A RELAÇÃO DO CUBISMO COM AS GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDIANAS



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Transcrição:

A RELAÇÃO DO CUBISMO COM AS GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDIANAS José Marcos Romão da Silva Maria Antonia Benutti UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação, Departamento de Artes e Representação Gráfica romaounesp@terra.com.br, mariabenutti@hotmail.com RESUMO O cubismo, movimento artístico iniciado em 1907 por Braque e Picasso, rompeu com quatro séculos de primazia do uso da perspectiva na representação pictórica, introduzindo na mesma conceitos emprestados às geometrias não-euclidianas, tais como noções de hiperpoliedros e multidimensionalidade. Tais recursos facultaram aos artistas cubistas a formulação de um conceito espacial até então inexplorado, definido genericamente como quarta dimensão, cujas propriedades espaço-temporais guardam estreita afinidade com o princípio da indissociabilidade entre espaço e tempo contido na Teoria da Relatividade Especial trazida à luz por Einstein em 1905. Nosso objetivo, portanto, é demonstrar como, a partir de conceitos próprios às geometrias não-euclidianas, Braque e Picasso formularam uma representação espaço-temporal análoga àquela formulada por Einstein. Palavras-chave: geometrias não-euclidianas, Cubismo, quarta dimensão. ABSTRACT The Cubism, artistic trends initiate at 1907 by Braque and Picasso, was broken with four century from primacy of the pictorial representation of objects in perspective, intruding on it concepts originating in geometries non-euclidians, as like the notions of hiperpolyhedrons and multdimensions. These expedients make possible at the cubists artists the institution of one spatial concept up to that time unexplored, generical defined as fourth-dimension, whose space-times proprierties have a close affinity with the principle from the indissolubility between space and time included in the Theory of Relativity Especial, published by Einstein in 1905. Our objective, consequently, is to show how to depart from concepts propers on the non-euclidians geometries, Braque and Picasso developed a representation space-time conformit to that one developed by Einstein. Palavras-chave: Non-Euclidians geometries, Cubism, fourth dimension.

1 Introdução A transição do século XIX para o século XX instaurou no seio da sociedade européia transformações inimagináveis até então, levando-a, ao cabo de poucas décadas, de um estágio predominantemente rural para um estágio marcadamente urbano, decorrente da explosão demográfica das grandes metrópoles (Paris, Londres, Berlin), ocasionada pela forte expansão industrial. Isso provocou profundas mudanças nos hábitos humanos em geral, pois as novas condições dos grandes centros urbanos instauraram demandas desconhecidas, que repercutiam sobremaneira na imaginação dos artistas. Afinal, como poderia a arte corresponder aos novos estímulos da nova realidade urbana industrial? O primeiro movimento artístico a se caracterizar pela incorporação do imaginário urbano industrial em suas obras foi o Cubismo, não da forma pragmática como propuseram os futuristas em 1909 através do seu primeiro manifesto, mas sim pela introdução gradativa de elementos próprios às condições de vida dos grandes centros urbanos, notadamente pela abordagem em suas obras de conceitos análogos aos que então eram discutidos no âmbito da ciência e que abalaram profundamente a noção que se tinha da realidade, já que esta agora se via confrontada com novos conceitos que variavam do estudo do átomo às possibilidades de um veículo mais pesado que o ar levantar vôo. Enfim como poderiam os artistas criar obras que de fato refletissem tais questões? Em algumas obras cubistas iremos encontrar respostas às mesmas. Nos primeiros anos do século XX houve uma formidável confluência de interesses compartilhados por diferentes esferas do saber, de tal forma que a arte irá se colocar, com o Cubismo, par a par com as investigações mais recentes que se davam então no campo das ciências, especialmente a física e a geometria. O surgimento, em 1903 do Ensaio sobre o hiperespaço, de Boucher, e do Tratado elementar de geometria em quatro dimensões de Jouffret demonstram o interesse da época na pesquisa de novas geometrias e que muitas obras consagradas a elas eram facilmente acessíveis ao público francês desde inícios de 1900 (FERRY, 1994, p.296). 2 As geometrias não-euclidianas O sistema geométrico apresentado por Euclides foi considerado durante muito tempo como a geometria. Os conceitos propostos nos Elementos por ele foram os fundamentos do ensino da geometria até praticamente o século XX, quando após quase 2000 anos de investigações sobre o quinto postulado começam a surgir no séc XIX novas geometrias, chamadas geometrias não-euclidianas. As idéias principais dessas novas teorias foram concebidas independentemente por três grandes matemáticos: János Bolyai (1802/1860), Nikolai Lobatchevski (1792/1856) e Gauss (1777/1855). Em 1826, Lobatchevski, fez uma palestra sobre as paralelas e, em 1829, publicou um

