PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; extraterritorialidade; inconstitucionalidade; lei penal.

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Doutrina A Vedação da Dupla Punição Penal e o Estado Constitucional de Direito: um Ensaio sobre a Inconstitucionalidade da Extraterritorialidade Incondicionada no Ordenamento Jurídico Brasileiro MÁRCIO EDUARDO DA SILVA PEDROSA MORAIS Professor Universitário, Especialista em Ciências Criminais, Mestre e Doutorando em Teoria do Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pesquisador do CNPQ na Universidade de Itaúna, Advogado. RESUMO: Tem-se por objetivo, por intermédio do presente artigo, dentro da temática da aplicação espacial da lei penal brasileira, especificamente sobre a extraterritorialidade da lei penal, discorrer sobre a vedação da dupla punição penal. Nesse sentido, primeiramente abordar-se-á a territorialidade e a extraterritorialidade da lei penal, para, posteriormente, analisar os casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira, por intermédio do estudo do Código Penal brasileiro, apresentando a crítica em relação à inconstitucionalidade do art. 7º, 2º, ao possibilitar a aplicação de dupla punição ao agente de um fato criminoso, ferindo, assim, o princípio do ne bis in idem. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; extraterritorialidade; inconstitucionalidade; lei penal. ABSTRACT: It has been the objective, through this article, within the theme of spatial application of criminal law in Brazil, specifically about the extraterritoriality of criminal law discuss the sealing of double criminal punishment. In this sense, first will address the extraterritoriality and territoriality of criminal law, to then analyze the cases of extra-territoriality of criminal law in Brazil, through the study of the Brazilian Penal Code, with the criticism regarding the unconstitutionality of art. 7º, 2º, to allow the application of double punishment for a criminal act of an agent, injuring thereby the principle of ne bis in idem. KEYWORDS: Criminal Law; extraterritoriality; unconstitutionality. SUMÁRIO: Introdução; 1 Extraterritorialidade: princípios e espécies; 1.1 Extraterritorialidade incondicionada; 1.2 Extraterritorialidade condicionada; 2 A extraterritorialidade como afronta ao princípio do ne bis in idem; Conclusão; Referências.

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 63 INTRODUÇÃO O crime acompanha a humanidade desde os seus primórdios, tendo a sociedade, no seu início, desenvolvido a autotutela como mecanismo de resolução de conflitos, passando-se, em um segundo momento, para a autocomposição e, posteriormente, já com o Estado solidificado, tendo o mesmo assumido a função punitiva, o jus puniendi, o que, de acordo com Luis Jiménez de Asúa (1997), pode reclamar a curiosidade da filosofia, ao se questionar o porquê do castigo. Nesse sentido, de acordo com Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso (1977), a função penal emana da soberania estatal, devendo o Código Penal e as leis penais especiais definirem os fatos puníveis e cominarem suas respectivas sanções. Aníbal Bruno e Nilo Batista salientam que, nesse Código Penal, estão reunidas "as regras que estabelecem os princípios gerais do sistema e dispõem sobre a sua aplicação e os seus limites" (Bruno; Batista, 1974, p. 11). Assim, no que se refere aos limites do Direito Penal e, consequentemente, da pena, é fundamental salientar constituírem tais limites os direitos fundamentais, ou seja, direitos imprescindíveis à efetivação e manutenção de um padrão de vida digno a qualquer indivíduo, como também garantias em face do Estado, cláusulas pétreas do ordenamento jurídico, conforme estipula o 4º do art. 60 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/1988. Nesses termos, no que se refere à temática dos direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet (2003) afirma que os direitos fundamentais constituem construção definitivamente integrada ao patrimônio comum da humanidade, como bem o demonstra a trajetória que levou à sua gradativa consagração no direito internacional e constitucional. Praticamente, não há mais Estado que não tenha aderido a algum dos principais pactos internacionais (ainda que regionais) sobre direitos humanos ou que não tenha reconhecido ao menos um núcleo de direitos fundamentais no âmbito de suas Constituições. Todavia, em que

