AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO BRASIL



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1 AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO BRASIL Caroline Silveira SÁ 1 Orientador: Sérgio Tibiriçá AMARAL 2 RESUMO: O trabalho tem como finalidade analisar aspectos históricos para melhor definirmos o que é um quilombo, bem como analisar a legislação vigente sobre o tema. A finalidade é abordar de forma crítica os direitos fundamentais que os quilombolas possuem, demonstrando na prática como isso vem ocorrendo no Brasil. Palavras-chave: Comunidades Quilombolas. Tutela Jurídica. Direito de Propriedade. Aspectos Históricos. INTRODUÇÃO Este trabalho tem como intuito comentar sobre fatos históricos dos quilombolas e os direitos que eles possuem, visando o direito à propriedade, a exemplo do que ocorre com as comunidades indígenas. O legislador originário criou uma política diferenciada, uma ação afirmativa, visando assegurar aos descendentes de escravos o acesso total à terra que habitam desde que fugiram da escravidão. DESENVOLVIMENTO Quilombo era uma forma de se rebelar contra o sistema da escravidão no Brasil até a chamada Lei Áurea. Trata-se de um local distante dos povoamentos, onde os negros africanos buscavam refúgio e uma vida isolada do poder, a fim de viver em liberdade. Por isso, ainda hoje, há um certo espanto quando se fala em demarcação das chamadas terras quilombolas. No entanto, mais de 1 Discente no curso de Direito das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo e bolsista do grupo de Iniciação Científica O Estado de Direito: Aspectos políticos, jurídicos e filosóficos. 2 Mestre em Sistema Constitucional de Garantias pela ITE Bauru; coordenador e professor titular de TGE das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP.

2 cem anos do fim do sistema escravocrata, esses grupamentos ainda enfrentam problemas com a documentação e comprovação de que são mesmo comunidades que se enquadram nos requisitos legais para serem alcançados pelas Ações Afirmativas. Foi com a Constituição Federal de 1988 que a questão quilombola entrou na agenda das políticas públicas, graças a uma mobilização do movimento negro, que conseguiu a inclusão do Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias (ADCT) diz que: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos. Mas para efetivar esse direito descrito no dispositivo acima, visando os direitos dos quilombolas, precisa-se saber, primeiramente, o que significa o termo remanescente de quilombo descrito no Artigo 68 do ADCT. Ficando comprovado se tratar de uma comunidade prevista na lei, o Estado cuidará apenas de efetivar a documentação. Na tentativa de orientar e auxiliar a aplicação do Artigo 68 do ADCT, em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), divulgou um documento elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais em que define o termo remanescente de quilombo : Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar. Podemos dizer que, comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade. Apresentam características diferenciadas e uma maneira de organização diferenciada. Segundo o site http://www.cpisp.org.br/comunidades/index.html (Comissão Pró - Índio de São Paulo ) podemos dizer que :

3 A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos de uma ancestralidade comum, formas de organização política e social a elementos lingüísticos e religiosos. Os estudos históricos que reviram o período escravocrata brasileiro mostram que as comunidades de quilombo se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimentos de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior de grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após sua abolição. O que caracteriza o quilombo, portanto, não é o isolamento e a fuga e sim a resistência e a autonomia, é o movimento de transição da condição de escravo para a de camponês livre. Portanto, a classificação de comunidade como quilombola, não se baseia em provas de um passado de rebelião e isolamento, mas depende antes de tudo como eles mesmos se definem no meio em que vivem. Atualmente, a legislação brasileira já adota este conceito de comunidade quilombola e reconhece que a determinação da condição quilombola advém da auto-identificação. Os quilombos tinham várias formas de organização, mas sempre tendo como objetivo a fuga do sistema escravista. Muitas vezes, internamente, reproduziam sua própria economia, mesmo sendo grande parte voltada para a agricultura, em face da tradição dos povos africanos, não havia uma certa uniformidade. Para alguns havia, ainda, sete diferentes tipos de quilombolas. Neste sentido CLÓVIS MOURA citando DÉCIO FREITAS (Quilombos Resistência ao escravismo, p. 32): a) os agrícolas, que prevaleceram por todas as partes do Brasil; b) os extrativistas, característicos do Amazonas, onde viviam de drogas do sertão; c) os mercantis, também na Amazônia, que adquiriam, diretamente de tribos indígenas, as drogas para mercadejá-las com os regatões; d) os mineradores, em minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso; e) os pastoris,

