A crítica como matriz da grande ficção machadiana



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Transcrição:

1 A crítica como matriz da grande ficção machadiana Haron Jacob Gamal (doutorando em literatura brasileira pela UFRJ) Resumo: A comunicação tentará mostrar como Machado de Assis empregou na ficção o que observou como crítico, sobretudo levando-se em consideração o que escreveu sobre o Primo Basílio, de Eça de Queirós. O livro de ficção escolhido como contraponto às concepções críticas de Machado será o romance Dom Casmurro. Tentaremos mostrar a construção da personagem Luísa, de Eça, e Capitu, de Machado. Palavras-chaves: Machado de Assis, crítica machadiana, crítica e romances machadianos Em Dom Casmurro há trechos em que o autor não deixa de apresentar algumas questões sobre literatura, alguns aspectos da vida brasileira e personagens que representam pessoas típicas da época retratada. Tudo isso, de certo modo, contribui para estabelecer questões a respeito da cultura brasileira, do modo de vida na segunda metade do século XIX, do próprio país e, sobretudo, da natureza humana. A literatura fala de si própria O primeiro e o segundo capítulos do romance, além da importância que apresentam no contexto geral da narrativa, também são instigantes porque têm como tema a própria literatura. No primeiro, há uma passagem curiosa: o protagonista vai no trem da Central e é interpelado por "um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu" (MACHADO DE ASSIS, 1979, Vol. I, p. 809). O mesmo rapaz conversa com ele sobre os assuntos do dia, considerando tempo e política, e acaba por pedir a Bento Santiago que ouça seus versos. Descobrimos, então, o próprio Dom Casmurro representando o papel de crítico literário! O segundo capítulo se inicia com o narrador explicando os motivos que o levaram a escrever o livro. Descreve a casa em que mora, que é perfeita réplica daquela em que viveu na infância e na adolescência; a seguir, completa: "o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência"(p. 810), o que na verdade não conseguiu: "Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui" (p.810). No parágrafo seguinte, o narrador diz não sentir falta desse passado, mas que conserva "alguma recordação doce e feiticeira"(p.810).

2 Diz o verdadeiro motivo de estar escrevendo o livro: "Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro."(p.810). Aqui, faz menção a outros assuntos que poderia ter abordado, todos relacionados a algum tipo de saber, mas alega "não me acudiram as forças necessárias."(p. 810) Daí em diante, põe-se a contar algumas passagens dos tempos idos. É interessante observar que a literatura, no caso a escritura de um romance, é colocada como algo mais fácil de ser executado do que qualquer outro tipo de obra escrita. É claro que se trata de fina ironia; não do narrador, mas sim do próprio Machado. A construção de um romance, por mais simples que seja o que não é o caso em Dom Casmurro requer tanto ou mais trabalho e cuidado como qualquer outro tipo de texto, mesmo que científico, além de exigir talento do escritor. Em um de seus textos críticos, Machado afirma: Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de lingüística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. (Machado de Assis, 1979, v. III, p.804, ) O próprio autor diz que essas palavras não desmerecem o romance, muito pelo contrário, porque exige qualidades de quem o escreve. Outro fato relevante é o grande efeito produzido por esse artifício narrativo que é a criação desse personagem-narrador, que escreve suas lembranças num tempo distante dos fatos acontecidos e num momento em que já não é a mesma pessoa. Seus comentários revelam alguém que já não experimenta o mesmo entusiasmo a respeito do que viveu e a respeito de quem foi. Machado, ao criar esse narrador, aborda talvez de modo indireto a própria literatura, proporcionando-nos um memorialismo às avessas. Em primeiro lugar, é o personagem-narrador que relembra o próprio passado; e, em segundo, esse personagem não é o mesmo. Ao voltar no tempo, ele já não se identifica com aquele mundo; o próprio narrador vive um período irreconciliável àquele que retrata. Outro elo entre o romance analisado e os textos críticos do autor é a tentativa muito bem sucedida por sinal de fazer o que ele nomeou de "romance puramente de análise". Não se pode deixar de observar que a análise da natureza humana se dá, sobretudo, a partir do próprio protagonista; o narrador, ao se referir a comportamentos de outros personagens, acaba por revelar mais que tudo sobre si mesmo.