pese este inquestionável progresso na esfera da sua positivação e toda a evolução ocorrida no que tange ao conteúdo dos direitos fundamentais, representado pelo esquema das diversas dimensões (ou gerações) de direitos, que atua como indicativo seguro de sua mutabilidade histórica, percebe-se que, mesmo hoje, no limiar do terceiro milênio e em plena era tecnológica, longe estamos de ter solucionado a miríade de problemas e desafios que a matéria suscita. (Sarlet, 2003, p. 23) Assim, insta salientar inicialmente que as regras relativas à aplicação das penas devem respeitar o princípio maior do Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana, sustentáculo de todo o ordenamento jurídico democrático. Nesse sentido, Guillermo Yacobucci salienta que "ao se falar de 'dignidade humana', o que se quer é expressar o lugar privilegiado que possui o homem em relação aos outros seres, é dizer, seu patamar de superioridade e diferente respeito sobre estes" (Yacobucci, 2002, p. 206, tradução nossa)1. Ainda em relação aos princípios constitucionais penais, o princípio da vedação da dupla punição decorre do princípio da legalidade penal, apanágio do desenvolvimento de um Direito Penal garantista e democrático. Por sua vez, o princípio da vedação do duplo processo, princípio esse intimamente ligado ao primeiro, decorre do princípio maior do devido processo legal2.

64 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Desse modo, o Código Penal traz em seu texto, entre outros princípios e institutos, princípios atinentes à aplicação temporal e espacial da lei penal. No que se refere ao âmbito de aplicação espacial da lei penal brasileira, o Código Penal adotou, de modo predominante, o princípio da territorialidade temperada, o qual está previsto no art. 5º do respectivo diploma legislativo, com redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984, artigo esse que traz que "[...] aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional" (Brasil, 2011a), considerando-se, para os efeitos penais, como extensão do território nacional, de acordo com o 1º do referido artigo: [...] As embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do Governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. (Brasil, 2011a) Nesse sentido, percebe-se, como salientado, que a legislação penal brasileira adota o princípio da territorialidade temperada, prevendo como território por ficção as embarcações e aeronaves brasileiras, sejam as de natureza pública, como também as de serviço do Governo brasileiro, onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar, sendo também aplicável, de acordo com o 2º do referido art. 5º, "[...] a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil" (Brasil, 2011a). Todavia, [...] embora o campo natural de aplicação da lei penal de cada povo seja o território do próprio país, a universalidade do problema do crime e o interesse comum das nações em dar-lhe combate

alargaram o terreno de aplicação das normas punitivas, fazendo com que a matéria viesse a ser governada por cinco princípios: a) o da territorialidade; b) o da nacionalidade; c) o da defesa; d) o da justiça penal universal; e) e o da representação. (Bruno; Batista, 1974, p. 12)

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 65 O princípio territorial, com caráter exclusivo, é insuficiente para garantir a estabilidade e a segurança do Estado, tendo os Estados estendido a sua competência punitiva a fatos cometidos fora de seu território. Nesses termos, dá-se o nome de extraterritorialidade ao fenômeno que consiste na aplicação da lei penal brasileira a crime cometido no exterior, podendo a extraterritorialidade ser incondicionada. Nesse caso, aplica-se a lei brasileira independentemente de qualquer condição, ou condicionada, quando, então, haverá alguma condicionante para a aplicação da lei. Ainda em relação ao conceito de extraterritorialidade, De Plácido e Silva (2008) salienta ser extraterritorialidade o mesmo que exterritorialidade, termo este definido pelo respectivo jurista como: Formado de ex (fora) e território, quer o vocábulo, em sentido próprio, exprimir a força ou ação de uma lei, fora dos limites territoriais do Estado que, por sua soberania, a estabeleceu. O vigor das leis fora do território do país que as instituiu, ou seja, seu reconhecimento no estrangeiro, que este é o sentido de exterritorialidade, assenta nos princípios e convenções internacionais, pois somente eles permitirão que a lei, transpondo as fronteiras do país, vá ter eficácia em território estranho. (Silva, 2008, p. 338) Os casos de extraterritorialidade incondicionada estão elencados no inciso I, os casos de extraterritorialidade condicionada estão elencados no inciso II, ambos do art. 7º do Código Penal, tendo sido também a redação do artigo dada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Com essas considerações introdutórias, é fundamental apresentar o problema que permeia o presente trabalho, ou seja, as perguntas objeto da pesquisa, quais sejam: é inconstitucional a extraterritorialidade incondicionada como positivada no ordenamento jurídico brasileiro? Esta extraterritorialidade incondicionada fere o princípios do ne bis in idem? Com o objetivo de se responder a tais questões, o presente

