ensaios Etnografias Urbanas cultura e cidade de dentro e de perto Cibele Saliba Rizek



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Transcrição:

ensaios Etnografias Urbanas cultura e cidade de dentro e de perto Cibele Saliba Rizek Socióloga, professora PPG Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo/USP São Carlos e pesquisadora CNPq A pesquisa etnográfica, que busca compreender as práticas e a experiência da cidade em sua multiplicidade, tem como um de seus lugares privilegiados a investigação sobre a produção cultural em sua enorme multiplicidade, que ganha, em especial nesse momento de transformações da materialidade e do ordenamento urbano, bem como das formas de resistência e de conflito, contornos mais ou menos nítidos, mais ou menos borrados. Cidade e produção cultural articuladas podem apontar eixos de elaboração e expressão simbólica, lugares de disputa de significados e sentidos, mais do que expressão ou rebatimento de um suposto real, simplesmente espelhado, quer como reflexo quer como ilusão. Dessa perspectiva, perscrutar as várias dimensões de um fazer, de um conjunto de práticas, de um conjunto de relações é muito mais do que compreender apenas (apenas?) representações. Ainda assim, é preciso também apreender, pesquisar, coletar 19

e interpretar representações, dimensões simbólicas, expressões estéticas que possam apontar consensos e dissensos, dimensões que permitam entrever vínculos e relações entre estética (apreensão e percepção do mundo sensível) e política, entrever formas de disputa em torno das leituras do mundo, da cidade, da produção estética. Dessa perspectiva, é possível pensar a pesquisa etnográfica como um caminho fértil para compreender a produção o fazer, relações, práticas, horizontes e modos de recepção das dimensões urbanas e de seus sentidos. Diante desses vínculos entre cidade e produção da cultura, para além das evidências mais imediatas, a perspectiva etnográfica implica em uma reflexão sobre o lugar e a inserção do próprio pesquisador em campo, o estatuto da pesquisa de campo, das formas de observação em uma palavra as negociações, o acesso e os modos de compreender o que se passa na pesquisa de campo, o que acontece com a relação entre o pesquisador e aquilo que se construiu como alvo de conhecimento, na relação entre o que se ilumina e o que permanece na sombra tanto do ponto de vista do olhar, quanto do ponto de vista da palavra, isto é, das formas de enunciação das informações, sentidos, práticas que se pôde observar, de que de algum modo se pôde participar. Dentro dessa perspectiva de elaboração das etnografias e das etnografias urbanas em particular talvez seja necessário pensar as relações e os vínculos que se estabelecem no trabalho de campo como forma de afetação que envolve o próprio pesquisador de modo bastante peculiar. É por isso porque fui muitas vezes afetada e fortemente envolvida na trama dessas relações tanto do ponto de vista do observador como do ponto de vista pessoal, que acabei procurando referências que me permitissem pensar a minha própria prática de pesquisa, as incursões etnográficas, as relações e o estatuto das práticas do trabalho de campo. Nesse sentido, a redescoberta do texto de J. Fevret-Saada (1977) permitiu fazer uma ponte entre a reflexão sobre essas práticas, sobre o lugar e os procedimentos da pesquisa etnográfica sem cair no exercício talvez excessivamente usual do que se pode identificar como uma autoetnografia. No âmbito da pesquisa urbana, da pesquisa que busca aproximar a experiência urbana da precariedade e da pobreza e a produção cultural de coletivos e grupos, mais do que as frequentes identificações com os informantes e suas práticas, é preciso afirmar, com Fevret-Saada, que ser afetado não é manter relações de empatia, tampouco praticar como o outro ou pelo outro as práticas que se quer analisar. Ao contrário: é exatamente porque não estamos no lugar do outro que é preciso representar ou imaginar como e o que significa estar naquele lugar. Dessa perspectiva, trata-se de uma distância e não de uma aproximação. Ser afetado é aceitar estar nesse lugar experimentando suas intensidades, modificando o próprio estoque de imagens prévias que os pesquisadores levam consigo ao campo de investigação. Por outro lado, é claro que as imagens que para esse outro e só para ele estão associadas a essas intensidades escapam a um conjunto de modos verbais de comunicação. A partir desse reconhecimento, o texto sobre ser afetado de Jeanne Favret-Saada (2005) diz respeito a intensidades e alteridades e responde a uma questão clássica que se repõe nas dimensões con- 20