4 no Rio Grande do Sul, que criavam o gado nas campanhas ainda não apropriadas e ocupadas por estancieiros; f) os de serviços, que saíam dos quilombos para trabalhar nos centros urbanos; e, finalmente, g) os predatórios, que existiam um pouco por toda parte e viviam dos saques praticados contra os brancos. Nos seis últimos tipos, a agricultura não estava ausente, mas desempenhava um papel subsidiário. A organização dos quilombos era muito variada, ao invés de praticarem a monocultura, que caracterizava a agricultura escravista e que monopolizava a produção nas mãos dos senhores, centravam-se na policultura, que era ao mesmo tempo distributiva e comunitária. Este tipo de economia comunitária proporcionava aos quilombolas ali existentes um acesso ao bem-estar de toda a comunidade. Depois de estabilizados, os quilombolas organizavam um certo tipo de governo que determinava a harmonia do quilombo e que eram responsáveis por ela. Isto tudo deveria ser feito para que dentro do quilombo existisse algum tipo de organização política, onde todos que ali moravam deveriam respeitar as regras. Neste sentido CLÓVIS MOURA (Quilombos Resistência ao escravismo, p. 35): Como estavam sujeitos às invasões periódicas das forças de repressão que agiam constantemente contra eles, os quilombos tinham de organizar um tipo de poder capaz de defendê-los das investidas inimigas. No mais famoso deles a República de Palmares havia um governo altamente centralizado, uma monarquia eletiva, como define Édison Carneiro. Além disso, tinham de criar formas de organização familiar, religiosa e, especialmente, econômica. Ainda: O binômio economia-defesa era o eixo das preocupações mais importantes dos dirigentes dos quilombos. Isso porque, se, de um lado, tinham de manter em atividade permanente grande parte da mão-de-obra ativa da comunidade na agricultura e em outras atividades produtivas, de outro, tinham de manter um contingente de defesa militar permanente, a fim de preservar sua integridade territorial. No quilombo, do ponto de vista religioso, havia mesclas de alguns valores do catolicismo popular com as religiões africanas. Imagens de santos foram encontradas em Palmares. Já em regiões quilombolas de Minas Gerais, baseado em

5 pesquisas arqueológicas, não há vestígios de objetos de culto católico nos quilombos pesquisados. A língua dos quilombolas era basicamente o português, misturado com formas africanas de linguagem. Havia uma obediência incondicional àquele que era escolhido como chefe pela comunidade, e que não era trazida de tradições africanas, mas sim da necessidade que eles tinham de se defender de ameaças que eram enviadas contra eles. Não podemos deixar de salientar que, durante todo o transcurso de sua existência, eles foram não apenas uma força de desgaste, mas, pelo contrário, agiam em seu centro, isto é, atingindo em diversos níveis as forças produtivas do escravismo e, ao mesmo tempo, criando uma sociedade alternativa que, pelo seu exemplo, mostrava a possibilidade de uma organização formada de homens livres. Essa perspectiva que os quilombos apresentavam ao conjunto da sociedade da época era um perigo e criava as premissas para reflexão de grandes camadas da população oprimida. Por isso mesmo o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela sociedade escravista, independentemente de sua cor. Os crimes que eram punidos severamente, através de um tipo de Direito Consuetudinário (costume) eram o adultério, o homicídio e o roubo individual. Isto porque, ao que tudo indica, não havia roubo social, isto é, a desapropriação de bens da coletividade. Como toda propriedade era coletiva, o roubo individual era punido como se fosse uma lesão ao patrimônio de todos. A pena de morte era aplicada aos crimes de traição. Na parte da administração pública, podemos ver, na pirâmide de poder, o rei que exercia poderes ilimitados. Em seguida, vinha o conselho, com representação dos chefes dos diversos quilombos (cidades), os quais, por outro lado, eram autônomos nos seus respectivos redutos. A escolha do rei era eletiva, votada pelo conselho. Pesquisa feita em 2000 pela Revista Palmares 5 Quilombos no Brasil, conseguiu constatar que haviam 743 comunidades quilombolas espalhadas

