A MUSICOLOGIA DA CAPOEIRA: SIGNIFICADOS E EXPRESSÕES



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Transcrição:

1 A MUSICOLOGIA DA CAPOEIRA: SIGNIFICADOS E EXPRESSÕES Maria Eduarda Lemos da Silva Pessoa Licenciatura em Educação Física na Faculdade Social da Bahia Luis Vitor Castro Júnior Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Professor da Faculdade Social da Bahia Doutorando da PUC/SP no programa de História RESUMO O estudo trata das relações de expressões e significados possíveis no que se refere à musicalidade da capoeira. O estudo se ateve em analisar as canções de capoeira compreendendo os seus possíveis significados, considerando os rituais instituídos da roda. Para tanto, utilizamos a etnomusicologia que enfoca o estudo da música nas suas formas de produção cultural. As análises revelam a riqueza poética e os ricos saberes ancestrais. Por intermédio das musicas de capoeira tecem os valores culturais de diversos fatos históricos que reforçam, muitas vezes, o preconceito racial e contra as mulheres. ABSTRACT These study it deals with the relations of expressions and possible meanings as for the musicality in capoeira. The study was perform analyses onto capoeira songs understanding the possible significance in the ritual shows. For this aim we used the ethnomusicology which do the music study in the cultural production way. The analysis disclose to the poetical rich and the rich ancestor know. For intermediary of capoeira music s they weave the values of diverse historical facts that strengthen, many times, the racial preconception and against the women cultural. RESUMEN El estudio se ocupa de las relaciones de expresiones y significados osibles en lo que se refiere a la musicaliad de la "capoeira". El estudio buscó analizar las canciones de "capoeira" comprendiendo sus posibles significados, considerando los rituales instituidos en la "roda". Así, utilizaremos la etnomusicologia que enfoca el estudio de la música en sus formas de producción cultural. Las analices revelan la riqueza poética y los ricos saberes ancestrales. Por el intermedio de las músicas de "capoeira" tejen los valores culturales de diversos hechos históricos que consolidan, muchas veces, la preconcepción racial y contra las mujeres. Iê, ê, ê, ê... Aprofundar estudos sobre a musicalidade da capoeira é trazer à tona certa história que era contada e cantada pelos antigos Mestres. Estes a utilizavam como forma de expressar o mais profundo sentimento. É algo que transcende os limites da realidade, mas que é possível de ser entendida. A música na capoeira é uma magnífica expressão que estimula, desperta e dá energia para os praticantes, pois ela está sempre ligada a uma expressão emotiva. Este texto é parte da monografia final de curso, cujo propósito consiste em investigar o universo musical da capoeira, ouvindo as sonoridades das músicas, seus toques, suas vibrações

2 e seus ritmos. A musicalidade na capoeira serviu e serve para estabelecer a comunicação entre os capoeiristas e as forças emanantes, assegurando a transmissão oral como caminho de interlocução da história, que favorece a preservação dos seus ritos de passagens. A poesia sonora e a produção de saberes na musicalidade da capoeira A música na capoeira é como uma poesia da vida real, que tece acontecimentos diários, onde identificamos diversos elementos entrecruzados das línguas portuguesas, africanas e indígenas, marcando a sua presença no mundo com seus códigos e significados, dessa maneira, podemos considerar a música da capoeira uma poesia sonora que segundo Enerst Robson considera: A música fonética pode ser facilmente concebida como um âmbito particular da poesia sonora. É poesia sonora toda forma acústica da linguagem que seja independente da gramática ou do significado. Ela pode ser acompanhada ou não, acusticamente, de um texto significante, de música instrumental ou de efeitos ambientais 1. Nas chulas, corridos ou quadras da capoeira verificamos a poesia sonora onde, geralmente, tem um significado implícito e sempre está acompanhada dos instrumentos e sons ambientais, já que as rodas aconteciam nos espaços públicos (as ruas) até o inicio do século passado. A poesia sonora na capoeira fala sobre acontecimentos reais da história de sofrimento vivido pelos negros. Dispositivos utilizados por eles para gritar contra as injustiças e para falar dos episódios ocorridos durante as contendas e das próprias festas populares. Criadas pelos próprios capoeiristas, sem compromisso de obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa. Essa poesia-música do povo da rua servia para liberar suas angústias enfrentadas na sua labuta diária. Estamos considerando as canções da capoeira como uma prática enunciativa, dialógica, polissêmica e polirítmica, oriunda, sempre de entre-lugares, negociação e conflito permanente, fortalecendo os contatos culturais africano, indígena e português. Sabemos que as relações étnicas e sociais no Brasil foram de dominação, de confronto e resistência, e também de interação, aliança e compromisso entre diversos setores da sociedade. Durante 500 anos de convivência, as formas musicais se misturaram, inclusive de modo polêmico, do mesmo modo que interferiram as relações culturais, sem que nunca se deixe de lado a questão das forças motrizes do devir estético e social. Segundo Emília Biancardi, As letras das músicas da capoeira retratam, por vezes, fatos históricos... 