extenso artigo, onde apresentava uma alternativa a Euclides. A crítica chamou-lhe Geometria Imaginária. Em 1832, János Bolyai publicou o seu trabalho sobre a geometria Não-Euclidiana. Apesar de haver indícios de que, também Gauss se dedicou ao estudo da geometria não-euclidiana, este nunca publicou nenhum dos seus trabalhos com receio da opinião pública e se recusou a reconhecer o trabalho de Bolyai. A recusa do reconhecimento do trabalho de Bolyai, por parte de Gauss, levou a que Bolyai vivesse na obscuridade matemática. O mérito do trabalho de Bolyai e de Lobatchevski só foi reconhecido após suas mortes. A geometria desenvolvida por Bolyai e Lobatchevski classificada como não-euclidiana permaneceu durante várias décadas na penumbra da matemática. A maioria dos matemáticos daquela época ignoravam-na e a Filosofia Kantiana recusava-se a levá-la a sério. O primeiro grande matemático a reconhecer a sua importância foi George Reimann (1826/1866), quando desenvolveu a teoria geral das variedades, em 1854, legitimando, de uma maneira muito clara, não só os vários tipos de geometrias não-euclidianas, mas também as chamadas Geometrias Reimannianas ou Geometria Elíptica. A descoberta das geometrias não-euclidianas libertou os matemáticos dos esquemas rígidos anteriores promovendo o aparecimento de inúmeras outras geometrias. A incorporação da geometria pela física faz surgir o conceito da quarta dimensão, a qual deveria ser identificada com o tempo (ou dimensão temporal). Todavia, entre 1870 e 1920 na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, a expressão caiu no gosto popular com o significado de "quarta dimensão espacial" e daí disseminou-se por todos os campos das artes e ciências. 3 A quarta dimensão Até o aparecimento da teoria da relatividade parecia fora de cogitação que o Universo em que vivemos tivesse mais de três dimensões. É plausível que essa concepção de tridimensionalidade tenha origem no simples fato de que os objetos físicos que encontramos no nosso cotidiano possuem, de acordo com nossa experiência sensorial, comprimento, largura e altura. Além disso, em nosso primeiro contato com a geometria plana ou espacial, na escola, temos a tendência natural de atribuir aos teoremas o status de fatos geométricos, como se eles tivessem uma existência real, transcendendo à natureza puramente abstrata e axiomática da Matemática. (ROMERO FILHO, 2007). Há, ainda hoje, uma grande dificuldade para compreender e explicar a quarta dimensão espacial. Isso porque o conceito de uma quarta dimensão é algo freqüentemente descrito considerando-se suas implicações físicas; isto é, sabemos que em três dimensões temos as dimensões de comprimento (ou profundidade), largura e altura. Por analogia, algumas propriedades dos espaços de dimensões superiores podem ser deduzidas de propriedades válidas para dimensões menores. Assim, o espaço n-dimensional pode ser descrito algebricamente através da Geometria Analítica. A quarta dimensão (espacial) é apresentada como ortogonal às outras três dimensões

espaciais. E pela analogia com as definições geométricas para ponto, reta, plano e volume, podemos chegar a definição da quarta dimensão. Mas é importante que se entenda que quando falamos destes conceitos, estamos nos referindo a conceitos matemáticos. Portanto, não necessariamente reais em termos físicos, mas passíveis de serem representados como projeções no plano bidimensional. Em seu Traité élémentaire de géométrie a quatre dimensions, JOUFFRET (1903) apresenta as definições para a quarta dimensão geométrica utilizando um truque denominado "analogia dimensional" para fazer o salto de três para quatro dimensões. Isto é, estuda como (n 1) dimensões se relacionam com "n" dimensões e então deduz como n dimensões se relacionariam com (n + 1) dimensões. Desta forma Jouffret apresenta a partir da noção de pontos que justapostos geram retas, de retas que justapostas geram planos, de planos que justapostos geram volumes e então introduz a noção de volumes que justapostos geram hipervolumes ou hiperespaços, como apresentado na figura 1. Figura 1: Geração do hipercubo. 4 O cubismo Muitos historiadores encaram com reservas, senão mesmo com recusa, a hipótese dos cubistas terem baseado suas obras em princípios relacionados à quarta dimensão. Entretanto, segundo FRANCASTEL, [...] a primeira ação do Cubismo, por volta de 1907, foi uma especulação sobre as dimensões do espaço. Influenciados pelos vocábulos que circulavam à sua volta, os cubistas acreditaram estar fazendo obra científica positiva ao introduzir em suas telas uma quarta dimensão ou ao suprimirem a terceira. (FRANCASTEL, 1970, p.247). Na própria citação acima é possível perceber certa ressalva do autor ao restringir tal influência a um mero interesse dos cubistas pelos vocábulos que circulavam à sua volta. Existe, porém, uma importante documentação a respeito, principalmente através dos escritos de A. Gleizes e J. Metzinger, pintores cubistas que foram os principais teóricos do movimento, que comprovam tal fato. É certo, inclusive que os cubistas não se valiam de conhecimentos superficiais para realizarem suas obras. Pelo contrário, as especulações geométricas inicialmente intuídas por Picasso e Braque despertaram em ambos um vivo interesse pelas geometrias não-euclidianas, que eram avidamente absorvidas pelo grupo de artistas cubistas em reuniões com um especialista no assunto. Segundo relato de METZINGER, Maurice Princet juntava-se a nós [...], era como artista que ele concebia as matemáticas, era

