OS EFEITOS RETROATIVOS DA LEI 10.259/01 NO STATUS LIBERTATIS DO INDIVÍDUO I INTRODUÇÃO A atividade laborativa do Defensor Público extrapola os limites da interpretação e operacionalidade da lei, porque somos cotidianamente convidados a encontrar soluções. Não só jurídicas, mas soluções práticas com embasamento jurídico. Foi procurando cumprir esse mister que surgiu a solução prática enfocada neste despretencioso trabalho, que busca, antes de tudo, expor uma idéia para que seja devidamente criticada e enriquecida. A questão se insere no âmbito dos efeitos da aplicação retroativa do novo conceito de infração de menor potencial ofensivo. A hipótese que desencadeou este estudo é a dos acusados do cometimento de crimes cuja pena máxima cominada é de até 2 anos, que depois de prestarem fiança na Delegacia, ou de lograrem obter a liberdade provisória, descumpriram alguma das condições impostas pela liberdade vinculada e foi cassada a fiança ou declarado quebrado o compromisso com o restabelecimento do status prisional desses acusados. Assim, seria jurídico, mas não seria prático, que o requerimento defensivo se limitasse à argüição da incompetência do juízo com a conseqüente remessa dos autos para o JECrim, sem o recolhimento do mandado de prisão expedido em desfavor desses acusados. Expomos, nas linhas seguintes, a solução jurídica que tem sido pleiteada no órgão jurisdicional no qual exerço minhas atribuições, sendo certo que o Ministério Público já tem opinado favoravelmente e o r. juízo se inclina em acolhê-la. II DA NULIDADE DECORRENTE DA INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO A premissa do raciocínio consiste na nulidade da tramitação dos feitos nos quais a pretensão punitiva esteja direcionada contra infrações penais, que passaram a ser abrangidas pelo novo conceito de infração de menor potencial ofensivo veiculado pelo art. 2 o, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01 (instituiu os Juizados Especiais Federais), que é aplicável na esfera estadual, sob pena de inconstitucionalidade por lesão direta ao princípio da isonomia. O Princípio da ISONOMIA impede se adote como fator discriminatório tãosomente a competência jurisdicional previamente estabelecida para apurar condutas idênticas sob o aspecto da lesão ao bem penalmente tutelado. Duas ofensas a um mesmo bem somente podem merecer tratamento jurídico-penal diferenciado de acordo com a maior ou menor intensidade da ofensa, ou com a maior ou menor culpabilidade do agente. Se não se interpretar o parágrafo único do art. 2 o., da Lei n.º 10.259/01 como derrogador do art. 61, da Lei n.º 9.099/95, serão corriqueiras as injustiças práticas, como por exemplo conviver-se-á com processo e julgamento de autor de fato típico definido como desacato a policial federal ocorrendo perante o Juizado Especial Federal, ao passo que o mesmo fato, 1
se praticado contra soldado da Polícia Militar, processar-se-á na Justiça Comum, sem que o autor do fato possa ser beneficiado dos institutos despenalizadores da Lei n.º 9.099/95. Deve-se concluir, então, que o art. 61, da Lei n.º 9.099/95 foi derrogado pelo art. 2 o., parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01, cuja redação é a seguinte: Art. 2 o.... Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.. Com o advento dos Juizados Especiais Criminais na esfera federal, face à impossibilidade constitucional de se manter no ordenamento jurídico brasileiro uma definição para infração de menor potencial ofensivo para a Justiça Estadual e outra para a Federal, hoje são regidas pelo procedimento previsto na Lei n.º 9.099/95: todas as contravenções penais, todos os crimes a que a lei comine pena máxima até dois anos, cumulativa ou alternativamente com pena de multa, sendo certo que não importa qual o procedimento previsto na lei processual. A aplicabilidade do conceito mais abrangente previsto na lei que instituiu os Juizados Especiais Federais, no âmbito estadual, é harmonicamente admitido na doutrina, assim como já podemos colacionar as decisões pioneiras sobre a matéria, como por exemplo a seguinte: A Lei n.