Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008. Ritual e Gênero no Vale do Amanhecer



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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Erich Gomes Marques (UnB) Palavras-Chave: Performance, Gênero, Religião. ST 30 - Religião, gênero e diversidade sexual Introdução: Ritual e Gênero no Vale do Amanhecer Este artigo visa demonstrar a relação de performance dos ritual, de contexto religioso e de inserção do adepto no rito com a natureza de gênero no Vale do Amanhecer. Ou seja, procurarei mostrar as contribuições do rito para a construção do masculino e do feminino na comunidade religiosa. Além do mais, quais são as situações vividas pelos que optam por orientação diferente da de padrão heterossexual, conforme pressões da comunidade e o do contexto ritualístico. Deste modo, levo em consideração o ritual trabalho de tronos - rito de comunicação realizado dentro do templo, o comando dos trabalhos espirituais, a urgência e a necessidade do desempenho do rito e da preservação criteriosa de suas características. O Vale do Amanhecer A instituição Obras Sociais da Ordem Espiritualista Cristã, conhecida como Vale do Amanhecer, foi fundada em 1964, em Taguatinga, por Neiva Chaves Zelaya (1925-1985), a Tia Neiva. Mas encontra-se, desde 15 de Novembro de 1969, nas proximidades de Planaltina, há 45 Km do Plano Piloto, em antiga área da fazenda Mestre D Armas (Djalma, 1999). A comunidade era formada originalmente por adeptos da doutrina, mas hoje possui cerca de 22.000 habitantes e alguns nem fazem parte da instituição. Toda a estrutura dos ritos, mitos, construções e hinos foram organizados por Tia Neiva, médium vidente, orientada pelo espírito de um índio maia, o Pai Seta Branca. No entanto, hoje não há apenas o templo de Planaltina, mas cerca de 500 espalhados por todo o Brasil e em alguns países. A complexidade da instituição do Vale do Amanhecer não permite falar sobre gênero sem antes abordarmos sobre seu conceito. Assim, farei uma breve apresentação sobre tal assunto. O principal objetivo do Vale do Amanhecer é realizar curas de pacientes, de médiuns e do planeta através de suas desobsessões. Isto quer dizer que espíritos obsessores aqueles que estão vagando no planeta - serão enviados para seus planos espirituais adequados. No entanto, devemos compreender outras peculiaridades. O já falecido Trino Arakén, mestre Nestor Sabatovicz, destacou que esta doutrina é o que alguns chamam de religião extraterrestre e que Pai Seta Branca é o comandante deste povo.

Além do mais, a grande preocupação da doutrina do Vale do Amanhecer está em impedir a realização dos planos de alguns grupos. Um destes, os Equitumans juraram vingança por terem sido destruídos no passado por Pai Seta Branca. Preocupam-se também com outros povos extraterrenos que objetivam a invasão do planeta e, ainda, com povos do mundo negro que se organizam em hierarquias e que querem o fim do Vale do Amanhecer. Desta forma, a fim de se proteger e agir contra estes grupos e contra espíritos cobradores, o Vale do Amanhecer se organiza como se fosse um grupo militar da Antigüidade. Ou seja, possuem uma hierarquia e uma atuação na defesa do espaço geográfico do templo, que lembra tal condição. Além do mais, segundo Vladimir de Carvalho, o Vale do Amanhecer é uma ciência que visa a transformação da condição do planeta, dos pacientes, dos médiuns e dos espíritos pela manipulação de energias nos rituais. Por isso, os adeptos são também chamados de cientistas. Por outro lado, os rituais e a condição dos mestres dependem de um passado transcendental. O Turigano, por exemplo, é um rito de encenação de um fato da Grécia Antiga. Também a condição dos adeptos está inclinada conforme o seu passado transcendental. Deste modo, o Vale do Amanhecer é uma doutrina extra-terrena que se baseia na manipulação de energias para a desobsessão e a transformação do planeta, do médium e de pacientes. Baseia-se na crença de vida após a morte e na biografia transcendental que afeta as pessoas vivas. Organizam-se de modo a manterem certas hierarquias de comando do passado, em níveis burocráticos que se assemelham a divisões militares da Antigüidade preparadas para combates, contra inimigos também organizados. 2 Ritual Trabalho de Tronos O ritual de tronos deve ser descrito, porque ele melhor sintetiza a questão de gênero nos rituais do Vale do Amanhecer. Este é um ritual de comunicação, que ocorre dentro do Templo, em um espaço que compõe um total de 42 bancos. Neste rito, o médium de incorporação fica sentado ao lado do paciente e o médium doutrinador permanece em pé atrás do incorporador, acompanhando a comunicação da entidade incorporada. A comunicação deve atender aos critérios da doutrina, a fim de beneficiar o paciente e promover sua melhora emocional. O trabalho de tronos tem também a função de realizar a elevação de espíritos sofredores que podem estar acompanhando o paciente, ou apenas de realizar a retirada de suas energias negativas. Por outro lado, temos que a estrutura deste ritual é interessante, porque apresenta algumas regras no aspecto da mediunidade e do gênero. A primeira coisa que chama a atenção é que o médium de incorporação masculino o ajanã não pode incorporar entidades femininas. Esta determinação já veio da época da Tia Neiva, quando ela disse que tal manifestação mediúnica era

