Controvérsias sobre a Natureza de Cristo na Antiguidade cristã



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Controvérsias sobre a Natureza de Cristo na Antiguidade cristã Daniel Alonso de Araujo 1 Resumo Durante o século V, acesos debates agitaram as Igrejas do Oriente a respeito da natureza de Cristo. As especulações teológicas procuravam responder a questão de como se realizava a união entre o Logos divino e a natureza humana assumida na incarnação. Na tentativa de responder a essa questão, duas tendências opostas se formaram nas duas grandes escolas teológicas de Antioquia e Alexandria, a saber: o difisismo e o monofisismo, respectivamente. Todavia, esses termos eram vagos, podendo compreender doutrinas condizentes ou não com a tradição cristã, dependendo do conceito que se fazia do termo physis. No auge das discussões, realizaram-se dois Concílios a fim de dirimir a questão: o de Éfeso, em 431, e o de Calcedônia, em 451. Embora tivessem definido a doutrina ortodoxa, algumas regiões não aceitaram as decisões conciliares, rompendo a comunhão eclesiástica, movidas sobretudo por questões culturais e políticas. Tendo isso em vista, o presente estudo visa explanar sobre os conceitos-chave que levaram a estas discussões dentro de seu contexto histórico, bem como suas causas e consequências. Para maior clareza, serão brevemente expostos os precedentes imediatos: as controvérsias anti-arianas, o apolinarismo e as escolas teológicas antioquena e alexandrina. Por fim, pretende-se demonstrar o quanto tais querelas que levaram aos cismas eclesiásticos se fundamentaram num problema de linguagem e de formulação, sem que a essência do dogma fosse alterada. Introdução Foi no século II que o cristianismo tomou contato com a filosofia helênica, quando alguns convertidos de cultura grega passaram a encarar a sua nova fé com as perspectivas filosóficas. O Evangelho de São João, bem como as cartas de São Paulo, continham muito material que propunha um verdadeiro diálogo da fé com a filosofia. Desse modo, os filósofos cristãos passaram a usar a linguagem filosófica para explanar e refletir o cristianismo, dando sem dúvida um sentido novo a muitos conceitos e expressões. Um dos intuitos era tornar a doutrina cristã palatável aos pensadores pagãos. Na tentativa de harmonizar os dados da revelação com os da razão, produziu acirradas controvérsias referentes aos princípios fundamentais da fé cristã: a unicidade da natureza divina na 1 O autor é formado em Letras Clássicas na área de Língua e Literatura Latina pela Universidade de São Paulo. Sua linha de pesquisa é Filosofia, História e Literatura Patrística e Medieval, abrangendo a Europa latina, as civilizações bizantina e islâmica e a cultura judaica. É membro do Grupo de Tradução e Pesquisa/CNPQ Filosofia Árabe e História do Pensamento, liderado pelo Prof. Dr. Miguel Attie Filho, da Área de Língua e Literatura Árabe (USP), no qual desenvolve uma pesquisa referente à versão latina da Metafísica de Avicena, filósofo muçulmano do século X. É colaborador da Área de Língua e Literatura Armênia da mesma Universidade.