como esteta que evocava os contínuos de n dimensões. Adorava despertar o interesse dos pintores para as novas idéias sobre o espaço abertas por Schiegel e alguns outros [...]. Quanto a Picasso, a rapidez de sua compreensão maravilhava o especialista. (1972, apud FERRY, 1994, p.297). O simultaneísmo, a par de outras questões, será o elemento deflagrador das conseqüências mais notáveis do Cubismo, presente já naquela que é considerada sua obra fundadora, Les demoiselles d Avignon (figura 2), pintada por Picasso nos meses de junho e julho de 1907 em Paris. Figura 2: Les demoiselles d Avignon 1907 Pablo Picasso Figura 3: Conforme se pode observar na figura situada no canto inferior direito do quadro de Picasso, ela se encontra sentada de costas para o observador, porém, foi composta de tal modo que se condensam nela múltiplos pontos de vista, pois a mesma tem o lado esquerdo do seu corpo mostrado como se fosse visto em 3/4, com a perna dobrada, o cotovelo apoiado no joelho e uma parte do seio vista sob o braço. Entretanto, a cabeça está completamente voltada para o espectador, em um ângulo impossível de ser concebido em um corpo visto de costas. Porém, ainda mais surpreendente é perceber que a parte direita do corpo acha-se na posição de costas em ângulo diametralmente oposto, portanto, ao da cabeça, de modo que a mulher é representada a partir de três pontos de vista diferentes simultaneamente. Comparando-se as particularidades dessa figura com Nu sentado (figura 3), pintado em 1909, percebe-se quão decisiva foi a influência das geometrias não-euclidianas sobre a obra de Picasso.

Figura 4: Nu sentado, 1909 Pablo Picasso. No primeiro caso, temos uma figura composta por pontos de vista tomados de diferentes ângulos, ou seja, é como se o artista pudesse ter andado em torno do modelo e a partir das impressões colhidas por sua memória tivesse condensado no retrato da mesma, diferentes momentos da percepção. Entretanto, em Nu sentado, percebe-se uma mudança fundamental e que reflete a introdução do conceito de extensão, conforme definido por JOUFFRET: Chamaremos extensão ao conjunto formado por espaços em número infinito e que os contém, assim como cada um deles contém uma infinidade de planos, contendo cada plano uma infinidade de retas, contendo cada uma delas uma infinidade de pontos. (1903, apud FERRY, 1994, p.291). Nu sentado nos revela a aspiração de Picasso de representar através dos materiais tradicionais da pintura, inclusive o suporte bidimensional, a formulação teórica de Jouffret sobre o hiper-espaço. Para tanto, concebe uma representação pictórica que é constituída exatamente por um conjunto de espaços infinitos que os contém. Ou seja, Picasso recorre nessa obra à representação de um espaço multidimensional constituído não mais pela incidência de múltiplos pontos de vista, mas sim pela coexistência de várias dimensões espaciais interagindo entre si, as quais se revelam em projeções geométricas indistintamente, tanto na figura feminina como no seu entorno, num jogo de múltiplos volumes. A indistinção entre o tratamento das formas que compõem a figura e aquelas que compõem o seu entorno também se dá quanto ao uso das cores, de modo que fica evidente que já não se trata mais do espaço cúbico renascentista que, tal uma caixa se dispunha como o receptáculo de personagens distribuídas segundo proporções determinadas. Conforme enfatiza APOLLINAIRE,