2. Esta é uma forma de relembrar o sofrimento vivido pelos antepassados homenageando-o pela sua bravura e devoção. Não se refere apenas à luta pela liberdade, mas também por provocações (cantigas de sotaque) que podiam surgir a qualquer momento e quando aparecia um valentão querendo sempre disputar os espaços tentando instituir o seu poder, eles catavam: Quebra gereba, quebra gereba; Quebra tudo hoje amanhã nada quebra, Quebra, quebra gereba; Quebra tudo amanhã quem te quebra, Quebra, quebra gereba... Tá 1 ROBSON, Ernest. O conceito de música fonética. Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. Fhiladelmo Menezes (org.) EDUC. São Paulo. 1992, p. 85. 2 BIANCARDI. Emilia. Raízes Musicais da Bahia. Osmar G. Salvador 2000, p 108.

3 com medo; Toma coragem; Pra que Ter medo; Toma coragem; Dispensa o medo; Toma coragem; Se tá com medo... As cantigas de desafios geram intrigas. Os capoeiristas guardam mágoas de brigas passadas e esperam a oportunidade certa para tirar a sua forra. A música, quebra jereba, já é conhecida dentro das rodas de capoeira como música de desafio. Ao ser cantada, a mesma se caracteriza por um jogo rápido, onde os capoeiristas trocam golpes para ver quem vai sair quebrados. Ao cantarem você quebra hoje, amanha quem te quebra?, eles fazem alusão à paciência que o capoeira deve ter para disputar o golpe na hora certa. É um aviso de que a luta não vai ser esquecida. Rego considera que os sotaques advertindo, sob várias maneiras às pessoas, que não se envolvam onde não podem, sobretudo mostrando que o tamanho e a força não funcionam muito valendo apenas a inteligência, a habilidade 3. Menezes ao comentar acerca da poesia como uma arte de produzir sonoridade, afirmar que: A poesia sonora se apresenta como um novo modo de pensar a poesia como a arte da vocalidade, não domada pela linguagem comunicativa e letrada, e sim libertada num espaço da a-comunicabilidade (não anticomunicabilidade), através da criação de uma língua (um racional código aberto) que não carrega significado, mas somente sua própria presença no mundo. Essa presença do indivíduo corporalmente vivo, repensado a partir de sua relação física e sensorial com o ambiente em que vive, reposto no centro das vivências estética e cotidiana, num momento em que ambas se fundem. O redimensionamento do corpo como meio produtor dessa poesia e seus significados na cultura... 4 Na capoeira, a música se funde formando a arte da multiplicidade sonora, formatando a poesia musicada, desta forma, o capoeirista faz de sua música uma potência-poética vivida e re-atualizada por todos aqueles que estão na roda. A roda lócus da produção material e imaterial possui o poder de traçar linhas de fugas impossíveis de serem totalmente capturadas e o devir dos corpos batucando criam novos poemas com novos ritmos. Os produtores culturais na roda de capoeira utilizam-se de chiados e outros fonemas lingüísticos formando distintas sonoridades daquelas convencionais. Podemos citar como exemplo, a seguinte música: Eu pisei na folha seca, vi fazer chuê chuá, chuê chuê chuê chuá, eu vi fazer chuê chuá... O chuê chuá complementa a música, exercendo função equivalente ao som de pisar na folha seca. Para essa expressão de complemento poético, Fortunato Depero utiliza a onomalíngua que são expressões derivadas da onomatopéia... Quis precisamente interpretar a linguagem abstrata das forças naturais, como o vento, chuva, do mar, do rio, do fogo, de todas as emoções e sensações íntimas 5. Outro exemplo presente nas canções da capoeira é a onomatopéica representada pelo choro da criança: Chora minino; nhem, nhem, nhem; o minino é chorão; nhem, nhem, nhem... onde o nhem, nhem, nhem é a representação sonora do choro da criança. 3 REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: um ensaio sócio etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968, p 253 4 MENEZES, Philadelpho. Da poesia fonética à poesia sonora. Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. Fhiladelmo Menezes (org.) EDUC. São Paulo. 1992, p. 10. 5 DEPERO, Fortunato. Onomalígua. Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. Fhiladelmo Menezes (org.) EDUC. São Paulo. 1992, p. 19.