trindade de pessoas e a incarnação do Logos divino ou na divindade de Cristo. A ideia central estava em conservar a unicidade da natureza divina tão solenemente proclamado pelo Antigo Testamento e repetido como uma profissão de fé pelos judeus: Escuta, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Único 2. Seria o Filho e o Espírito Santo uma mera manifestação do único Deus na relação com o mundo (modalismo), seria Jesus um simples homem, adotado por Deus e divinizado (adopcionismo)? Estaria o Filho e o Espirito Santo subordinados ao Pai como deuses inferiores (subordinacionismo) ou eram meras criaturas do Pai (arianismo)? Estas e outras questões agitaram os cristãos dos primeiros séculos. A mais forte corrente foi o arianismo, no século IV, que ensinava que o Logos fora criado pelo Pai e usado como instrumento para a criação do mundo. No presente estudo, abordaremos as controvérsias cristológicas do século V, que tratam de como se realizou a união do Logos divino com a natureza humana assumida na incarnação e, portanto, a questão sobre qual é a verdadeira natureza de Cristo, e suas consequências históricas. Observamos que adotamos o termo Logos ao invés de Verbo, por nos parecer mais expressivo o termo no original grego que significa discurso, razão, pensamento, quanto que Verbo não tem essa carga significativa, não sendo outra coisa que um nome próprio da segunda Pessoa divina, perdendo sua carga semântica e teológica original. Nos textos citados respeitamos os tradutores conservando o termo Verbo. I. Os Precedentes: As controvérsias anti-arianas e o apolinarismo As controvérsias anti-arianas foram as principais causas dos debates referentes à natureza de Cristo. Por isso, convém repassar rapidamente pelos dois fatos que precederam esses debates, criando a condição propícia para que surgissem, a saber: a realização do Concílio de Niceia, a doutrina de Santo Atanásio e as teses apolinaristas. I.1. Santo Atanásio e o Concílio de Niceia O primeiro Concílio ecumênico de Niceia (325) havia definido solenemente a divindade do Logos e, por conseguinte, a natureza divina de Cristo, condenando as teses arianas que considerava o Logos apenas uma criatura do Pai, embora fosse a primeira e a mais excelente, mediante a qual criou o mundo: Deus nem sempre foi Pai; houve um tempo em que era somente Deus [...] o Verbo de Deus foi feito a partir do nada; houve um tempo em que ele não existia 3. O Concílio refutou essas teses afirmando ser Cristo Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai 4. 2 Cf. Dt 6, 5. 3 Fragmenta ex Thalia, in Enchiridion Patristicum, nº 648ss, citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 77. 4 Cf. DS 150.

O arianismo foi uma das maiores crises, senão a maior, enfrentada pelo cristianismo na Antiguidade. Mesmo condenado, não se diluiu facilmente, tornando-se também uma forte facção política no interior do Império 5. Quase todos os Padres da Igreja desse período o combateram violentamente, entre outros, Santo Atanásio, Santo Hilário, São Jerônimo e Santo Ambrósio. Atanásio, bispo de Alexandria, foi praticamente a alma do Concílio de Niceia. Chamado o Campeão da ortodoxia nicena, refutou vivamente o arianismo em seus vários escritos, enfatizando sempre a divindade do Logos e sua incarnação pela assunção de um corpo: Assumiu, no entanto, um corpo como o nosso e não o fez simplesmente, mas o quis nascido de uma virgem sem pecado, imaculada, intacta. Era puro o corpo, inteiramente alheio a qualquer união humana. Sendo poderoso e criador do universo, edificou para si, na Virgem, qual um templo, um corpo. Dele se apropriou, fê-lo um instrumento para se dar a conhecer e onde habitar. E assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como estamos todos sujeitos à corrupção da morte, Ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai 6. Querendo responder aos gnósticos, a quem o corpo de Cristo era aparente 7, Atanásio enfatizou o corpo a fim de evidenciar a realidade da incarnação; insistiu no corpo como instrumento do Logos, uma peculiaridade de seu pensamento, que na tradição patrística mais antiga só se encontra em Tertuliano, e que se tornará característica da escola alexandrina, como veremos adiante. Contudo, seu silêncio à respeito da alma de Cristo, embora não a negasse, teve consequências nas discussões cristológicas posteriores. I.2. O Apolinarismo Os grandes debates cristológicos referentes à natureza de Cristo, que agitaram as Igrejas do Oriente no decorrer de todo o século V, tiveram, como precedentes, as controvérsias anti-arianas que ainda estavam bem acesas