temporâneas de pesquisa: como falar dos outros sem que se esteja falando de si mesmo? Se, em alguma medida, essa tarefa é impossível, por outro lado, essa impossibilidade não pode se desdobrar em um calar-se, em um silêncio sobre o outro, sobre suas práticas e suas representações. Entre a impossibilidade de apreensão e o silêncio na boa distância entre os dois, aproximando o outro dos seus afetos (e de certo modo também dos nossos) a etnografia parece provocar e recolocar a questão da separação entre pesquisa, pesquisador e objeto, bem como os processos de aproximação e tensão conceitual entre os procedimentos do investigador dos procedimentos investigados. Dessa perspectiva, a etnografia como forma de pesquisa, como método, é um sistema de lugares em contraste (e não em concordância) com o sistema de lugares que conforma a cidade e seus habitantes: no primeiro a pesquisa etnográfica uma certa atopia dos enunciados (eles são ditos, mas procedem de lugar nenhum, e ninguém, rigorosamente falando, os diz), no segundo, diferentemente, há situações de enunciação, do que decorre uma tópica bastante estrita dos enunciados (o dito não é outra coisa senão quem o diz, para quem o diz e o lugar a partir do qual é dito). (BAR- BOSA NETO, 2012) Ou seja, quando nós, pesquisadores, descrevemos e analisamos, usamos muito frequentemente a figura de um sujeito indefinido do discurso, como se não estivéssemos estado lá, como se não tivéssemos sido implicados no ato mesmo da pesquisa. Assim, a pesquisa sobre dimensões e práticas urbanas, a pesquisa sobre a produção da cultura, suas dimensões simbólicas, econômicas e políticas, ou mesmo no caso da pesquisa de Fevret Saada, sobre a feitiçaria poderiam funcionar como uma possibilidade de crítica etnográfica, isto é, como um feitiço sobre a própria etnografia, e, logo, como uma das formas de contornar os seus impasses de apreensão, compreensão, enunciação. Mas se de fato a possibilidade de crítica etnográfica pode ser colocada, é porque, de outro modo, a criação etnográfica não pode ser resumida a um problema de representação. Ser afetado é o nome que J. Favret-Saada (2005) escolheu para designar essa experiência de criação que escapa à representação, uma experiência que é simultaneamente de campo e de texto, e, sobretudo, de sua sutil e delicada conexão. A elaboração do livro de J. F. Saada (1977), sua escritura e publicação, se alongaram por 10 anos e esse tempo foi imprescindível, já que apenas depois de praticamente um ano, após a autora ter sido, ela própria, diagnosticada como enfeitiçada, as pessoas envolvidas passaram a falar sobre feitiçaria com franqueza, dirigindo-se a ela que afinal fazia parte daquilo a que se dedicava como pesquisadora. Precisamente por isso, o tempo de pesquisa é intrínseco à matéria etnográfica. Inteiramente consagrado à feitiçaria, cuidadosamente descrita como um sistema de lugares, o livro contém uma reflexão profunda sobre a própria maneira de descrever o tema de que trata. Talvez fosse necessário fazer a mesma coisa com os temas da cidade a vilegiatura, o passeio, o percurso, a periferia, as centralidades, a desigualdade, a festa e ainda, sobretudo, talvez fosse necessário fazer o mesmo com a produção da cultura em sua multiplicidade de formas, mediações e atores, em um mosaico de políticas e de financiamentos, em um caleidoscópio de linguagens e de manifestações e seus lugares do local ao mundializado, da espontaneidade e da memória, do rigorosamente institucional, das práticas que conferem 21