º 10.259/01, não há dúvida, alargou o conceito dos chamados crimes de menor potencial ofensivo, de modo a introduzir na categoria os delitos para os quais a norma penal comina pena máxima de dois anos. (...) Em primeiro lugar, todos os tipos penais que se enquadrem nessa categoria devem se submeter ao procedimento sumaríssimo previsto para as infrações de menor potencial ofensivo (...). Em segundo lugar, o Juizado Especial Criminal é o competente para conhecer das causas relativas aos crimes de menor potencial ofensivo. (...) Em terceiro lugar, a nova lei não reproduz a exceção prevista na norma anterior. Assim sendo, não exclui, como faz o art. 61, da Lei n.º 9.099/95, os delitos para os quais a persecução penal depende de procedimento especial. (...) Evidente (...) que afronta a garantia constitucional da igualdade e da legalidade se referida lei tiver aplicação apenas no âmbito da Justiça Federal. Resta enfrentar, por fim, a possibilidade da aplicação da nova lei, no período da vacatio legis, já que, não há dúvida, traz situação mais favorável. A retroatividade de lei mais benigna, garantia constitucional (...) tem aplicação imediata (art. 5 o., XXXIX, XL 1 o, CF; art. 2 o., parágrafo único, CP). Seria ademais inútil e ineficaz deixar de aplicar a norma mais benigna na vacatio legis diante da garantia constitucional da retroatividade da lei penal. (...) Converte-se o julgamento em diligência para que seja aplicada ao apelante, no que couber, os dispositivos da Lei n.º 10.259/01. (TACrim/SP, Ap. n.º 1.282.595/5, 6 a C.Crim., rel. Juíza Angélica de Almeida, j. 28.11.01, v.u.). Na doutrina, temos a opinião de Damásio de Jesus, Luiz Flávio Gomes, Alberto Silva Franco, Fernando Capez, César Roberto Bittencourt, Victor Eduardo Rios Gonçalves, Adauto Suannes, Cláudio Dell Orto, Fernando Luiz Ximenes Rocha, José Renato Nalini e Paulo Sérgio Leite Fernandes (conforme artigos publicados na 2
Internet em 31.07.01, pelo IBCCrim) e Mariana de Souza Lima Lauand e Roberto Podval (Boletim IBCCrim, outubro de 2001, pp. 22/23). 1 Certo é que o rito da Lei n.º 9.099/95 traz muitos institutos despenalizadores, de natureza jurídica material, assim como o rito é muito diverso, sendo o juízo comum incompetente para processar e julgar os crimes a que a lei comine pena máxima de dois anos, alternativa ou cumulativamente apenados com pena pecuniária. Assim sendo, não é necessário esforço argumentativo para se entender que a nova definição jurídica é indiscutivelmente mais benéfica e retroativa, por força do princípio constitucional insculpido no art. 5 o., XL, da C.R.F.B.. A competência do JECCrim é de natureza constitucional e, portanto, absoluta, nos moldes do art. 98, parágrafo único da C.R.F.B., c/c art. 2 o., parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01 e c/c art. 61, da Lei n.º 9.099/95. Pelo exposto, deve ser determinada a REMESSA de todos os processos relativos a crimes que hoje são considerados infrações penais de menor potencial ofensivo, tudo nos moldes da modificação do ordenamento jurídico pátrio, sob pena de se albergar violação direta ao princípio da isonomia e ao princípio do retroatividade da lei penal mais benigna, que são densificadores do Estado Democrático de Direito e estão insculpidos no art. 5 º, caput e XL, da C.R.F.B.. III DA IMPOSSIBILIDADE DE SER MANTIDO O DECRETO DE PRISÃO Firmada a premissa maior norteadora do nosso raciocínio, enfrentemos o caso de acusados que tenham sido capturados em flagrante, sendo suas prisões documentadas no auto próprio (APF) e que tenham resgatado vinculadamente suas liberdades, mediante o pagamento de fiança. Coloquemos, então, o complicador: imaginemos que oficial de justiça tenha deixado de citar os acusados ou que por outro motivo tenham descumprido alguma das condições impostas pela liberdade provisória mediante fiança e que tenha sido declarada quebrada a fiança com o restabelecimento do status prisional dos acusados, expedindo-se em desfavor dos mesmos mandados de prisão. A chegada da Lei n.º 10.259/01 no ordenamento jurídico brasileiro trouxe à baila uma série de questões envolvendo o conflito de leis no tempo. Se no que tange às regras processuais, a aplicabilidade da lei é imediata, sem prejuízo dos atos já realizados, por força do disposto no art. 2 o., do CPP; no que tange às regras de natureza material, o princípio regens aponta que a lei mais branda é retroativa ou ultraativa, de modo que o réu é sempre beneficiado, conforme decorre da regra constitucional insculpida no art. 5 o., XL, da C.R.F.B.. Assim, os crimes ocorridos antes da Lei 10.259/01, cujas penas máximas cominadas sejam superior a um ano e inferior a dois anos abrangem um número riquíssimo de hipóteses que merecem acurada análise para receberem justa solução. 3