trabalho se subdivide em três partes: a) as espécies e os princípios atinentes à extraterritorialidade; b) a análise da extraterritorialidade como afronta ao princípio constitucional do ne bis in idem; e c) conclusão. Desse modo, almeja-se, assim, por intermédio do presente trabalho, demonstrar a inconstitucionalidade do art. 7º, inciso I, do Código Penal brasileiro, ao possibilitar a dupla punição, ferindo, destarte, o princípio do ne bis in idem. 1 EXTRATERRITORIALIDADE: PRINCÍPIOS E ESPÉCIES José Afonso da Silva define princípios como as normas mais importantes do sistema, (Silva, 1998), ou seja, a estrutura do ordenamento jurídico, fontes das quais emanaram todos os substratos para a legislação, doutrina e jurisprudência. Assim, no que se refere à extraterritorialidade da lei penal, a doutrina elenca os seguintes princípios: 1) princípio da justiça penal universal ou cosmopolita; 2) princípio real, da proteção ou da defesa; 3) princípio da personalidade ou nacionalidade ativa; 4) princípio da personalidade ou nacionalidade passiva; e 5) princípio da representação ou bandeira.

66 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA De acordo com o princípio da justiça penal universal ou cosmopolita, também denominado de extraterritorialidade absoluta, a gravidade do crime ou a importância do bem jurídico ofendido justificam a aplicação da lei penal brasileira, independentemente do local do crime ou da nacionalidade do agente. Discorrendo sobre o referido princípio, Aníbal Bruno e Nilo Batista salientam que o critério da justiça penal universal, ou extraterritorialidade absoluta, vai mais longe: alarga as possibilidades da luta contra o crime, fazendo aplicar-se ao criminoso a lei penal do país onde venha a ser detido, sem ter em conta o lugar onde o fato se praticou, nem a nacionalidade do agente ou do titular do bem ofendido. Este princípio não é de fácil aplicação, sobretudo pelas diferenças que ainda separam, em diversos códigos, as soluções para a mesma matéria, apesar do movimento que se vem processando no sentido de aproximar entre si as várias legislações penais, tendo em vista o tipo comum de civilização que se desenvolve entre os povos modernos. (Bruno; Batista, 1974, p. 14-15) Por sua vez, de acordo com o princípio real da proteção ou da defesa, justifica-se a aplicação da lei penal brasileira sempre que um crime ofender um bem jurídico nacional de origem pública. Tal princípio visa à proteção do patrimônio público nacional e da soberania nacional, salientando que o princípio real da proteção ou da defesa visa à proteção de interesses jurídicos de vital importância para o Estado. Assim, o que prevalece é a consideração da nacionalidade do titular do bem ofendido, deslocando-se o Direito para estender a sua proteção aos bens do país ou de seus nacionais (Bruno; Batista, 1974). O princípio da personalidade ou nacionalidade ativa sustenta ser aplicável a lei penal brasileira a crimes cometidos no exterior desde que tenham sido praticados por nacionais (no caso brasileiros), ou seja, leva-se em consideração a nacionalidade do agente para sua punição. Já pelo princípio da personalidade ou nacionalidade passiva, pune-se um crime cometido no exterior desde que a vítima seja um

brasileiro, um nacional, por isso a nacionalidade passiva3. O princípio da representação ou bandeira sustenta ser aplicável a lei brasileira a crimes cometidos dentro de embarcações de bandeira nacional. Assim, cometido um crime dentro de uma aeronave privada brasileira no exterior, poderá ser aplicada a lei penal brasileira. Em relação ao referido princípio da representação ou bandeira, Alberto da Silva Franco (1995) salienta que sua inclusão no texto do Código Penal, por decorrência da Reforma de 1984, foi a alteração mais significativa, no que tange aos princípios gerais reguladores da matéria.