4 Minarelli ao considerar a anomatopéia como condição performática para o bom êxito de um poema sonoro, principalmente se introduzida de modo inesperado, por isso estranho, ou substutivo, quase metonímia ou sinédoquez 6 sonora 7. O anômalo da roda de capoeira está presente naquele instante de improvisação que o cantador consegue incorporar na música as situações ocorridas durante o jogo em virtude de um novo episódio, a perspicácia do cantador está justamente no devir de puncionar o fato. Nas músicas de capoeira observar-se também a metonímia 8, por exemplo: Eu conheci o mestre bimba, o mestre pastinha e também seu maré, e ele falou capoeira pra home, minino e mulhê, é, é, pra home, minino e mulhê... Em vez de utilizar o nome Manoel dos Reis Machado, o apelido toma força para representar a dinâmica cultural ancestral na capoeira. Sendo assim, o nome atribuído ao mestre se constitui numa potência, pois os seus saberes vão sendo revigorados, ultrapassando a figura humana, para se constituir enquanto mito, capaz de estabelecer a ancestralidade nos entre-tempos. Voltando às letras de capoeira de um português cada vez mais hibridizado com as palavras de origem bantu e indígena. Encontramos nas mesmas, fortes incidências de uma fala cheia de significados, onde através desta linguagem, eram estabelecidos significados para serem compreendidos pelos os incorporados a essa tribo capoeira. Facilmente acontecia o ar de duplo sentido nas palavras. Podia ser de sotaque, o aviso de que alguém estava chegando para reprimir (a polícia), ou até quando se cortejava uma moça. A produção dessa poesia a princípio acontecia nos engenhos e nos canaviais com suas cantigas de escravos, em seguida na vadiação das praças públicas até chegar nas academias. Consideramos, a música a partir do capoeirista, é como se fosse a água para o peixe. Ela vai dá pista como ele deve agir e vai determinar o ritmo do jogo, deixando livre para dá a volta ao mundo. As músicas da capoeira são divididas em ladainha (começo) e o corrido (refrão). A ladainha corresponde ao canto inicial, para o capoeirista, é um momento sagrado no qual são evocadas entidades míticas religiosas exigindo dele respeito e atenção Na ladainha abaixo, o ritmo é lento, sempre acompanhado pelo berimbau, tocando angola ou são-bento-grande (lento) 9 : Riachão tava cantando, Na cidade de Açu, Quando apareceu um nêgo, Como a espece de ôrubú, Tinha casaca de sola, Tinha calça de couro cru, Beiços grossos redrobado, da grossura de um chinelo, Tinha o ôlho incravado, Outro ôlho era amarelo, Convidô Riachão, Pra cantá o martelo, Riachão arrespondeu, Não canto cum nêgo desconhecido, Êle pode sê um escravo, Ande por aqui fugido, Eu sô livre como um vento, Tenho minha linguagem nobre, Naci dentro da pobreza, Não naci na raça pobre, Que idade tem você, Que conheceu meu avô, Você tá parecendo, Que é mais môço do que eu, Iê água de bebê... Versos do domino público. 6 Atualmente não é de costume estabelecer grande diferença entre sinédoque e metonímia. Em ambos os casos, trata-se de uma substituição, tomando-se a parte pelo todo ou o todo pela parte. MAIA, João Domingues, Gramática. 12ª edição, editora atica, São Paulo,1994, p. 302. 7 MINARELLI, Enzo. Histórias da poesia sonora no século XX: cânones e classificações. Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. Fhiladelmo Menezes (org.) EDUC. São Paulo. 1992, p.115. 8 Metonímia- Designação de uma coisa com o nome de outra, em virtude da afinidade existente entre ambas. Por exemplo: o autor pela obra. MAIA, João Domingues, Gramática 12ª edição, editora ática, São Paulo, 1994, p. 302. 9 Biancardi. Emilia BIANCARDI, Emília Raízes Musicais da Bahia. Osmar G. salvador 2000, p.109.