mesmo após o arianismo ter sido condenado pelo Concílio de Niceia, em 325. O ponto de partida foi dado por Apolinário quando este reagiu contra polemistas antiarianos antioquenos que realçavam excessivamente a distinção entre as duas naturezas de Cristo. Apolinário era amigo de Atanásio e fora eleito bispo de Laodiceia (361), na Síria, sua cidade 5 A corrente do arianismo foi um dos muitos elementos de romanização e cristianização dos povos germânicos, em que o cristianismo já se fazia presente desde muito cedo, como por exemplo, entre os godos. O curioso Wulfila, cristão grego de cultura goda, tendo sido sagrado bispo por Eusébio de Nicomédia, de tendência ariana, acabou por aderir ao arianismo e levou a cabo uma grande atividade missionária entre os godos, constituindo até mesmo uma Igreja gótica ariana, com uma liturgia própria, que mais tarde seria introduzida na Hispânia por ocasião da conquista visigótica, levando a um forte antagonismo entre a Igreja gótica ariana e a Igreja católica romano-hispânica. Outros povos, como os burgúndios, os ostrogodos e os longobardos, eram de fé ariana, provocando fortes dissenções com a população dominada romano-católica. Curiosamente foram bárbaros pagãos, como os francos sálios, mais tarde convertidos ao catolicismo, em que os galo-romanos, de fé católica, se apoiaram contra as investidas gótico-arianas. 6 ATANÁSIO, S., A Incarnação da Verbo, II, 8, 3-4. 7 Desde os seus primórdios, a Igreja teve de enfrentar a heresia docetista (do grego dókesis, aparência ), à qual já se refere escritos do Novo Testamento, que atribuía a Cristo um corpo apenas aparente, negando assim a realidade da incarnação e consequentemente a redenção.

natal, pela facção nicena. Era exegeta de Sagrada Escritura e seguia a escola antioquena. Ele sustentava que havia em Cristo uma única physis, isto é, natureza, entendida concretamente como princípio operativo, fonte de ação. Segundo ele, Cristo não poderia ter duas naturezas completas, pois, a união entre dois perfeitos não pode redundar em verdadeira união, mas apenas numa justaposição. Levantava-se, então, a seguinte questão: Que tipo de homem é Jesus Cristo, visto ser ele o Logos incarnado? Apolinário procurava responder da seguinte maneira: Não confessamos que o Verbo de Deus veio num homem santo, como acontecia com os profetas, mas que o próprio Verbo se fez carne sem assumir um intelecto humano, um intelecto mutável e prisioneiro de raciocínios sórdidos, sendo Ele próprio o intelecto divino, imutável e celeste. O Filho, que é uno, não é duas naturezas, uma adorável e outra não adorável, mas uma só natureza, a do Verbo de Deus incarnado 8 e adorado, juntamente com a carne dele, numa única adoração 9. Apolinário radicalizara a doutrina de Atanásio ao afirmar que o Logos assumira uma natureza incompleta, privada de nous, isto é, do principio de racionalidade ou, em outras palavras, de uma alma intelectiva ou espiritual. O próprio Logos fazia às vezes de alma racional em Jesus. Para ele, se Cristo tivesse uma natureza humana completa, não seria impecável, pois, tendo o livre arbítrio, que é princípio de pecado, não estaria capacitado para realizar nossa redenção. A partir disso, Apolinário cunhou a fórmula que se tornou a base das disputas que se seguiram: Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, uma só natureza do Logos divino incarnado. A tese apolinarista provocou oposição de várias partes. O princípio invocado por São Gregório Nazianzeno converteu-se na divisa da ortodoxia: O que não foi assumido, não foi remido 10, isto é, se o Logos não assumiu integralmente a natureza humana, esta não foi integralmente salva. Atanásio, em diversas obras suas, respondeu a Apolinário segundo os mesmos princípios: O próprio Verbo se fez carne, embora continuasse a existir na condição de Deus. Em favor dos homens, Ele se fez homem segundo a carne em Maria [...] Este Salvador não teve um corpo inanimado ou carente de sentidos, nem um corpo privado de alma. Não era possível que existisse, no Senhor feito homem por causa de nós, um corpo sem alma, pois por Ele foi realizada a salvação não só do corpo, mas também da alma [ ] Nem devemos distinguir aquele que ressuscitou Lázaro, e aquele que perguntou a respeito de Lázaro, pois era o mesmo aquele que disse como homem: Onde está sepultado Lázaro? e aquele que, como Deus, o ressuscitou 11. 8 O grifo é nosso. Essa frase será a base para as disputas cristológicas que se seguiram. 9 Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 79. 10 Cf. Epístola 101,87. 11 ATANÁSIO, S., Tomo aos Antioquenos, 7.

