a Schoenberg, é a atomização dos sons devida à técnica dodecafônica (pp. 71 e 87). Quando Adorno diz que a finalidade de Webern é fazer coincidir a exigência da série com a exigência da composição (p. 90), podemos compreender porque foi este compositor (e não Schoenberg) o escolhido como influência decisiva pela geração pós-segunda-guerra. Esta influência fica patente na primeira fase do serialismo integral, chamada de estilo pontilhista. Mas também nos faz lembrar o objeto sonoro de P. Schaeffer. A concepção de obras que prescindem da aparência da dinâmica formal e da relação com as formas que em sua simetria descansam em relações harmônicas, enquanto por outro lado operam com simetrias absolutamente rígidas, puras e de certo modo geométricas (p. 81), buscando assim estar em todos os seus momentos, (...) igualmente perto do centro (p. 54) trazem também à mente a aplicação da concepção 6

serial (uma coleção diferenciada e não hierarquizada de materiais) levada às suas últimas conseqüências: a criação de obras com formas abertas, tais como a Klavierstûck XI, de Stockhausen, ou a Terceira Sonata de Boulez, na década de 1950, onde a própria estrutura é tratada serialmente. Para finalizar estes breves comentários sobre um texto aparentemente inesgotável, destaco um elemento que parece simbolizar o progresso em todos as seções deste ensaio: a solidão, o isolamento e a postura crítica do compositor: O discurso solitário interpreta melhor a tendência da sociedade do que o discurso comunicativo. (p.43) Nenhum artista está em condições de eliminar a contradição que há entre arte não-acorrentada e sociedade acorrentada: tudo o que pode fazer é contradizer esta sociedade acorrentada com a arte não-acorrentada, e até disso deve quase desesperar. (p. 87) O isolamento da nova música radical não deriva de seu conteúdo associal, mas de seu conteúdo social, pois, mediante sua única qualidade, e com tão maior rigor quanto mais puramente a deixa transparecer, indica a desordem social, ao invés de volatilizá-la no engano de uma humanidade já entendida como realizada. (p. 105) Mas Adorno consegue também conceder a Schoenberg um leve perfil reacionário : A inexorabilidade de Schoenberg e seu espírito conciliador estão em profunda relação recíproca. A música inexorável representa a verdade social contra a sociedade. A música de conciliação reconhece o direito à música que a sociedade, embora falsa, ainda possui (...) (p. 99). Hoje, passados 60 anos da escrita deste ensaio, nos quais não só a indústria cultural avançou consideravelmente, como também novas formas descentralizadas de produção e distribuição culturais passaram a ser desenvolvidas, fica a curiosidade de se imaginar que pessoas, atitudes e obras da atualidade Adorno consideraria musicalmente (e socialmente) progressistas. 7

Adendo ADORNO, T.W. Introdução. In: Filosofia da Nova Música. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 13-31. Esta parte do livro também está dividida em seções: 1. Escolha do material (p. 13) 2. Novo conformismo (p. 14, último parágrafo) 3. Falsa consciência musical (p. 16) 4. Intelectualismo (p. 19) 5. Música radical não está imune (p. 22) 6. Antinomia da música nova (p. 24) 7. Indiferenciação (p. 26) 8. Para o método (p. 29) Na música também se dá o que Clement Greenberg chamou de divisão de toda arte em kitsch (Kitsch) e vanguarda; e o kitsch, a ditadura dos lucros (Diktat des Profits) sobre a cultura, há tempos subjugou (unterwerfen) sua esfera [da cultura] particular socialmente reservada.(p. 19) (...) define a verdadeira posição musical diante da diversão (Spass) culinária. (p. 20) (...) em lugar de submergir-se, de aprofundar-se na coisa, na obra de arte, e assim se deixar seguir por sobre (darüber...fahren zu lassen) a mera subjetividade e suas condições particulares. (p. 20, nota de rodapé no. 3) É precisamente este interesse absoluto que a arte apreendeu (beschlagnahmen) no século XIX, quando a pretensão à totalidade dos sistemas filosóficos foi conduzida à [mesma pretensão] da religião até o inferno. (als der totale Anspruch der philosophischen Systeme dem der Religion in den Orkus gefolgt war) (p. 21) (...) para o artista basta o estabelecimento de prazos e de ocasiões específicas (reicht die Festlegung auf Termine und bestimmte Gelegenheiten schon hin), para se anular (...) (p. 27) 8