Esqui no fim do mundo Julho 2014 I A caminho do Fim do Mundo. Guilherme, Moacir (eu) e Felipe, três manezinhos no fim do mundo, pouco depois de terminar o dia de esqui. Foto tomada no pavilhão principal da base de Cerro Castor. Mal chegamos do passeio para esquiar em Aspen iniciamos nossas pesquisas e preparações para uma semana de esqui sul-americana. Coisa de fanáticos. Tínhamos que acomodar a data para não interferir com a universidade e só pudemos definir quando percebemos que a 1
sabotagem dos funcionários da UFSC, cem dias de greve, não interferiria com o calendário escolar, férias do Guilherme. A constatação que faço, após mais de três meses sem trabalharem, é que eles são inteiramente dispensáveis. Depois que desistiram de sabotar o ensino, fui para a internet pesquisar preços e datas. Terminamos por comprar um pacote de uma semana com hotel, traslados, e ingressos para a estação Cerro Castor que, segundo os moradores do local, fica no fim do mundo, Ushuaia, Terra do Fogo. Conversando com Felipe Kuhnen, meu oncologista, descobri que ele Meu amigo Gustavo Santos, mais conhecido como Ratinho, baixinho, folgado, inteligente e muito irreverente, eu e meu filho Guilherme tomando café da manhã no aeroporto de Porto Alegre. havia praticado muito snowboard quando no seu intercâmbio na Califórnia. Analisando os orçamentos julgou que estava barato e compramos três pacotes que partiam de Porto Alegre. À meia-noite de quinta-feira, 24 de julho, depositamos nossas carcaças nas poltronas-leitos do voo da Santo Anjo para tentar dormir com todo o excitamento que vivíamos. Eu dormi, mesmo alvoroçado como um guri em véspera de natal, ao menos meia hora. Tomamos nosso café da matina no aeroporto em companhia de um velho amigo meu de adolescência, o Ratinho, que hoje é uma ratazana 2
velha que só faz beber e fumar. E também encher o saco dos amigos com ligações a cobrar. Mas nós, os antigos colegas dele, gostamos muito do Gustavo, nome que quase ninguém associa à figura. É Ratinho e basta. Ele nos suportou até o momento em que a abstinência de nicotina e alcatrão superou sua vontade de estar conosco, pediu para fumar e Almoço no Aeroparque: pizza com vinho e garçom grosso. sumiu no horizonte. Nós fomos para sala de embarque. Enquanto os trouxas compravam no duty-free a preços mais altos do que os de supermercados estadunidenses, nós descansávamos. Depois embarcamos para um voo de pouco mais de uma hora onde ganhamos um lanchinho infantil. A Aeronlíneas parece a Gol, que parece a TAM que parece uma viagem dessas que pessoas fazem para perda de peso mediante exercícios físicos e comida racionada. Há programas televisivos que exibem as vítimas se esforçando para afinar cintura, carregando toras, escalando paredes, subindo morros e se 3
hospedando em hotéis de luxo que lhes servem comida em porções adequadas a recém nascidos. No caso do avião o exercício se associa ao fato que o passageiro tem que fazer contorcionismo para caber no espaço restrito e ginástica para entrar e sair da fila de assentos. Aeroyoga. E desembarcamos no Aeroparque mortos de fome. Feitas as idiotices migratórias, que não existiriam se o tal Mercosul existisse de fato, saímos em busca de um lugar onde comer. Guilherme dorme na sala de embarque antes do voo para Ushuaia, depois de beber duas copas de vinho. Descobrimos mesa disponível de quatro lugares coberta de pratos sujos. Ocupamos as cadeiras e começamos uma longa espera pelo moço. Tratava-se de um sexagenário mal humorado que parecia não ter simpatizado conosco. Argentina é mesmo terra de gaúchos, onde só sobrevive gente boa de laço, pois para fazer com que o coroa nos atendesse era preciso laçar o animal. E ele era sestroso, chegou sem cumprimentar, vez por outra aparecia meteoricamente, dava o 4
cardápio, pegava um prato sujo, e se mandava. Meu laço é um potente assobio, sibilei um fuííííííuuuuu e ele resolveu nos atender. Acho que pelo medo do mico causado por um brasileiro maluco. Aguardando a comida no Bar Ideal, um Irish Pub na Av. S. Martin. Foi escolha à primeira rajada de vento gelado. Felipe posando na nevasca em frente ao Bar Ideal. Pedimos pizzas e eu completei: - Deseo un vino. Qué tenéz vos? Claro, no mais elaborado portunhol clássico. O velho não me mostrou carta, nem me perguntou se tinto ou branco, simplesmente pegou uma garrafa que estava sobre o balcão e assentou com uma porrada na mesa. Daquelas que os pratos saltam e os comensais se assustam. Era como quem dizia: bebe esta merda e não me enchas o saco. Será que era sempre assim ou ele se levantou da cama com os ovos atravessados? Se fosse mais jovem diria que a mulher dele dormiu de calças jeans, mas, pela aparência do decaído garçom, acho que isso já não 5
faz diferença. O vinho era aceitável, conforme opinião do nosso oncologista enólogo, e a garrafa se evaporou rapidamente. Logo depois fomos para a sala de embarque onde meu filho apagou numa pose que só mesmo um jovem aguenta ficar. Ou os bêbados, que sempre encontram uma posição impossível para descansar ou são velados por Santo Ébrio, protetor dos alcoolistas. Não fosse essa figura mítica, a expectativa de vida no planeta terra seria seriamente encurtada. Metade dos brasileiros não passaria dos trinta anos. Finalmente, Ushuaia. Uma bela mulher nos aguardava com meu nome numa placa à saída da sala de bagagem. Ela nos encaminhou para uma van estacionada num lugar proibido. A caminhada foi penosa diante do frio patagônico, com vento e neve. Neve gelada, aos costumes. Nós tremíamos ainda com roupas leves de frio catarina, com preguiça de abrir malas para pegar agasalhos mais pesados. Ela falava muito bom português, fato que me impressionou, que me disse ter aprendido no local onde nosso idioma é muito ensinado. E bem que Esta casa de pintura alegre foi onde tivemos nossa primeira refeição em Ushuaia, escolhida por puro conforto, ou seja, medo do frio, muito frio. 6
valia um devaneio erótico, um sonho de noites de inverno. Antes que o rolo de macarrão se faça útil lá em casa, aviso que ficamos nos devaneios. Eu e meus companheiros, todos bem comportados, focados na montanha. Esse rolo é peça fundamental em todas cozinhas, mas raramente usado. Depositada a bagagem no hotel nos pusemos em marcha procurando um lugar para a janta. Já passava das dez e o comércio estava fechado, mas vitrinas ficavam iluminadas e não víamos grades. A bandidagem não parece ter chegado ao fim do mundo, coisa tão comum no Brasil e na própria Argentina. Veríamos na volta que as lojas da Av. 9 de Julho em Buenos Aires são gradeadas e o freguês só entra depois de identificado, nas farmácias nem entra, é atendido por uma portinhola. Naquele frio de congelar o nariz não conseguiríamos andar muito tempo, fomos atraídos pelo primeiro restaurante que encontramos. Melhor uma comida ruim do que morrer de hipotermia... Nevava forte, flocos grandes, com vento. O espetáculo visual era notável e fizemos algumas filmagens interessantes. Felipe pediu para ser fotografado para mostrar para sua esposa. Vaidoso, foi logo divulgando a imagem no Facebook. Teve até velha assanhada da Califórnia comentando: holly cat! 7