e disputam sentido da cidade, da desigualdade, da condição dos próprios produtores, àquelas que se destinam a gerir e a acomodar pobreza e desigualdades. Retomando J. Fevret-Saada, se a etnografia da feitiçaria é também uma meditação feiticeira sobre a etnografia, a etnografia das cidades e do lugar e da produção da cultura nas cenas urbanas do presente, também poderia ser um modo de urbanizar a pesquisa etnográfica e seus modos de conceituar a relação entre objeto e produção do conhecimento. Dessa perspectiva, o lugar do pesquisador pode e deve ser interrogado para além de um discurso em terceira pessoa, como sujeito indefinido, como se não estivesse na cena que descreve. Numa descrição etnográfica nos moldes tradicionais o etnógrafo aparece ou antes não aparece como sujeito indefinido fala-se, vê-se. Mas é preciso lembrar, a partir de um conjunto nada desprezível de reflexões sobre a linguagem que a fala não está fora do conflito e da tensão e que é preciso pensar quem vê e como vê, já que o olho é, na maior parte das vezes, o olho da tradição. Ou seja, antes mesmo de pronunciar uma só palavra o etnógrafo está inscrito em um campo de relações de força. Isso fica claro quando se estuda a feitiçaria, mas também fica claro quando se quer apreender situações urbanas; fica claro ainda no quadro das políticas e programas de cultura, na apreensão por vezes difícil de formas de financiamento e dos sujeitos frequentemente em litígio que produzem filmes, grafitti, cinema e vídeo, música e dança, que produzem cultura dentro e fora de programas e políticas. É porque a fala é uma guerra (BARBOSA NETO, 2012) que as informações sobre a feitiçaria mas também sobre as práticas e representações, sobre as imagens da cidade e sobre os sentidos da experiência têm a particularidade de não serem propriamente informações. A fala é um lugar e quem o ocupa. Daí porque falar sobre a feitiçaria e também sobre as práticas e os lugares da cidade e suas relações com a produção da cultura é sempre perigoso. Nesse contexto, a pesquisa etnográfica e sua narrativa é uma prática que diz respeito a um sujeito em meio a outros sujeitos e sua fala, assim como a de seus informantes, submetida às mesmas forças ou intensidades. Ou seja, sem o reconhecimento de um lugar aquele que o pesquisador ocupa em campo e na escritura, na descrição daquilo que foi possível apreender e conhecer, o estatuto mesmo da observação acaba sendo posto em xeque porque, nesse sistema de lugares, não há lugar para o que não tem lugar nenhum. Não há posição neutra da palavra [...] quem quer que fale está em guerra e o etnógrafo não é uma exceção. (Desse modo) não há lugar para um observador não engajado. (FEVRET-SAADA, 1977, p. 27, tradução nossa) 1 Assim, na pesquisa etnográfica sobre a produção cultural, a ideia de um saber intransitivo, de um saber que contenha no próprio ato da pesquisa e da escritura sua razão de existir, não se sustenta, não consegue ter relevância nas dimensões da observação, compreensão, descrição e análise nem da feitiçaria de Fevret- Saada, nem dos espetáculos do Dolores Mecatrônica, nem das canções que inventam e interpretam os sujeitos periféricos, nem das ocupações e disputas por espaço do Cine Campinho, nem das cantigas de infância das mulheres das Três Marias de Cidade Tiradentes no espaço do coletivo Pombas Urbanas. 2 Vê-se que a produção e frequentemente o litígio de signifi- 22

cados sobre a qual se fundam parte significativa dessas práticas não pode ser apagado nem tampouco apagar o pesquisador e o lugar que ocupa na investigação e na busca de descrição e compreensão. Nesse caso silêncio e denegação só podem comprometer o resultado da pesquisa. Para além dessas dimensões mais imediatas, também é preciso pensar a produção da cultura no caso da minha pesquisa em particular 3 na cidade, como lugar do evento, das práticas e da experiência cujo sentido se manifesta ou se disputa. Ainda sobre as dimensões de pesquisa talvez seja interessante refletir sobre um outro procedimento etnográfico os registros de pesquisa porque eles nos lembram que os enunciados etnográficos trazem consigo uma situação não etnográfica de enunciação. Fevret-Saada avisava que o diário que escrevia cotidianamente em campo era o que lhe permitia imaginar, ainda que não sem hesitações, que tudo aquilo que acontecia com ela poderia algum dia virar outra coisa. [...] Dividia meu tempo entre as entrevistas e a redação dessas notas: tinha como regra a inscrever menos meus estados de espírito do que o discurso nativo e seus silêncios, lapsos, voltas e reviravoltas, cortes, etc. (FEVRET- -SAADA,1977, p. 254, tradução nossa) 4 O diário de campo funciona como um anúncio de um texto futuro, ao qual só se chega, quando se chega, por esse retorno ao trabalho de campo. Esse trabalho de retorno é uma volta ao campo, uma dobra de tempo e de espaço sobre a pesquisa realizada, ainda inconclusa. Dessa perspectiva, a primeira pessoa não é sempre a mesma pessoa. Disso decorre que a alternativa à atopia do sujeito teórico e de pesquisa dificilmente poderia ser assumir a subjetividade de um eu. No livro de Fevret-Saada (1977), é possível entrever, em alguém que está dentro e fora da cena, uma existência que assume a forma narrativa. Já que a feitiçaria é apenas fala da qual só é possível participar caso se esteja envolvido, cabe ao etnógrafo(a) a tarefa de contar as histórias que lhe contaram porque ele/ela estava presente e implicado(a) na própria cena, no próprio enredo. No caso de Fevret-Saada, falar sobre a feitiçaria só era possível porque e na medida em que, no interior do processo de pesquisa, ela foi falada por seu próprio objeto. O livro Les mots, la mort, les sorts só pode dizer a feitiçaria, dizendo, a partir das histórias que conta, o modo como foi dita por ela. (BARBOSA NETO, 2012) Assim como a feitiçaria, a pesquisa sobre a vida urbana e a produção da cultura que guarde um caráter etnográfico só pode existir pelos outros, em conjunção e disjunção entre as dimensões e as práticas da cidade, as da produção da cultura os seus fazeres e relações, sua materialidade e seus resultados as obras, espetáculos, filmes, vídeos. Dessa perspectiva o lugar do etnógrafo é o lugar dos outros; o etnógrafo diz esse outro a feitiçaria, produção cultural e lugar na cidade dizendo-o como os outros o dizem. (BARBOSA NETO, 2012) Gostaria de terminar essas notas afirmando duas dimensões necessárias sobre a discussão dos caminhos e formas de pesquisa sobre a cidade, suas práticas, suas relações. A primeira aponta que a etnografia e a experiência de ser afetado não significam uma redução da pesquisa à autoetnografia. No seu centro, a dimensão de uma alteridade radical está colocada como razão de ser da própria pesquisa. A segunda afirma que o ponto de partida etnográfico é a pesquisa e o trabalho de campo. Esse ponto de partida não permite que 23