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 67 1.1 Extraterritorialidade incondicionada No que se refere à extraterritorialidade, o Código Penal brasileiro de 1940 dispõe, no seu art. 7º: Art. 7º Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I - os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, Autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; c) contra a Administração Pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil [...]. (Brasil, 2011a) Inicialmente, Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2010) salientam, acertadamente, a imprecisão da lei ao se referir aos crimes cometidos "no estrangeiro", em vez de "fora do território nacional", tendo em vista o fato de situações previstas no art. 5º, já abordado, serem consideradas parte do território nacional. De acordo com o 1º do art. 7º: "Nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro" (Brasil, 2011a). Assim, o referido 1º está salientando serem os quatro casos do inciso I hipóteses de extraterritorialidade incondicionada, ou seja, mesmo que o autor do fato criminoso tenha sido processado, condenado ou cumprido pena no exterior, o mesmo também poderá ser processado no Brasil, independentemente de qualquer condição. Insta salientar ser este rol

taxativo, em respeito aos postulados do princípio da legalidade. Primeiramente: os crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, Autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; crimes contra a Administração Pública, por quem está a seu serviço; e crime de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil. No que se refere aos princípios atinentes à extraterritorialidade incondicionada, as alíneas a, b e c do inciso I adotaram o princípio real da proteção ou da defesa. A alínea d, por sua vez, adotou o princípio da justiça penal universal ou cosmopolita, tendo em vista reprimir o crime de genocídio, crime de gravidade e repercussão mundial. É importante salientar o fato de que o inciso I do art. 7º do CP fere o princípio do ne bis in idem, ao permitir que, mesmo absolvido ou condenado no estrangeiro, o agente será julgado pela lei brasileira. Todavia, o CP, com o objetivo de amenizar a dupla incriminação, positivou em seu art. 8º que "a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas" (Brasil, 2010a).

68 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Nesse sentido, de acordo com o art. 8º, a pena cumprida no estrangeiro atenua a imposta no Brasil pelo mesmo crime, caso sejam diversas, ou nela é computada, quando idênticas, salientando que a redação do artigo também foi dada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Nos casos de extraterritorialidade condicionada, conforme será abordado na próxima seção, a pena cumprida no exterior faz desaparecer o interesse brasileiro em punir o criminoso, independentemente de qual tenha sido a pena. Já nos casos de extraterritorialidade incondicionada, caso o infrator entre em território nacional, estará sujeito à punição, pouco importando tenha sido o mesmo absolvido ou condenado no exterior. Nos casos de extraterritorialidade condicionada, a pena cumprida no exterior faz desaparecer o interesse brasileiro em punir o criminoso, independentemente de qual tenha sido a pena. Já nos casos de extraterritorialidade incondicionada, caso o infrator entre em território nacional, estará sujeito à punição, pouco importando que o mesmo tenha sido absolvido ou condenado no exterior. Assim, para que se impeça a aplicação do bis in idem, respeitando o princípio do ne bis in idem, o qual impede uma dupla punição, o art. 8º criou uma norma compensadora. Desse modo, de acordo com o art. 8º, a pena cumprida no estrangeiro atenua a imposta no Brasil pelo mesmo crime, caso sejam diversas, ou nela é computada, quando idênticas, tendo a redação do artigo sido dada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt salienta que nenhum Estado Democrático de Direito pode ignorar o provimento jurisdicional de outro Estado Democrático de Direito, devendo, no mínimo, compensar a sanção aplicada no estrangeiro, mesmo que de natureza diversa. Menos mal que o disposto no art. 8º corrige, de certa forma, essa anomalia, prevendo a compensação da pena cumprida no estrangeiro. (Bitencourt, 2010, p. 203-204)