muito deselegante para um incorporador. Ou seja, o gênero masculino é mantido preservado de impureza (Douglas,1966). Lembremo-nos que estamos falando dos anos 70. Outra coisa importante é que a doutrinadora não pode realizar tal ritual com uma médium de incorporação feminina - uma apará. Neste caso, temos algumas explicações. Primeiramente, é necessário que haja uma diferença de forças para que o ritual seja eficaz. Mas quando há uma doutrinadora com uma apará, esta diferença não ocorre, ao contrário de quando há doutrinador com ajanã, ou doutrinador com apará ou doutrinadora com ajanã. Além do mais, alguns falantes disseram que esta proibição começou quando perceberam que, ainda na época da Tia Neiva, duas médiuns estavam trabalhando nos tronos e conversando sobre coisas fúteis. Outra justificativa, vinda agora da Edélvis (82 anos) foi que estes médiuns não tinham tanta força para realizar a elevação de um espírito sofredor, ou podiam ser facilmente enganados por estes espíritos como disse o mestre de alta hierarquia, João Spíndola (68 anos). Temos então uma das primeiras características. O gênero feminino não possui autonomia. Ele deve estar sempre de alguma forma acompanhado por algum representante do gênero masculino, mesmo quando este representante esteja de alguma forma com a sua consciência prejudicada. Hugo César Tavares (n/d) destaca esta subordinação e a diferença de status da mulher, através do funcionamento do mecanismo da linguagem, que atua no inconsciente e que não deixa de estar presente universalmente em ambiente social. Outra questão que deve ser considerada é a limitação referente ao gênero e à mediunidade em relação aos comandos dos trabalhos. Apenas quem pode comandar os rituais são os doutrinadores os homens que não incorporam. Os médiuns de incorporação e as mulheres não podem. Deste modo, se cruzarmos as informações anteriores com esta, temos que as aparás possuem a maior liberdade para incorporar, pois podem ter a possessão de espírito masculino ou feminino. Já os homens doutrinadores podem trabalhar nos rituais e comandar qualquer trabalho. Percebemos que a estrutura dos rituais privilegia o papel masculino no comando dos trabalhos e o feminino no de incorporação, pois nestes casos cada qual não possui limites. Além do mais, os médiuns tendem a associar mais o gênero feminino à condição de incorporar, enquanto o masculino à de comando. Uma outra justificativa quanto ao impedimento do comando das mulheres está no fato de elas serem associadas ao qualificativo ternura. Logo, temos outras conclusões. Ao gênero masculino são reservadas qualidades de atenção e discernimento. Seus representantes são os que aplicam as leis da doutrina. Logo, possuem uma qualidade superegóica. Já às mulheres são reservadas as características de sensibilidade, de ternura e da maior pluralidade nas incorporações. Em conseqüência, as elas são geralmente submetidas ao comando masculino. Isso nos remete à citação que Segato (1999) fez de Godelier sobre o mito da flauta roubada da tribo Baruya. Antes a mulher tinha a flauta, mas esta foi roubada pelo homem. 3