se assimile a pesquisa etnográfica ao empirismo ou à fragmentação da multiplicidade de incursões empíricas tout court. A pesquisa etnográfica não recusa o conceito, mas faz das dimensões conceituais e teóricas seu ponto de chegada, incorporando o tempo da observação, da descrição e da narrativa, na dobra analítica sobre o trabalho da investigação, a elaboração de seu relato e a feitura cuidadosa de sua análise. Notas 1 Em francês a citação completa: «Autant dire qu il n y a pas de position neutre de la parole: en sorcellerie, la parole, c est la guerre. Quiconque en parle est un belligérant et l ethnographe comme tout le monde. Il n y a pas de place pour un observateur non engagé.» 2 O Dolores Mecatrônica é um grupo de teatro que atua na Zona Leste da Cidade de São Paulo e que disputou e ganhou financiamento público pela Lei de Fomento, em contraponto às formas de mecenato da Lei Rouanet. O coletivo Pombas Urbanas é um importante centro de atividades e de produção cultural que atua em Cidade Tiradentes constituído por conjuntos habitacionais da COHAB-SP e por favelas, no extremo Leste da Cidade de São Paulo, região com os mais severos índices de precariedade e de pobreza. O coletivo Pombas Urbanas mantém inúmeros convênios, tendo recebido também financiamento público pela Lei de Fomento ao Teatro, mas guarda importantes diferenças com o Dolores Mecatrônica ou com outros coletivos de Guaianases, apenas para citar o exemplo do Cine Campinho que tem papel relevante na constituição do Movimento Cultural de Guaianases, bairro construído por auto empreendimento em sua maior parte, que também figura entre os mais precários da cidade. 4 «Quoi qu il arrivât, je partageais mon temps entre les entretiens et la redaction de ces notes; je m y donnai pour règle d y inscrire moins mes états d âme que le discours indigène en y incluant les silences, les lapsus, les retours en arrière, les césures, etc.» REFERÊNCIAS NETO, Edgar Rodrigues Barbosa. O quem das coisas: etnografia e feitiçaria em Les mots, la mort, les sorts. In: Horizontes Antropológicos. vol.18 no.37 Porto Alegre Jan./June 2012. Disponível em: <www.org.br>. Acesso em 15 de maio de 2013. FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. (tradução de Paula de Siqueira Lopes). Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005. RIZEK, Cibele S. O social e o cultural entrelaçados. Projeto de pesquisa Bolsa Produtividade CNPq em andamento 2011/2014. 3 Ver Rizek, Cibele S. Projeto de pesquisa Bolsa Produtividade CNPq em andamento O social e o cultural entrelaçados 2011/2014 24