6 por todo o território brasileiro, sendo que onde havia uma maior concentração era no estado da Bahia que possuía 245 comunidades. Esquema de comunidades espalhadas pelo Brasil: Acre : não há registro de existência; Alagoas : 11 comunidades; Amapá : 1 comunidade; Amazonas : 1 comunidade; Bahia : 245 comunidades; Ceará : 5 comunidades; Distrito Federal : não há registro de existência; Espírito Santo : 15 comunidades; Goiás : 7 comunidades; Maranhão : 172 comunidades; Mato Grosso : 2 comunidades; Mato Grosso do Sul : 6 comunidades; Minas Gerais : 66 comunidades; Pará : 57 comunidades; Paraíba : 13 comunidades; Paraná : 1 comunidade; Pernambuco : 15 comunidades; Piauí : 25 comunidades; Rio de Janeiro : 14 comunidades; Rio Grande do Norte : 15 comunidades; Rio Grande do Sul : 9 comunidades; Rondônia : 2 comunidades; Roraima : não há registro de existência; Santa Catarina : 4 comunidades; São Paulo : 33 comunidades; Sergipe : 23 comunidades; Tocantins : 1 comunidade. Esta mesma pesquisa conseguiu, ainda, identificar uma população total estimada em 2.000,00 (dois milhões) de habitantes, distribuídos em uma área total

7 aproximada de 30.581.787,58 hectares. Hoje, podemos dizer que, existem muito mais comunidades do que possamos imaginar. Para conhecermos um pouco mais da vida em certas comunidades do Brasil, falaremos um pouco de alguns estados e comunidades neles situados. Dados disponibilizados pelo site Comissão Pró Índico de São Paulo, demonstraram que hoje no Estado de São Paulo, existem mais de 35 comunidades, sendo a maioria delas (cerca de 30) localizadas na região do Vale do Ribeira, distribuídas por diversos municípios, tais como Eldorado, Iporanga e Barra do Turvo. Outras comunidades estão localizadas no Litoral Norte, na região de Sorocaba e no município de Itapeva. Ainda em referência ao site acima citado, no Estado de São Paulo, apenas cinco comunidades já tiveram suas terras tituladas, são as comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Pilões e Maria Rosa. Todas estão localizadas no Vale do Ribeira e receberam os títulos do governo do estado de São Paulo. Se tomarmos como exemplo a comunidade do Vale do Ribeira, podemos ter uma noção de como os quilombolas vivem hoje. Nesta comunidade eles praticam uma economia que se assenta na mão-de-obra familiar. Seu sistema produtivo se sustenta basicamente nas atividades agrícolas e extrativistas, podendo ver que mesmo com o passar dos anos, eles continuam com suas tradições e seu modo de viver. A agricultura é bem variada, sendo que muitas vezes os quilombos também realizam trabalho assalariado em plantações de grandes proprietários de terras locais ou em centros urbanos. Por enquanto, temos relatos de que apenas a comunidade de Ivaporunduva tem uma infra-estrutura bastante desenvolvida, sendo ela a única comunidade do estado de São Paulo que comercializa banana em grande escala. Os quilombos do Vale do Ribeira foram os primeiros no Estado de São Paulo a reivindicarem seus direitos territoriais, começaram a pleitear a titularidade de suas terras, que com essa mobilização dos quilombolas, teve como resultado, em março de 1996, a criação de um Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo, formado por representantes governamentais e não-governamentais,

8 que tinha por objetivo fazer proposições visando à aplicação dos direitos constitucionais dos quilombolas. As conclusões do Grupo de Trabalho levam à criação de um programa de cooperação técnica e de ação conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de quilombo e de um Grupo Gestor para implementá-lo. Em 2001 foi feita a primeira titulação de terra no Estado de São Paulo, e que aconteceu no Vale do Ribeira. No estado de Rio de Janeiro têm se noticias de pelo 15 comunidades, sendo, pelo menos metade, localizadas na região litorâneas do Estado nas cidades de Búzios, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro, Mangaratiba, Angra dos Reis e Paraty. As demais comunidades estão localizadas no interior do Estado, nos municípios de Quissamã, Vassouras, Valença, Quatis e Rio Claro. Até abril de 2006, apenas duas comunidades do estado do Rio de Janeiro tinham suas terras tituladas, as comunidades Campinho da Independência e Santana. Outras 20 comunidades têm processos em curso no INCRA e nas instâncias estaduais. A comunidade de Campinho da Independência foi a primeira, do Estado do Rio de Janeiro, a ter suas terras tituladas. Em 21 de março de 1999, os quilombolas de Campinho da Independência receberam da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria de Assuntos Fundiários do Estado do Rio de Janeiro o titulo definitivo de seu território com 287,9461 hectares. Levantamentos mais recentes indicam que no Estado da Bahia existem cerca de 300 a 500 comunidades quilombolas. Até outubro de 2006, quatro comunidades já tinham suas terras tituladas pelo governo federal ou estadual, são elas: Barra, Bananal e Riacho das Pedras; Parateca e Pau D`Arco; Rio das Rãs; Mangal e Barro Vermelho. A comunidade Rio das Rãs está situada no município de Bom Jesus da Lapa, entre o rio São Francisco e o rio das Rãs, teve seu território titulado pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2000 com 272 hectares. As cerca de 300 famílias de rio das Rãs distribuem-se por diversos pontos de seu território nas