Destarte, caso um indivíduo adentre ao território nacional, tendo sido condenado e cumprido pena privativa de liberdade lá, e aqui também seja imposta a pena privativa de liberdade, será feita a compensação. Caso tenha sido condenado à multa no exterior e a lei brasileira preveja pena privativa de liberdade, haverá a aplicação de uma pena atenuada no Brasil. É de se salientar, de acordo com Guilherme de Souza Nucci (2007a), que "essa previsão legislativa não se coaduna com a garantia constitucional de que ninguém pode ser punido ou processado duas vezes pelo mesmo fato - consagrada na Convenção Americana dos Direitos Humanos, em vigor no Brasil [...]" (Nucci, 2007a, p. 102).

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 69 Paulo José da Costa Jr. (2002) esclarece que pode haver duas hipóteses de diversidade: a diversidade quantitativa e a qualitativa. Caso a diversidade seja de qualidade (p. ex., pena privativa de liberdade no exterior e multa no Brasil), a atenuação se faz imperiosa, ficando o quantum de atenuação ao critério do Magistrado. Caso a diversidade seja quantitativa, o Magistrado brasileiro deverá abater no cálculo da pena aquela já cumprida no estrangeiro; caso seja idêntica ou inferior, nenhuma pena restará ao condenado. Assim, caso o condenado tenha cumprido 5 (cinco) anos de pena no exterior e seja condenado no Brasil a 7 (sete) anos, deverá ser abatido o tempo (7 menos 5), devendo cumprir, então, 2 (dois) anos. 1.2 Extraterritorialidade condicionada Estão elencados no inciso II do art. 7º do Código Penal brasileiro os casos de extraterritorialidade condicionada, os quais são: Art. 7º Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: [...] II - os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. (Brasil, 2011a) As três hipóteses mencionadas referem-se à extraterritorialidade condicionada, ou seja, poderá ser aplicada a lei brasileira ao fato cometido no exterior, mas deverão ser preenchidos alguns requisitos, os quais estão elencados no 2º do artigo em análise, os quais são:

2º Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. (Brasil, 2011a) No que se refere aos princípios adotados, a alínea a do inciso II adotou o princípio da justiça penal universal ou cosmopolita. A alínea b adotou o princípio da personalidade ou nacionalidade ativa. Por sua vez, a alínea c adotou o princípio da representação ou da bandeira.

70 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Conforme salientado, o inciso I refere-se aos casos de extraterritorialidade incondicionada, não havendo a necessidade de preenchimento de qualquer condição para a aplicação da lei brasileira, ainda que o agente tenha sido absolvido ou condenado no estrangeiro. O 2º traz as condições para aplicação da lei brasileira a crimes cometidos no exterior: a) entrar o agente no território nacional, o que poderá se dar de modo espontâneo ou por meio de pedido de extradição; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado: deve estar preenchido o critério da dupla tipificação; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição: de acordo com os incisos IV e VII do art. 77 da Lei nº 6.815, de 1980, do Estatuto do Estrangeiro, não poderá haver extradição se a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a um ano, como também fato constituído como crime político; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena: nesse caso, não poderá haver a extraterritorialidade; e e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável: se o agente tiver sido perdoado no estrangeiro ou se estiver extinta a punibilidade (de acordo com a lei mais favorável), não se admitirá a extraterritorialidade. Por sua vez, o mesmo art. 7º, em seu 3º, traz outro caso de extraterritorialidade condicionada, nos seguintes termos: Art. 7º Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: [...] 3º A lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no parágrafo anterior: a) não foi pedida ou foi negada a extradição;

b) houve requisição do Ministro da Justiça. (Brasil, 2011a) O 3º traz outra hipótese de extraterritorialidade condicionada, o crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil. Nesse caso, além de estarem presentes as condições do 2º (em um número de 5), devem estar presentes outras duas condições (totalizando, para essa hipótese, 7 condições): que não tenha sido pedida ou que tenha sido negada (pelo Brasil) a extradição do autor do crime ao país onde este tenha sido cometido e desde que tenha havido requisição do Ministro da Justiça. Assim, o 3º do art. 7º adotou o princípio da personalidade ou nacionalidade passiva, apesar de Guilherme de Souza Nucci (2007) defender posicionamento diverso, entendendo ter o referido parágrafo agasalhado o princípio real da proteção ou da defesa.