5 A ladainha pode ser considerada um louvor dos feitos e das qualidades de um capoeirista lendário, mas pode ainda conter um elogio ou provocação irônica ao parceiro, uma louvação aos presentes, um agradecimento à hospitalidade dos donos da casa ou, relato e comentário de algum acontecimento. As ladainhas geralmente contem lições de vida e transmitem a filosofia da capoeira, servindo de inspiração para o jogo, mas ela também pode se configura num certo proselitismo que reforça a discriminação racial e de gênero. No CD da trilha sonora do filme Dança de Guerra Mestre Bimba canta a seguinte ladainha: Minino quem foi teu mestre, Minino quem foi teu mestre, Que lhe deu essa lição, Fui discípulo que aprende, Qui in mestre eu dei lição, O mestre qui mim insinô, ta no engenho da Conceição, A ele devo dinheiro, saúde e obrigação, O segredo de São Cosme, Mas quem sabe é São Damião. A ladainha reverencia a figura do mestre como sujeito importante no processo de transmissão dos saberes. Segundo Rego essa cantiga pode ser considerada como geográfica e de devoção. As geográficas consistem em cantigas localizando vilas, cidades, estados... 10, ou seja, no momento em que fala... no Engenho da Conceição, ele está se referindo a um determinado território. Já nas cantigas de devoção, retratam algum Santo no qual os capoeiristas têm devoção. Rego afirma que nas músicas de capoeira... têm como invocação São Cosme e São Damião, santos popularíssimos na Bahia... 11. Ao tratar sobre as cantigas onde o negro é estereotipado e inferiorizado, como canções de escárnio e mal-dizer. Se referem à cor negra, como símbolo do desprezível, do malefício, do diabo, partindo dessa premissa, para toda espécie de escárnio 12. Como por exemplo: Na minha casa veio um home, das espece dos urubus, Tinha camisa de sola, Paletó de couro cru, Faca de ponta de ponta no cinto, Rabo cumprido no cu, O beiço grosso e virado, Como sola de chinelo, Um zóio bem encarnado, Outro bastante amarelo 13. No Brasil permanece o modelo de uma sociedade civilizada nos moldes da cultura européia, neste sentido, o ambiente social reforça os estigmas criados ao longo da história em relação aos negros, considerados como animais incapazes de produzir conhecimento. Foram vários dispositivos inculcados para inferiorizar o negro. Ao escutamos essas canções entendemos que ta posta a condição de inferioridade dos negros, principalmente no que se refere ao fenótipo (cor da pele, traço da boca e do nariz). Retomando o canto de entrada de caráter agiológico, que de acordo com Rego, são todas as cantigas que se referem aos santos católicos ou personagens bíblicos, em que detalhe ou toda história de suas vidas são mencionadas direta ou indiretamente... 14. A referência a Deus a aos santos católicos como Santa Maria ou, personagens bíblicos como rei Salomão, Adão e Salomé. Podemos considerar como interferência cultural que aproxima várias referências religiosas para dentro do universo simbólico da capoeira. A roda funciona como uma arte de criar enredos católicos e do candomblé. Alias, a capoeira e o candomblé vieram do mesmo meio cultural. Temos vários exemplos de músicas cantadas pelo candomblé que também é cantada na capoeira, como: E ogum ê, oi ta ta que malembê, ê ogum ê oi ta ta que malembê, ogum ê... 10 REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: um ensaio sócio etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968, p. 245. 11 Idem, p. 242 12 idem, p. 236 13 Idem, p. 118 14 Idem, p. 244-245

6 ou Ponha lá vaqueiro, ponha jaleco de couro, oi ponha jaleco de couro, na porteira do curral... (música de domínio público). Há uma reverência ao orixá Ogum, divindade masculina iorubana, que tem o arquétipo de um guerreiro. Associado à luta, à conquista, é uma das figuras astrais que estão próximas dos seres humanos. No catolicismo correspondem a São Jorge ou Santo Antônio, santos tradicionais guerreiros dos mitos católicos, também lutadores, destemidos e cheios de iniciativa. Ogum também é conhecido como o Deus do ferro, a divindade que brande a espada e forja o ferro, transformando-o no instrumento de luta. Já na outra música se refere ao caboclo 15 boiadeiro 16, que não é um orixá, mas vem da herança do negro com o índio. Percebem-se os traços da capoeira como extensão dos rituais afro-brasileiros, um sentido residual que ficou presente na capoeira, em função dos contatos históricos do sujeito participante da capoeira com a religiosidade africana. Isto ocorre