9 localidades conhecidas como Brasileira, Capão do Cedro, Enxu ( ou Exu ), Riacho Seco, Mucambo, Pau Preto, Retiro, Corta Pé e Rio das Rãs, assim como demonstram os relatos divulgados pelo site Comissão Pró Índio de São Paulo (Disponível em <http://www.cpisp.org.br/comunidades/index.html>.). No Estado do Pará se sabe da existência de 240 comunidades quilombolas, mas acredita-se que muitas outras ainda estão por ser identificadas. Embora o emprego da mão-de-obra negra na Amazônia não tenha alcançado as mesmas cifras que em outras regiões do país, teve uma grande importância para a economia local. Nas várias regiões do atual Estado do Pará, os escravos negros foram utilizados como mão-de-obra nas atividades agrícolas e extrativistas, nos trabalhos domésticos e nas construções urbanas. A história da escravidão no Pará foi marcada pela resistência de negros e índios que buscaram a sua liberdade por meio da fuga, da construção dos quilombos e da participação na Cabanagem. Esta revolta era chamada de Cabanagem porque os envolvidos nela trabalhavam na exploração de produtos na floresta e moravam em cabanas à beira dos rios. A Cabanagem foi uma grande revolta que aconteceu em 1835, os participantes eram pessoas muito pobres, como negros, índios e mestiços, que lutaram contra os responsáveis pela exploração social e pelas injustiças que eram enviadas contra eles. O objetivo desta revolta era o de sair da situação de miséria em que viviam Desde 1998, o Pará conta com uma legislação que regulamenta o processo de titulação dessa categoria de terras. Inovadora, essa legislação garante o direito à auto-identificação das comunidades sem a necessidade do laudo antropológico algo que o governo federal só veio a reconhecer em 2003. As comunidades quilombolas estão distribuídas pelas mais diversas regiões do Pará. Muitas se localizam em regiões de difícil acesso como as do Baixo Amazonas. Em pelo menos 40 dos 143 municípios paraenses existem comunidades remanescentes de quilombos. Na região do Baixo Amazonas encontram-se cerca de 60 comunidades remanescentes de quilombos localizadas nos municípios de Oriximiná, Óbidos, Santarém, Alenquer e Monte Alegre.

10 Os quilombos dessa região foram pioneiros na luta para fazer valer os direitos assegurados na Constituição de 1988. Foi no Baixo Amazonas que ocorreu a primeira titulação de terra de quilombo no pais. No ano de 1995, a comunidade de Boa vista, localizada no município de Oriximiná, recebeu do INCRA o titulo de suas terras. Entre 1995 e 2005, outras 28 comunidades desta região tiveram suas terras tituladas, abarcando aproximadamente 1.161 famílias, somando 386.488,05 hectares, o que representa 43% da dimensão total de terras de quilombo tituladas no Brasil. Não encontrados quilombolas somente no Brasil, paises como Colômbia, Equador, Suriname, Nicarágua, Honduras e Belize também possuem comunidades de afros-descendentes que se identificam como grupos étnicos. Recentemente, vários paises latino - americanos reconheceram em suas Constituições o direito á terra de afro latinos. O artigo 68 da ADCT é o dispositivo que assegura aos quilombolas o direito a propriedade, ou seja, o acesso irrestrito àquela terra em que vivem. Antroplogicamente podem ser considerados quilombolas aqueles que se definam assim. Mas, necessário se faz analisar se tal definição poderá mesmo ser dada em razão dos seus costumes, tradições, condições socais, culturais e econômicas específicas, que distinguem esse grupo dos demais existentes na coletividade nacional. O que se entende é que além da declaração, saber se os requisitos estão presentes. O direito de propriedade dos quilombolas não é individual, mas coletivizado, onde suas terras tituladas serão de uso comum. Serão as glebas de uso de todos aqueles que vivam na comunidade. Por isso pode-se justificar que este direito requer uma proteção maior e especial, por ter em vista este caráter coletivo. Ainda, a Constituição Federal de 1988 dispõe que, toda e qualquer forma de expressão, seja coletiva ou individual, que faça referência à sua identidade, será considerada como patrimônio cultural brasileiro, sendo um direito que será garantido pelo Estado, podendo ter um pleno exercício dos direitos culturais. O Estado protegerá também as manifestações feitas pelas varias culturas brasileiras.