3 O escritor como homem de seu tempo e de seu país A literatura de Machado de Assis abre novos caminhos para a representação do nacional porque vem mostrar que existem outras formas de pensar a brasilidade. O indianismo de Gonçalves Dias e José de Alencar, o romance regionalista ou histórico deste último já não são as únicas representações daquilo que se poderia chamar, naquele momento, de literatura brasileira. Durante grande parte da narrativa, teremos, como cenário, o que poderíamos chamar de reconstituição do Brasil no Segundo Império, com os costumes da época e seus valores. Dom Casmurro pode ser considerado uma narrativa em que há também a preocupação com a recuperação física e moral de um tempo que já se foi; isso se dá porque o próprio narrador, ao resgatar algumas vivências do passado, reconstitui toda uma época que, mesmo para ele, não mais existe. Estabelecendo um paralelo entre os textos críticos do autor e os de ficção, sobretudo quando diz naqueles: "o que se deve exigir do escritor [...] é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e de seu país (vol. III, p. 804), retiramos alguns exemplos, no romance, que atestam a afirmativa. O primeiro deles são dois capítulos em que o narrador nos apresenta o personagem José Dias. O agregado era um tipo de pessoa comum nas casas de famílias mais abastadas, na época; de modo geral era alguém de classe social inferior e que procurava a sobrevivência entre os mais ricos. O aparecimento de J. Dias se deu na fazenda do pai de Bento Santiago. Dizia ser médico homeopata e até mesmo chegou a curar alguns escravos, contudo era um charlatão. Mesmo depois de ter confessado a verdade, é convidado a continuar morando com a família de Bentinho. O pai do protagonista até mesmo lhe deixa de herança uma apólice. José Dias não só conseguiu se estabelecer ali, como se fez ouvir dentro da própria família. É um personagem caricatural tanto no modo de vestir, como no de falar: José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases [...] (p.812). Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão ou à sobremesa, ou explicar algum fenômeno [...](vol. I, p. 814).

4 O personagem Pádua, pai de Capitu, é outro típico representante do homem comum, funcionário público, que tenta sobreviver em meio às contradições da segunda metade do século XIX. Sua casa, obtida através de um golpe de sorte um meio bilhete de loteria (p. 825), se situa ao lado da dos integrantes da família Santiago, mas ele não pertence à mesma classe social dessa família. Através dele, pode-se perceber um outro tipo de brasileiro: aqueles que não são privilegiados mas, ao mesmo tempo, também não são agregados, como é o caso de José Dias. Pádua era um empregado em repartição dependente do Ministério da guerra (vol. I, p. 825). Seu trabalho mostra como funcionava a burocracia do Império e como esta proporcionava meios de vida a algumas pessoas da população. No capítulo, O administrador interino (p. 825) há um saboroso relato sobre o pai de Capitu. Além de sabermos mais sobre o funcionamento da repartição onde trabalhava, Machado já nos apresenta pequena investigação sobre a natureza humana. O fato se dá quando o personagem assume um cargo interino que julgava seu por tempo indeterminado, passa a receber mais e a usufruir de um modo de vida mais confortável. Quando o chefe retorna, porém, e novamente tem de voltar ao posto anterior, Pádua não quer perder a pose e ameaça suicidar-se. O peso da opinião dos conhecidos o atormenta. Ele, que galgara alguns degraus acima da condição ordinária inclusive com sapatos de verniz, sente a vaidade ferida. No fim do capítulo, tudo se resolve não só devido à intervenção de D. Glória, mãe de Bentinho, como também pela presença de amigos. Mais tarde, a interinidade se transformara em motivo de orgulho, porque é citada por ele em conversas informais como referência temporal aos fatos que lhe ocorreram à volta. O cargo provisório, mesmo que exercido e findo, ainda lhe proporcionava uma ponta de orgulho. O capítulo sobre Tio Cosme é outro exemplo do modo de vida de quem trabalhava, agora em meio às profissões ligadas à Justiça. É importante observar que o bacharel em direito já é uma figura importante no Brasil, desde o Império, e Machado não deixa de apontá-lo. Tio Cosme emite algumas opiniões sobre a vida política contemporânea a ele e sobre a anterior, a da Regência, no caso a do Governo Feijó: Governou como a cara dele. (p. 812)