Hoje os cientistas não se atêm as três dimensões da geometria Euclidiana. Os pintores foram levados muito naturalmente, por intuição, a se preocuparem com novas medidas da extensão que, na linguagem dos ateliês modernos designávamos em conjunto e sumariamente com o termo quarta dimensão. (APOLLINAIRE, 1993, p.61). Essa passagem, extraída do livro Les peintres cubistes, publicado pela primeira vez em 1913, é particularmente significativa, pois revela que o conceito de quarta dimensão era utilizado naquela época para se referir genericamente às formulações que de alguma forma se opunham aos preceitos euclidianos e despertaram especial interesse entre os cubistas. O advento das geometrias não-euclidianas estabelece o fim do primado da concepção clássica de espaço, já que induzem à constatação da não existência de propriedades fixas que lhe possam ser atribuídas. Conforme observa Lee Smolin, O espaço não é um palco que pode estar cheio ou vazio, no qual as coisas entram e saem. O espaço não é algo separado das coisas que existem, é apenas um aspecto das relações que existem entre elas. (SMOLIN, 2002, p.28). Ora, é exatamente a respeito de um tal grau de interdependência relacional que a obra de Georges Braque, intitulada Violino e cântaro (figura 4), é capaz de suscitar. Ao invés de objetos dispostos perante um fundo fixo o que se observa é um jogo inextricável entre as dimensões espaciais e temporais, na medida em que o espaço nessa composição só tem existência enquanto concretização da série de relações mutáveis que animam os diversos planos geométricos que o constitui. O aspecto transitório dos poucos objetos reconhecíveis nessa pintura remete à afirmação de Lee Smolin que: A idéia de estado na física newtoniana compartilha com a pintura e a escultura clássicas a ilusão do momento congelado (...). Pode ser uma ilusão útil para alguns propósitos, mas se quisermos pensar fundamentalmente não devemos perder de vista o fato essencial de que é é uma ilusão. (SMOLIN, 2002, p.62). De fato, foram as possibilidades vislumbradas pelos cubistas de superar o sistema que se impusera à arte desde o quattrocento, e com isso libertar a representação das amarras impostas pela perspectiva, que motivou a adesão destes artistas a novos sistemas de representação. Cônscios de que as transformações impostas à vida urbana pela vertiginosa industrialização do início do século XX exigiam uma arte que refletisse a essência dessas mudanças, encontraram nas geometrias não-euclidianas o paradigma capaz de proporcionar à arte uma equivalência a altura dos formidáveis avanços que se davam no campo das ciências.

Figura 5: Violino e cântaro 1909-10 Georges Braque Assim, da mesma forma que os pintores renascentistas italianos adotaram a perspectiva como o meio mais adequado à representação do mundo como era percebido naquela época, não é em absoluto leviano falar de uma quarta dimensão quando se pensa no modelo adotado pelos cubistas para representar um mundo agora confrontado com a Teoria da Relatividade. 5 Considerações Finais Se até a Teoria da Relatividade de Einstein as três dimensões geométricas pareciam suficientes, em que pese o interesse despertado anteriormente pelas geometrias não- Euclidianas, é a partir de sua publicação em 1905 que se generalizam as especulações sobre os conceitos de hiper-volumes e hiper-espaços. Esses novos conceitos tiveram profunda repercussão nas obras cubistas, particularmente naquelas realizadas por Braque e Picasso entre 1910 e 1912, relativas, portanto, ao período denominado Cubismo Analítico Hermético, de modo que em tais obras há uma virtual superação da dicotomia entre figura e fundo, pela submissão de ambos a uma estrutura constituída como uma sucessão infindável de planos que se interpenetram. Os entes representados desdobram-se em múltiplas facetas em um espaço que dissolve as aparências no turbilhão da fragmentação infinita das dimensões, havendo, portanto uma estreita analogia entre tal concepção plástica tanto com o princípio dos hiper-espaços de Jouffret (1903), segundo o qual, o espaço pode ser constituído por um numero infinito de dimensões, bem como com a constatação de Einstein (1905) que o espaço não é algo distinto das coisas que o povoam, mas sim um dos aspectos das relações que se estabelecem entre as mesmas.

6 Referências [1] APOLLINAIRE, G. Les peintres cubistes. Paris: Hermann, 1993. [2] FERRY, L. Homo Aestheticus. São Paulo: Editora Ensaio, 1994. [3] FRANCASTEL, P. Études sociologiques de lárt. Paris: Denoel, 1970. [4] JOUFFRET, E. Traité élémentaire de géométrie a quatre dimensions. Paris: Imprimerie Gauthier-Villars, 1903. [5] ROMERO FILHO, C.A. As dimensões escondidas do Universo. Disponível em: <http://www.fisica.ufpb.br/port/artigocrf.htm>. Acesso em: 31 set. 2007 [6] SMOLIN, L. Três caminhos para a gravidade quântica. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.