Desta mesma forma, podemos dizer que quem apresenta a condição de trazer as entidades de luz ou receber os cobradores, são os médiuns de incorporação, mas estes são logo postos em submissão. Conforme o que se tem aqui, a mulher está associada à passividade, não se integrando aos elementos sociais dominantes. A autora Hélène Cixous, no texto Castration or Decapitation? (1981), baseada nos autores estruturalistas, mostra que o homem participa do processo social de maneira ativa, sendo aquele que determina, ou aquele que participa da linguagem social. Embora, o homem tenha que abdicar de atitudes ou emoções pessoais, ele domina a fala, o poder, as estruturas políticas e científicas. Já a mulher, além de se abdicar de suas emoções pessoais, ela também não participa da linguagem, a não ser como subordinada. Por isso, a autora diz que ela seria decapitada, pois abdica de suas necessidades pessoais, sem participar das estruturas sociais por completo, visto a linguagem ser predominantemente masculina. Este caso é semelhante ao relatado, em que a mulher em nenhuma circunstância assume o papel dominante da linguagem social, mantida pelo homem. No entanto, em nosso caso, devemos colocar o seguinte: a mulher não assume o papel dominante da linguagem social justamente porque ela supervaloriza as emoções institucionais, as da doutrina, as das entidades e ainda abdica das suas próprias. No entanto, apesar deste aspecto estrutural todo abordado poucas adeptas sentem-se submissas. Afinal, elas podem participar de um número considerável de trabalhos, não precisando apenas comandar. Aliás, para uma próxima oportunidade, fica pendente a abordagem sobre a questão da sedução, tanto nos rituais e no contexto social (Rubin,1975). 4 A Origem da Falange de Príncipes e a Homossexualidade Observamos inicialmente a questão da fixação criteriosa dos gêneros dentro dos rituais, destacando basicamente o ritual trabalho de tronos. No entanto, será possível entender como é o assunto do homossexualismo, a partir do ponto em que averiguamos a origem da Falange de Príncipes¹. No começo da década de 80, a Tia Neiva recebeu a orientação espiritual para fundar a Falange dos Príncipes. Havia apenas sete integrantes e todos eram homossexuais. Conforme os falantes a Tia Neiva determinou o Adjunto Yucatã, mestre Alberto para ser o seu representante. No entanto, ele não aceitou associar sua imagem à deles, recusando a determinação. Deste modo, a Tia Neiva apadrinhou a falange e sob nova orientação convidou a mestre Edélvis à frente dos Príncipes. Ela recusou no início, mas mesmo assim assumiu com firmeza exigindo formalidade ao participarem dos ritos. No entanto, ainda hoje, não há uma rejeição institucional ao homossexualismo. Mas, esta questão provoca certo constrangimento (Moutinho,2005). Carlos Henrique Ferreira (26 anos) disse não sentir preconceito quando participa dos rituais a não ser por parte de alguns adeptos mais

antigos na doutrina. No entanto, as pessoas da cidade do Vale do Amanhecer não aceitam muito essa diferença. Além do mais, deve-se acrescentar que o Vale do Amanhecer não vê o homossexualismo como uma doença que necessita de cura, como o texto de Natividade (1985), mas como algo explicado em outras vidas. A Tia Neiva já identificou um casal homossexual que era alma gêmea e já se conheciam desde o passado transcendental. Uma questão que ainda será abordada é a presença de travestis no Vale do Amanhecer. Afinal, isso coloca em cheque a relação de roupagem, gênero e mediunidade. No entanto, há poucos travestis conhecidos, o que prejudica a coleta de dados etnográficos. 5 Conclusão O vale do Amanhecer apresenta uma construção mítica que se reflete nas realizações dos rituais. Isso significa que o desempenho de um rito está associado a uma urgência pessoal, doutrinária ou planetária. Qualquer tipo de ameaça será interpretada e englobada a algum rito adequado. Deste modo, os ritos obedecem a certos critérios, a fim de que haja a sua completa eficácia. Podem desejar a paz da cidade do Vale do Amanhecer, do templo, dos adeptos, do país e do mundo, contra os espíritos obsessores, falanges de espíritos do mundo negro, ou invasões extra terrenas. Deste modo, a performance dos rituais é criteriosa e urgente, devendo ser rigorosamente cumprida. No entanto, há em geral e no ritual de tronos, em particular, uma divisão de papéis e de interdições que são associadas ao aspecto da mediunidade e do gênero. Assim, inicialmente verificou-se que o gênero feminino não possui total autonomia na instituição, seja no aspecto da estrutura do rito, seja na dos comandos dos rituais, e que está subordinado ao gênero masculino, em um status inferior. Considerando o fato de o Vale do Amanhecer privilegiar o papel masculino à mediunidade de doutrina e o feminino à de incorporação, temos mais alguns qualificativos que devem ser examinados. Ao gênero masculino são associadas as qualidades de atenção, discernimento e força. São os que detêm e aplicam a lei. Enquanto isso, a mulher está associada à ternura e à condição de poder manifestar em todo o seu potencial suas incorporações. Como conseqüência, considerei que na verdade não é o gênero masculino que tem o poder, por ter o direito de comandar os rituais. Naturalmente este é um poder no aspecto ritualístico, mas no aspecto espiritual, são os médiuns de incorporação, mais associados ao gênero feminino. Por isso, pode-se dizer que a mulher foi decapitada, pois ela abdica de suas necessidades para ser inserida na linguagem como subordinada. Sobre a questão homossexual, temos que a doutrina engloba os homossexuais sem qualquer restrição. No entanto, há um certo constrangimento social, não institucional, contra essas