Surge, então, a necessidade de ser resolvida a problemática emergente da aplicabilidade ao caso em tela do art. 69, da Lei n.º 9.099/95, cuja redação, modificada pela Lei n.º 10.455, de 13 de maio de 2002, passou a ser a seguinte: Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. A prisão é um instituto de natureza mista, posto que é regido por regras processuais, mas com nítidos e imediatos reflexos no direito fundamental à liberdade, que tem natureza material. Doutrinadores e Tribunais se degladiaram algum tempo tentando compreender o comando emergente da regra do art. 69, da Lei n.º 9.099/95. A conclusão a que se chegou é que a Lei dos Juizados Especiais Criminais não acabou com a prisão em flagrante, mas dispensou a documentação dessa prisão no auto de prisão em flagrante, já que ela será documentada no termo circunstanciado. A prisão-captura continua existindo, mas o APF só será lavrado no caso do autor do fato negar-se a assumir o compromisso de comparecer em juízo. Uma coisa é a prisão como fato jurídico e outra coisa é a documentação da prisão. 2 Ultrapassada a questão da documentação da prisão, passemos à análise das implicações materiais do dispositivo. O Professor AFRÂNIO SILVA JARDIM 3 foi muito feliz na sua conclusão sobre isso: Achamos que há prisão, a pessoa é levada presa à autoridade, mas LIVRA- SE SOLTA, como já acontece no art. 321 do Código de Processo Penal. Só que para o art. 321 do Código de Processo Penal, lavra-se o auto em flagrante e se livra o solto, NÃO HÁ LIBERDADE VINCULADA, É LIBERDADE PLENA, QUE NÃO PODE SER REVOGADA. Aqui também, documenta-se a prisão, que ocorreu com o fato jurídico, num termo circunstanciado e o autor do fato vai embora, ou é apresentado imediatamente ao juiz criminal dos Juizados Especiais Criminais. (grifamos) Assim sendo, no caso desses acusados, porque ocorrido antes da Lei n.º 10.259/01, não há que se sustentar nulidade superveniente da documentação da prisão em flagrante realizada conforme os ditames processuais da época. Até porque, as regras atinentes à documentação da prisão têm natureza jurídica processual e são imediatamente aplicadas, por força do art. 2 o., do CPP. Contudo, no que tange ao efeito material da prisão em flagrante consistente na privação de liberdade do indivíduo ou na restituição dessa liberdade de 4
forma vinculada, mediante o pagamento de fiança ou a assunção de compromisso, o princípio regens do conflito de leis penais no tempo é o da retroatividade da lei penal mais benéfica, por força do comando constitucional insculpido no art. 5 o., XL, da C.R.F.B.. Portanto, a despeito do APF permanecer válido, não há mais base jurídica para a decisão que restabelece o status prisional por força de quebra de fiança ou de compromisso, devendo ser eventuais mandados de prisão expedidos em desfavor desses acusados recolhidos, já que a liberdade é direito material que não pode mais ser excepcionado por decreto de quebra da fiança ou de compromisso, em relação a crimes dos quais os réus passaram a LIVRAREM-SE SOLTOS. Entendimento diverso viola o princípio constitucional regens do conflito de leis penais no tempo que determina a retroatividade da lei penal material mais benéfica ao acusado. Não há mais que se falar no efeito material da prisão em flagrante, mas tão-só na sua documentação, que agora se faz através de termo circunstanciado. Ex positis, antes de requerer a remessa dos autos para o Juizado Especial Criminal, deve ser pleiteado o recolhimento de eventual mandado de prisão expedido em desfavor de nosso assistido, porque a prisão passou a ser ilegal e constitucionalmente intolerável. IV - NOTAS 1 GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; in O Novo Conceito de Infração de Menor Potencial Ofensivo, publicado no Boletim IBCCrim n.º 111 de fevereiro de 2002, ano 10, pp. 01/02. 2 JARDIM, Afrânio Silva; in Direito Processual Penal, 6 a. ed., Forense, pp. 361/362 e MIRABETE, Júlio Fabbrini Mirabete; in Juizados Especiais Criminais comentários, jurisprudência e legislação, 4 a. ed., Atlas, pp. 91/92. 3 JARDIM, Afrânio Silva; in Direito Processual Penal, 6 a. ed., Forense, p. 362. 5