cada vez que se repetem os cânticos renovando a memória deixada pelos os antepassados que praticavam os mesmos atos. Nisto reside à grandeza da dança negra, na força do ritual e no respeito aos que geraram a vida, a beleza maior. Com as forças dos ritos, preservam os mitos, participando ativamente da resistência comum às varias formas de dominação. Bastão erguido em defesa da uma identidade coletiva, a capoeira não foi um simples momento de distração, ela foi e é realmente um instrumento de transformação do sujeito. Além dessas expressões, os capoeiras também utilizam a música para seduzir as mulheres na roda, e, é claro que cada um entende para quem se dá esse elogio. Dentre várias, podemos considerar como galanteio: Se ontem lhe meti inveja, Hoje eu tenho é pena. Eu perdi tudo que tinha pelo amor dessa morena, Me leva morena me leva, Oi me leva pro seu bangalô, me leva morena me leva me leva pra baixo do seu cobertor... Vamos fazer o jogo, o jogo da moreninha, Vamos fazer o jogo, o jogo da moreninha, se eu perder você me leva, se eu ganhar você é minha... Se eu pedir você me dá, dô dô dô, um pouquinho de amor, dô dô dô, O seu pai não briga não, não, não, não, Então me dê seu coração... Nestas cantigas encontramos indícios importantes sobre as relações de gênero, a generosidade do homem sempre cortejando a mulher-morena, a conversa mole de quem pretende seduzi-la para afirma sua fama de conquistador. Outras vezes, as mulheres são tratadas como bicho interesseiro, a mulher e a galinha são dois bichos interesseiros, a galinha pelo milho e a mulher pelo dinheiro, Paranaê, paranaê Paraná Mulher pra mim tem que manter a escrita tem que jogar capoeira, ser boa, gostosa e bonita, bicho bom que é, é mulher, bicho bom que é, é mulher... Essas músicas reforçam os mais perversos preconceitos, as mulheres são ridicularizadas a um determinado tipo social que representa a indecência. As músicas instituem uma ética em que as mulheres são inferiorizadas, controladoras e disciplinadas a ouvirem tranqüilamente essas canções, desmerecendo a mulher de forma acintosa. Nessas cantigas, ela não tem voz nem desejo e está à mercê do machismo imposto pelo os homens, ficando as marcas psicológicas da submissão e da discriminação. 15 Os caboclos são considerados entidades religiosa presente no candomblé de caboclo, de angola ou na umbanda. Entidade híbrida das relações culturais do africano com o indígena. 16 O caboclo Boiadeiro se veste com seu laço na mão e seu chapéu de couro, vem laçar seus bois para nos proteger.

7 Apesar de todo preconceito contra a mulher na capoeira, os velhos mestres têm o cuidado para não reforçar esses aspectos culturais, rejeitam as cantigas que servem para denegrir a imagem feminina. Éimportante lembrar, que a atitude machista representada nas letras, contraria os princípios filosóficos cantados pelo o Mestre Pastinha que a capoeira é para homem, menino e mulher / Só não aprende quem não quer. O iê ê final Este trabalho pode ser considerado como embrionário, porém, o mesmo procurou trazer à tona os diversos elementos encontrados nas músicas de capoeira, entendendo as suas diversas formas de expressão e significados. As análises realizadas revelam um rico manancial de saberes enredados. Apesar do desafio de enfrentar as questões relacionadas ao preconceito racial e de gênero (no caso as mulheres), acreditamos que demos um passo importante para refletimos mais sobre a nossa querida e honrada capoeira. Agora chegamos no Adeus, Adeus, Boa viagem, Eu vou me embora, Boa viagem... REFERÊNCIAS BIANCARDI, Emília Raízes Musicais da Bahia. Salvador. Osmar G. 2000. Dicionário HOUAISS da língua portuguesa, Instituto Antônio HOUAISS DOMINGUES, Maia, João. Gramática 12, editora Ática, SP 1994, p.302. FILHO, A. A. Decânio. Falando em capoeira, Coleção São Salomão, S/editora, Salvador-Ba, 1996. MENEZES, Philadelpho. Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no século XX. Fhiladelmo Menezes (org.) EDUC. São Paulo. 1992, p. 10 MUKUNA, Kazadi Wa Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo, Ed. Terceira Margem. 2000. REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: um ensaio sócio etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968. SANTOS, E. Barbosa, M. As canções mais tradicionais da roda mais tradicional, Salvador, 2005. SODRÉ, Muniz Samba, o dono do corpo. 2ª edição, Rio de Janeiro. Ed. Muad,1998. Av. 7 de setembro, n 1949, ap 102, vitória, CEP 40080-002 victoraxe@ig.com.br