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 71 2 A EXTRATERRITORIALIDADE COMO AFRONTA AO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê, no 2º de seu art. 5º, que "os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (Brasil, 2011b). Nesse sentido, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, em vigor no Brasil, está inserida como emenda constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, por intermédio da abertura concedida pelo citado dispositivo constitucional. A referida Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, ocorrida em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, traz, em seu texto, especificamente em seu art. 8º, a garantia constitucional de que ninguém poderá ser processado duas vezes pelo mesmo fato (o princípio do ne bis in idem), o qual é um dos postulados do Direito Penal democrático. Nesse sentido, o item 4 do art. 8 tem como conteúdo: "Art. 8. Garantias judiciais [...] 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos" (CIDH, 2011). Ou seja, se não poderá ser submetido a novo processo, consequentemente não poderá ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Assim, Guilherme de Souza Nucci salienta que a proibição de dupla punição em virtude do mesmo fato criminoso decorre de dois princípios constitucionais: o princípio da legalidade em harmonia com o princípio da vedação do duplo processo pelo mesmo acontecimento (Nucci, 2010). Em relação a tal vedação, ainda no ano de 1880, Pasquale Fiore salientava que um princípio incontestável de direito público é que não se pode perseguir novamente, pelo mesmo delito, a qualquer pessoa que tenha sido legal e definitivamente julgada. A coisa julgada extingue a ação pública, invocada como exceção pelo acusado, tendo

mais força que a própria verdade. Que o acusado tenha sido condenado ou absolvido por erro, a coisa julgada é uma égide que o protege. Uma consequência destes princípios é o adágio dos criminalistas antigos e modernos, bis in idem non judicatur, que foi consagrado juridicamente em todas as legislações penais. 4 (Fiore, 1880, p. 98 - tradução nossa) Buscando elementos para a análise da vedação do bis in idem na legislação estrangeira, insta salientar que, de acordo com o inciso III do art. 103 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), "ninguém pode ser condenado mais de uma vez por causa da prática do mesmo ato com base em leis penais gerais". Nesse sentido, o Tribunal Constitucional alemão, julgando conjuntamente oito reclamações constitucionais, reconheceu violar o princípio do ne bis in idem o fato de os reclamantes, testemunhas de Jeová, tendo recusado a prestação de serviço militar, terem sido condenados pelos Tribunais penais competentes por crime de deserção (Dienstflucht), segundo a Lei do Serviço Substitutivo Civil, tendo os mesmos cumprido inteiramente as penas.

72 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Todavia, após o trânsito em julgado de seus processos penais, em parte, durante ou após o cumprimento das penas, os reclamantes foram, pelo Ministro do Trabalho, como órgão competente para a convocação para o serviço substitutivo civil, novamente intimados do chamamento [concreto] para o início do serviço ou de um novo aviso de convocação, que eram [administrativamente] sujeitos à impugnação. Uma vez que os reclamantes novamente não iniciaram o serviço substitutivo civil, eles foram novamente acusados de deserção pelo Ministro do Trabalho, e, consequentemente, condenados. O Tribunal Constitucional alemão, analisando as reclamações, salientou: [...] De acordo com dispositivo constitucional, ninguém poderá, com base nas leis penais gerais, ser punido mais do que uma vez pelo mesmo ato. 1. a) A norma jurídica ne bis in idem valeu desde sempre como preceito fundamental do direito processual penal. Ela foi claramente reconhecida pela jurisprudência como direito vigente para as decisões judiciais (Urteile) prolatadas com base em audiência (debate oral). Ela adquiriu por intermédio do art. 103, III, da GG status constitucional. (Martins, 2005, p. 943) Ademais, ponderou o Tribunal que o princípio ne bis in idem exclui a persecução penal repetida do mesmo ato que fora objeto do primeiro julgamento. Por outro lado, quando uma outra ação está em questão, o princípio não se torna aplicável pelo fato de que este ato e o primeiro tenham a mesma natureza. Nesse sentido, decisivo é o processo histórico ao qual a acusação [denúncia] e a decisão judicial de [seu] recebimento (Eröffnungsbeschluss) se referem, e no qual o acusado teria cometido ou participado de uma conduta tipificada. O Direito norte-americano também repudia o bis in idem, conforme se depreende da leitura da Quinta Emenda de sua Constituição, a carta de governo mais antiga do mundo, a qual traz, de modo conciso, que ninguém deverá "pelo mesmo crime [...] ser posto mais de uma vez em perigo de vida ou integridade" (Weinberger,