5 O personagem revela quase sempre bom-humor e também opina sobre assuntos inerentes à religiosidade, como a promessa da irmã: [...] Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre? (p. 812). Essa mesma religiosidade, presente de modo geral nos brasileiros, permeia grande parte do romance. Além da promessa de D. Glória, há a freqüência do padre Cabral, como amigo da família e professor de Bentinho, à residência dos Santiago; encontramos referências ao meio eclesiástico, como a padres, bispos e até ao papa. Bentinho, durante a infância, brinca de celebrar missas com Capitu; e, por fim, a solução arranjada para livar o personagem da carreira sacerdotal é interessante porque se percebe as acomodações religiosas em meio às necessidades de não desagradar a classe dominante, que proporcionava boas doações à Igreja. No romance, grande parte de tudo que compõe o Brasil está presente. Temos até mesmo o Imperador a interceder, embora de modo imaginário e na mente do narrador, a favor de nosso herói. Há, portanto, todo um painel do tempo. Paixões e caracteres Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres (vol. III, p. 805) como pleiteava Machado, o capítulo XII, Na varanda, é revelador. Bentinho se põe a descobrir, depois das palavras de José Dias, o envolvimento afetivo com a amiga Capitu. É interessante a personificação de elementos da natureza: um coqueiro velho, está a conversar e opinar, assim como pássaros, borboletas e uma cigarra ; na verdade, contudo, é o próprio protagonista que está a dialogar consigo sobre a descoberta do amor e de seus sentimentos pela menina (p. 820.821) Os capítulos 31, 33, 37 e 38 traçam a personalidade de Capitu. Nessas passagens quase não se nota um descolamento (ou afastamento) dos fatos narrados (enunciado), por parte do narrador. Aqui, não é o ensimesmado e velho Casmurro, já contaminado pelo ranço do passar dos anos, mas alguém embevecido com a descoberta do amor. Os pequenos gestos e artimanhas de Capitu nos auxiliam a compreender a construção da personagem. Em alguns momentos, o narrador ressalta atitudes que revelam algum caráter ardiloso da menina ainda na fase adolescente. Mas a narrativa em primeira pessoa torna tudo suspeito; o que se pode constatar é o caráter complexo e ambíguo (Machado o utiliza como mais alta literatura) que o autor estabelece através