O apolinarismo foi condenado pelo Sínodo de Alexandria, em 362, como também pelo Papa Dâmaso I, em 377 e 382, e, em 381, a condenação foi confirmada pelo Concílio ecumênico de Constantinopla I. Todavia, embora enfraquecido o apolinarismo, a fórmula uma só natureza do Logos divino incarnado foi divulgada pelos discípulos de Apolinário como sendo de autoria de Santo Atanásio. Isso rebentaria mais tarde na crise monofisita. II. As Escolas teológicas: Alexandria e Antioquia Não é unívoco o entendimento do conceito de escola quando nos referimos às duas linhas teológicas que se desenvolveram nos dois grandes centros eclesiásticos do Oriente cristão, Alexandria e Antioquia. Enquanto que, na primeira, se refere à uma instituição acadêmica sob a autoridade episcopal, a segunda é, antes de tudo, uma corrente de pensamento que se constitui em torno de algumas personalidades de relevo, geralmente bispos e monges, não necessariamente ligados juridicamente à Sé antioquena, mas sob sua zona de influência espiritual, ou seja, as Igrejas de cultura sírio-helênicas. Cada uma das duas escolas desenvolveu sua própria cristologia partindo de premissas relativamente opostas entre si, provocando um certo antagonismo ideológico, que foi a causa das inflamadas discussões em torno da natureza de Cristo no decorrer do século V. Contudo, a oposição das duas linhas cristológicas era somente aparente e, portanto, não se excluíam mutuamente, sendo complementares, porquanto cada qual especulava uma face da questão, ao mesmo tempo que se utilizavam de métodos distintos. Ao serem radicalizadas, ambas as escolas deram origem a doutrinas heterodoxas diametralmente opostas. A fim de deixar mais claro a compreensão dessas querelas teológicas em suas causas e circunstâncias, faremos uma breve exposição histórica e de conteúdo das referidas escolas, procurando estruturar seus conceitos e indicar seus métodos e pressuposições e, em seguida, sintetizar tudo num quadro sinótico com o intuito de facilitar o entendimento de modo ilustrativo. II.1. Escola de Alexandria Fundada por Alexandre Magno em 331 a.c., a cidade de Alexandria (Egito) se constituiu no centro de uma brilhante vida intelectual onde se fundiram as culturas oriental (persa), egípcia e grega. Lá, a cultura judaica sofreu forte influencia helenística cuja síntese filosófica foi feita por Fílon, filósofo judeu de Alexandria a quem se reconhece como um dos fundadores do neoplatonismo. Sabe-se que o cristianismo se estabeleceu nesta cidade em fins do século I. Atribui-se a fundação da Igreja alexandrina a São Marcos evangelista, discípulo do apóstolo Pedro e por este

enviado de Roma, o que parece plausível embora pouco documentado 12. O cristianismo aí se desenvolveu a partir das sinagogas helenistas da grande cidade 13, mas foi bem lento, pois, ainda no século III, parece que a comunidade cristã pouco contava em Alexandria. Como cidade cosmopolita, uma diversidade de crenças de caráter esotérico e pseudofilosófico pululavam em toda parte. Com o fim de desenvolver uma formação cristã mais sólida, por volta do século III, foi fundada uma escola catequética sob a autoridade do bispo da Igreja local, voltada sobretudo aos catecúmenos, isto é, aos que estavam se preparando para receber o batismo. O mais antigo diretor da escola foi Panteno, tido, por alguns, como o fundador. Contudo, foram Clemente e Orígenes aqueles que configuraram o método e a linha de pensamento da escola. O meio ambiente em que se desenvolveu lhe imprimiu seus traços característicos: marcado interesse pela investigação metafísica do conteúdo da fé, preferência pela filosofia de Platão e a interpretação alegórica das Sagradas Escrituras 14. Os alexandrinos