1965, p. 81). Em relação ao teor dessa emenda, encontra-se, na jurisprudência norte-americana, o Case Barkus vs. Estado de Illinois, de 1959, o qual pode ser resumido nos seguintes termos: O requerente foi julgado no Tribunal Federal Distrital da Região Norte do Estado de Illinois, a 18 de dezembro de 1953, por assalto a uma caixa econômica garantida pelo Governo federal [...] O caso foi encaminhado a um júri federal e resultou em absolvição. A 8 de janeiro de 1954, um "grande júri" estadual de Illinois pronunciou Barkus. Os fatos articulados nessa pronúncia eram substancialmente idênticos aos da precedente acusação federal. A pronúncia estadual sustentava que esses fatos constituíam violação da Consolidação das Leis de Illinois [...] Barkus foi então julgado e condenado no Tribunal Criminal da Comarca de Cook e sentenciado à prisão perpétua. (Weinberger, 1965, p. 83)

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 73 Assim, no final do procedimento, o Juiz Frankfurter, Relator do acórdão, salientou que "hoje, pela primeira vez em sua história, esta Corte confirma a condenação, por um Estado, de um réu absolvido do mesmo crime pelos Tribunais federais (Weinberger, 1965, p. 85). Continuando suas alegações, Frankfurter afirma que um julgamento federal em seguida a uma absolvição ou condenação está proibido pela cláusula do Duplo-Risco da Quinta Emenda. Ainda nesse sentido, o Juiz Frankfurter fundamenta sua opinião salientando que o medo e a aversão ao poder governamental de julgar duas vezes a mesma conduta é um dos princípios mais antigos da civilização ocidental. Suas raízes aprofundam-se nos tempos dos Gregos e dos Romanos. Mesmo na Idade Média, quando tantos outros princípios de justiça ficaram abandonados, a ideia de que um só julgamento e uma só punição bastavam permaneceu viva na lei canônica e nos ensinamentos dos primeiros filósofos cristãos. Por volta do século XIII, presume-se pela primeira vez que ela estava firmemente estabelecida na Inglaterra, onde veio a ser considerada um "princípio fundamental de direito costumeiro". (Weinberger, 1965, p. 85-86) Por sua vez, o Código Penal português, em seu art. 6º, item 1, (Restrições à aplicação da lei portuguesa), traz: "1. A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do fato ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação" (Portugal, 2011). Dessa leitura, depreende-se que o referido dispositivo do Código Penal português evita que alguém cumpra duas vezes uma pena, ao permitir que se aplique a legislação penal portuguesa caso o agente não tenha sido julgado no lugar da prática do crime, ou, caso tenha sido julgado, não tenha cumprido totalmente a pena. Uma outra vedação expressão à dupla incriminação encontra-se no ordenamento jurídico paraguaio, especificamente no inciso 4 do art. 17 da Constituição, trazendo também o Código Penal

paraguaio a vedação expressa em seus arts. 6º e 8º, os quais excluem a punição pela lei penal paraguaia, quando um Tribunal estrangeiro tenha absolvido ou o tenha condenado (Montanía; Rolón, 2005). Um último exemplo, no que se refere à não aceitação da dupla punição, positivado no Estatuto do Tribunal para a ex-iugoslávia, é trazido por Rodrigo Lledó Vasquéz, o qual salienta que: Atendido o fato de que um grande número de acusados podem encontrar-se em países cujas autoridades estão dispostas a julgá-los, em conformidade com o princípio aut dedere autjudicare, o Estatuto do Tribunal para a ex-iugoslávia consagrou o princípio do ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa que tenha sido julgada pelo Tribunal não será julgada posteriormente por um Tribunal nacional. Do mesmo modo, a pessoa que tenha sido julgada por um Tribunal nacional não poderá ser julgada novamente pelo Tribunal internacional. 5 (Lledó Vásquez, 2000, p. 209-210 - tradução nossa)