6 das palavras do narrador. A metáfora olhos de ressaca poupa a Bento Santiago explicações maiores sobre a adolescente. E há de se sublinhar que a metáfora marítima revela toda a insegurança dele, que teme se ver arrastado. Daí que a definição atribuída a Capitu define mais que tudo o temor do narrador em se ver dominado e levado pela incerteza ou, talvez melhor dizendo, pela intempérie do caráter feminino. Ele não admite ser conduzido: [...] Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como uma vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía dela vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (vol. I, p. 843) suplício. No mesmo parágrafo, há dois vocábulos reveladores, são eles: felicidade e Quantos minutos gastamos naquele jogo. Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração da felicidade e dos suplícios. (vol. I, p. 843) Nessa passagem, as duas palavras que são de significados contrários se referem ao que experimentou Bentinho naquele momento; o personagem percebe o perigo em que se encontra, mas não deixa de se sentir atraído. Há também, nas linhas que se seguem, uma genial referência a Dante: [...] Há de dobrar o gozo aos bem aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade de delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores dos condenados ao inferno. Esse outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. (vol. I, p. 843) Tais divagações discutem a complexidade da natureza humana, que não deixa de ser contraditória. Do mesmo modo, podemos observar que a felicidade e suplício também dão o tom de todo o livro. Não podemos negar que Dom Casmurro seja uma narrativa de um relacionamento amoroso que transita nessa via. A referência a Dante impregna a obra de atmosfera universal, já que é oportuna, embora o narrador diga que não está a emendar poetas. O argumento apresentado por Machado é pequena pérola que dá ao romance foros de literatura universal. O sensual em Dom Casmurro Machado de Assis, ao criticar Eça em O primo Basílio, diz que um dos principais problemas deste romance é a personagem Luísa. O autor brasileiro a

7 nomeia de títere, alguém manipulado totalmente pelos outros, personagem que não possui músculos ou nervos. Pelo contrário, as personagens machadianas primam pela personalidade. A principal criação feminina em Dom Casmurro, Capitu, demonstra determinação desde a idade juvenil. Grande parte da trama para que Bentinho se veja livre do seminário é arquitetada por ela e, durante todo o tempo em que ele se vê no colégio, a moça cumpre bem um papel muito político, que é o de conquistar a simpatia de D. Glória. ( Intimidade p. 877). Se há alguém que, em determinado momento, se deixa levar é o narrador. Ele não age diretamente, não quer ferir a mãe, espera por pessoas como José Dias, que não é de total confiança. Mas não podemos dizer que esse narrador é uma marionete. Ele tem certeza de que foi traído (ao menos para ele) e toma atitudes extremas, que resultam no exílio de Capitu e do filho. O caráter inexplicável de algumas atitudes das personagens machadianas comprova o aprofundamento do romance de análise. Percebe-se isso em dois momentos. O primeiro ocorre no capitulo em que Capitu não se defende da acusação de adultério, aceitando passivamente o exílio; o segundo, quando Sancha aperta a mão de Bento Santiago de modo sensual e enigmático. Machado aproveita alguns enigmas relativos à própria natureza humana que talvez nunca tenham sido decifrados e os utiliza sem também os tentar decifrar ou nos dar respostas. Ao criticar O primo Basílio, de Eça, o autor brasileiro diz que há na narrativa um certo sensualismo e que este é a medula do romance; não perdoa as cenas cruas que focalizam as personagens. O que nos interessa para finalizar essa apreciação é o modo como o universo das sensações se dá em Dom Casmurro. Entende-se aqui, aliás, sensações como percepções ligadas aos sentidos físicos. No romance de Machado há, em primeiro lugar, os beijos que Capitu proporciona a Bentinho; o primeiro ocorre quando este acaba de pentear-lhe os cabelos; o segundo, num momento em que o pai da moça está prestes a entrar no cômodo onde os dois se encontram. Vejamos o primeiro em: O penteado (cap. 33): Levanta, Capitu! Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim, a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e... Grande foi a sensação do beijo; (vol. I, p. 844)