pessoas que fizeram tal opção, o que é resolvido através da atitude formal com que apresentam-se em público: uma forma de defesa. Por outro lado, ainda a ser abordado, temos a questão dos travestis que são uma derrocada para o sistema ritualístico, que está baseado em mediunidade e gênero. (¹) Falanges são um agrupamento que possui um passado mítico em comum, roupas com cores e desenhos específicos e um representante que estará à frente de uma entidade espiritual. Cada falange é responsável por algum ritual específico dentro do Amanhecer. Há 22 falanges, sendo 20 femininas e 2 masculinas. 6 Referência Bibliográfica: AZEVEDO, Ana Vicentini de. A Metáfora Paterna na Psicanálise e na Literatura. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001. BUTLER, Judith. 2003. O parentesco é sempre tido como heterosexual?. In: Cadernos Pagu.pp. 219-260. CAVALCANTE, Carmen Luisa Chaves. Xamanismo no Vale do Amanhecer, o Caso Tia Neiva. São Paulo:Annablume, Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2000. CIXIOUS, Hélène: Castration or Decapitation. Revista Signs, volume dedicado à Teoria Feminista Francesa 1981, vol. 7/1. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976 [1966] DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares de Vida Religiosa. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. FREUD, Sigmund. Conferência XXXIII, Feminilidade. Em: Novas Conferências introdutórias Sobre Psicanálise e Outros Trabalhos. Volume XXIII. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970-1977 [1932-1936]. GALINKIN, Ana Lúcia. A Cura no Vale do Amanhecer. Brasília: Universidade de Brasília, 1977 (Tese). GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos, 1989. GILLISON, Gillian. Symbolic Homosexuality and Cultural Theory: The Unconscious Meaning of Sister Exchange Among the Gim of Highland New Guinea. In: Anthropology and Psychoanalysis. Na Encounter through Culture. London: Routledge, 1994. GONÇALVES, Djalma Barbosa. Vale do Amanhecer, Análise antropológica de um movimento religioso Sincrético contemporâneo. Dissertação de graduação apresentada ao departamento de antropologia. Brasília: UnB. 1999. HEALD, Suzette. Every Man a Hero: Oedipal Themes in Gisu Circunmcision. In: Anthropology and Psychoanalysis. Na Encounter through Culture. London: Routledge, 1994. HEILBORN, Maria Luiza. Estranha no Ninho: Sexualidade e Trajetória de Pesquisa. In: Pesquisas Urbanas: Desafios do Trabalho Antropológico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed.,2003. HIATT, L.R. Indulgent Fathers and Collective Male Violence. In: Anthropology and Psychoanalysis. Na Encounter through Culture. London: Routledge, 1994. LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. LEWIS, Ioan M. Êxtase Religioso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1975. LEVI-STRAUSS, Claude. 1986. A Família. In: O Olhar Distanciado. Edições 70. Lisboa. MOUTINHO, Laura. Homossexualidade, Cor e Religiosidade: Flert entre o Povo de Santo no Rio de Janeiro. In:Sexualidade, Família e Ethos Religioso. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. ORTIGUES, Marie-Cecile y Edmond. Édipo Africano. São Paulo: Editora Escuta, 1989. OBEYESEKERE, Gananath. Medusa s Hair. University of Chicago: Chicago, 1984.

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