74 RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA A jurisprudência brasileira também vem reconhecendo a vedação da dupla punição em diversos acórdãos e sentenças, assim, apenas a título de ilustração, o Supremo Tribunal Federal, na Extradição nº 1038-IT, reconheceu, analisando um pedido extradicional motivado por duas condenações do Tribunal de Apelação de Brescia/Itália, condenações essas motivadas por fatos distintos, descaracterizando o bis in idem, que eventual ocorrência de crime continuado entre as duas condenações é matéria estranha à jurisdição extradicional passiva, caracterizando juízo de mérito que deve ser enfrentado pela justiça italiana. (Ext. 1.038, Plenário, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Julgamento em 17.05.2007, DJ de 15.06.2007) (STF, 2006, p. 19) Assim, percebe-se que o ordenamento jurídico penal do Estado Constitucional de Direito moderno repudia a possibilidade da dupla incriminação em respeito ao princípio da legalidade, do qual decorre o princípio do ne bis in idem, possibilitando, assim, a efetivação de um Direito Penal garantista que tenha o ser humano como sujeito de direitos. CONCLUSÃO Do exposto, conclui-se que o crime é um fenômeno que interessa não só à sociedade da base geográfica na qual o crime foi cometido, como a toda a sociedade, gerando reflexos na harmonia social, política e institucional daquele local, como também de locais próximos e até mesmo distantes, o que faz com que as legislações penais insiram em seu texto casos de extraterritorialidade, seja incondicionada ou condicionada. De acordo com essa realidade, insta salientar que muitos crimes possuem reflexos em toda a sociedade mundial, desenvolvendo-se, há muito, uma moderna teoria do Direito Penal internacional. Nesse sentido, em relação a uma busca internacional ao combate à criminalidade, os tratados e as convenções internacionais

referentes ao combate a crimes contra a humanidade provam esta realidade. Todavia, a extraterritorialidade da lei penal, como positivada no art. 7º do Código Penal brasileiro, fere o princípio do ne bis in idem, um dos princípios mais importantes do Direito Penal democrático. Não se questiona, como salientado, a possibilidade de o Estado brasileiro acionar seu jus puniendi em face de autores de infrações penais descritas, atualmente, como hipóteses de extraterritorialidade incondicionada, mas sim o fato de se permitir que o Estado puna o autor de tais atos, mesmo que este já tenha respondido a ação penal pelo mesmo fato no Estado estrangeiro.

RDP Nº 70 - Out-Nov/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 75 Assim, a solução seria considerar como condição para punição, nessas hipóteses, o que também está previsto no art. 7º, inciso II, alínea d, ou seja, não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena, ou seja, seriam hipóteses de extraterritorialidade condicionada, todavia com menos requisitos, facilitando, destarte, a aplicação da lei penal brasileira, e não ferindo o princípio do ne bis in idem. Assim, inexistiria a extraterritorialidade incondicionada no ordenamento jurídico brasileiro, sendo sempre condição para aplicação da lei penal brasileira a fatos cometidos no estrangeiro a condição de não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter lá cumprido a pena, o que afastaria também a necessidade do art. 8º do Código Penal como norma compensadora, o que garantirá o respeito ao Direito Penal democrático e garantista. REFERÊNCIAS AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; WOISCHNIK, Jan. Temas actuales del derecho penal internacional: contribuciones de América Latina, Alemania y España. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005. BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Direito penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BIX, Brian H. Diccionario de teoría jurídica. Ciudad de México: Unam, 2009. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. BRASIL. Código penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 11 mar. 2011a.

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