11 Tais afirmações estão dispostas nos artigos 215 e 216, da Constituição Federal de 1988. O referido artigo 68 da ADCT, anteriormente mencionado, é uma norma de eficácia plena, onde no momento da promulgação da Constituição de 1988, ela tem sua aplicabilidade imediata, não precisando, portanto, de uma norma que a regulamente. Como o artigo 68 do ADCT tem aplicabilidade imediata, qualquer comunidade quilombola que se sinta prejudicada, poderá fazer valer os seus direitos. Sendo a Constituição de caráter rígido quanto a sua mutabilidade, nenhuma norma infraconstitucional poderá limitar, restringir direitos que essas comunidades possuem, mesmo sendo essas restrições de caráter geográfico, cultural ou até mesmo de natureza temporal. Em 2003 foi criado o Decreto nº 4.887, que visa garantir aos quilombolas melhor qualidade de vida, onde além da posse de sua terra, eles também tem acesso a serviços como educação, saúde e saneamento. Este decreto era considerado como autônomo já que não tem uma lei específica que ele venha a regulamentar. Hoje, com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), podemos dizer que este Decreto é uma norma infralegal que regulamenta o artigo 14 desta Convenção. O Decreto nº 4.887/03 ainda dispõe sobre vários procedimentos que devem ser observados para a titulação de terras. Em seu artigo 3º diz que compete ao INCRA delimitar, identificar, reconhecer, demarcar, titular, etc., terras ocupadas por remanescentes dos quilombos, devendo, ainda, regulamentar procedimentos para as competências citadas acima (artigo 3º caput e 1º). O processo administrativo deverá ser iniciado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ou por requerimento de qualquer um interessado, sendo que, o interessado definido como quilombola deverá ser inscrito no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que por sua vez, expedirá certidão respectiva (artigo 3º, 3º e 4º). Depois que as comunidades conseguem essa titulação de sua terra, não é permitida a penhora, venda, dar a terra como garantia, isto porque é

12 obrigatório no título a cláusula em que consta a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a imprescritibilidade do imóvel. CONCLUSÕES FINAIS Não há dúvidas de que os quilombolas possuem direitos, mas não podemos deixar de ressaltar que, este processo para titulação deveria ser mais rápido, efetivando políticas sociais que são direitos expressamente garantidos pela Constituição Federal de 1988. Em agosto de 2006 foram levantados dados que constavam 310 processos de titulação em andamento, sendo que entre 1996 e 2006 apenas 58 terras foram tituladas, beneficiando 114 comunidades quilombolas. O Governo do Estado do Pará merece destaque pois outorgou 23 títulos. Não podemos dizer que esse grande número de processos seja uma vitória a se comemorar, pois devemos olhar pelo outro lado, pelo lado dos processos que tiveram andamento e não apenas contar os números de processos que foram abertos, porque não adianta ter números e mais números de processos sendo que no final os direitos dos quilombolas não são efetivados. A questão quilombola trata-se de uma Ação Afirmativa criada pelo Estado. São medidas especiais que buscam tratá-los desigualmente para que se alcance a igualdade perante os demais. E além da questão antropológica, podemos dizer que existe também as questões filosóficas e sociológicas de seus tutelados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998.

13 A Cabanagem. Disponível em: < http://www.geocities.com/baja/mesa/7068/imperio_cabanagem.htm>. Acesso em: 4 ago. 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988. BRASIL.Decreto nº 4.887/03, de 20/11/2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. BRASIL. Decreto nº 5.051/04, de 19/04/2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Comissão Pró-Índio de São Paulo. Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/comunidades/index.html>. Acesso em: 18 jul. 2007. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas S.A., 1999. MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. 3.ed. São Paulo: Ática, 1993. Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento - Fortalecimento da Rede das Comunidades Quilombolas. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/unv/projetos.php?id_unv=15>. Acesso em: 18 jul. 2007. QUILOMBOS no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2000. SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - Quilombolas. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/index.php?option=content&task=view&id=80&itemid= 209>. Acesso em: 18 jul. 2007.