8 A cena revela a descoberta de algo novo, algo ainda inefável para a idade que tem Bentinho. A passagem não resvala num sensualismo vulgar, mas mostra a descoberta do amor, de um sentimento que vai torná-lo ainda mais próximo à amiga. [...] Capitu ergueu-se rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... (vol. I, p. 844) São poucas as vezes em que o tocar de corpos apresenta-se na narrativa machadiana e quando isso acontece é porque trata-se de passagem que, se suprimida, faria muita falta no universo do romance. A cena do beijo consagra a determinação e personalidade de Capitu, características fundamentais na construção da personagem e no desenrolar da intriga, enquanto mostra um Bento Santiago ainda ingênuo e sem a possibilidade de domínio do próprio destino. O final do capítulo 37, "A alma é cheia de mistérios", focaliza novamente outro beijo dado por Capitu a Bentinho. A cena se desenvolve de modo muito parecido com a anterior, só que aqui é o narrador que de mãos dadas à menina tenta beijá-la. Mas ela não cede, pelo menos por momentos, fazendo-o apenas quando o pai está na iminência de surpreendê-los. [...] Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, passou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios. (vol. I, p. 849) No trecho, não só há um reforço à personalidade de Capitu, como encontramos insinuações do narrador de que a moça é plena de ardis; a inteligência dela suplanta as habilidades desse mesmo narrador, o que vai dar margem a que, mais tarde, quando Capitu já for sua esposa, se pense de forma desabonadora em relação a ela. Os capítulos 102 e 103 tratam da lua de mel dos dois. Machado investe nesses capítulos não com a intenção de nos relatar a intimidade do casal, não há sequer uma cena de beijo entre eles. Apresenta-nos o cenário da Tijuca, como de ideal acolhimento para tal tipo de retiro; mostra-nos a natureza se alternando entre chuva e sol. E o máximo de o que se poderia chamar de sensualismo aproximação física que se dá entre eles é o momento em que Capitu tem entre as mãos o rosto de Bentinho. Mas na verdade trata-se de um gesto de mais pura inocência. O ambiente é tão familiar que, em plena lua de mel, eles recebem a visita de José Dias.

9 Pelo menos outros três momentos poderiam ser apontados como de sensualismo no romance. O primeiro está no capítulo 105, Os braços (p. 910), em que o narrador sente ciúmes dos braços nus de esposa, durante os bailes que freqüentam. Capitu acaba por dizer a ele que passará a sair com os braços cobertos. Mas é o ciúme do narrador que já se põe a crescer logo após estarem casados e viverem a felicidade dos primeiros anos. O outro episódio que revela o sensual é a qualificação que Bento dá ao olhar de Capitu quando ela olha o defunto Escobar, já no caixão e prestes a ser levado. Diz Bento: Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (vol. I, p. 927) Além de aqui haver a volta dos olhos de ressaca, talvez o que mais insinue o elemento sensual seja o vocábulo "tragar". Mais uma vez é importante salientar que tudo é dito por alguém que é parte interessada nessa narrativa; assim, tudo que poderia ser chamado de sensual, torna-se necessário para acentuar a natureza do personagem-narrador, um ser mergulhado em um ciúme doentio. Por último, temos o episódio a que já nos referimos; o do olhar e toque de mãos entre Bento e Sancha (cap. 118, A mão de Sancha ), no dia anterior à tragédia. Pode-se perceber através desse capítulo todo um desdobramento mental do narrador a respeito do significado dos gestos da mulher do amigo. Tal passagem é importante porque embaralha as concepções de Santiago a respeito de insinuações amorosas e possíveis traições, o que nos leva a tornar suspeita a interpretação dele à respeito da possível traição da esposa.

10 Conclusão Através desses trechos da obra de ficção de Machado de Assis, percebe-se a realização de tudo aquilo que o autor especulou nos seus escritos de crítica literária. É indiscutível que o escritor brasileiro tenha como obra maior os romances sobretudo os publicados num período em que predomina o amadurecimento de sua obra, mas não deixa de ser interessante perceber que Machado conseguiu realizar no árduo terreno da crítica literária um receituário e uma preparação, para que ele próprio atingisse a realização plena, tornando-se um autor que atuou com sucesso em praticamente todos os campos da escrita. O que imprimiu como modelo de obra de arte a ser perseguida, perseguiu-o ele próprio, com empenho e genialidade. Da mesma forma, não se pode dizer que o autor brasileiro deixou de lado as cores de seu país. Talvez o que não perceberam alguns de seus críticos é que ele tenha dado a elas contornos universais. Referências bibliográficas: MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, vol. I. MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, vol. III.