davam preferência à cristologia descendente que, inspirada no Evangelho de São João, partia da preexistência divina do Logos e da sua incarnação, colocando a natureza humana (de Cristo) como instrumento da divindade. Sendo assim, a redenção constitui na divinização do cristão que participa da graça divinizante de Cristo e toda a vida de Cristo é uma constante santificação da natureza humana. É nesse contexto que surge na Igreja de Alexandria, já no terceiro século, a festa da Teofania, isto é, da manifestação divina de Cristo no momento do Batismo por João, manifestação aos magos e aos pastores, manifestação no primeiro milagre de Caná (a transformação da água em vinho), fixada a 6 de Janeiro 15. II.2. Escola de Antioquia Fundada por Seleuco I Nicator, filho de Antíoco, em 300 a.c., a cidade de Antioquia (Síria), antiga capital da dinastia selêucida, era um grande centro cosmopolita de cultura helênica onde a 12 Antigas tradições que remontam ao século II, e portanto bem próximas dos eventos, supõe a ida de São Marcos a Alexandria após o martírio de São Pedro no ano 64, ou um pouco antes, por ocasião das perseguições contra os cristãos movidas por Nero. Marcos teria levado consigo o Evangelho que compôs a partir da pregação do apóstolo Pedro, por volta do ano 42, ligando as duas Igrejas, Roma e Alexandria, à herança apostólica petrina. Recentes descobertas arqueológicas tendem a confirmar os antigos relatos. 13 De fato, com a expansão cristã nessa cidade, houve cada vez menos judeus até que, poucos séculos depois, já haviam desaparecido totalmente. 14 QUASTEN, J. Patrologia I, Madrid, p. 317. 15 Disseminada pouco a pouco em todas as Igrejas orientais e chegada a Roma somente no quarto século quando lá se estabelecia a festa da Natividade de Cristo (Natal), a 25 de Dezembro, em que se comemorava o nascimento físico do Salvador, celebrado como a verdadeira luz do mundo em franca oposição ao culto pagão do Sol invictus. No quinto século, a festa do Natal foi formalmente introduzida na liturgia bizantina. Enquanto a Igreja romana celebrava no Natal o nascimento físico e na Teofania ou Epifania a manifestação aos magos, a Igreja grega celebrava no Natal a manifestação aos magos e na Teofania, o Batismo de Cristo. A festa do Batismo só seria introduzida no rito romano no século XX, após a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II, no domingo que se segue à Epifania. No caso da Igreja armênia, não foi adotada a festa do Natal, conservando somente a Teofania a 6 de Janeiro, em que se comemora numa única festividade todo o mistério da incarnação e manifestação divina de Cristo.

população falava predominantemente o grego e o siríaco. Era uma das cidades mais populosas do Oriente. Antioquia era chamada também Epidafne, por causa do bosque de Dafne que se encontrava nos arredores e que constituía um dos principais centros religiosos helenísticos (pagãos). O cristianismo chegou lá muito cedo, formando-se a partir de judeu-cristãos helenistas provindos de Jerusalém 16. No Livro dos Atos dos Apóstolos, relata-se a conversão de um centurião romano e sua família pelo Apóstolo Pedro 17, os primeiros não judeus convertidos à fé cristã. Foi nesta cidade que pela primeira vez se usou a alcunha de cristãos 18, não se sabe ao certo como e porque. A primitiva comunidade cristã de Antioquia era mista: conviviam pacificamente fieis provindos tanto do judaísmo 19 como dentre os gregos 20 e cujas práticas judaicas foram praticamente abolidas, provocando um certo desentendimento com a comunidade judaico-cristã de Jerusalém 21. O apóstolo Pedro se fixara em Antioquia por um certo tempo, estabelecendo lá sua sede antes de se transferir para Roma e o apóstolo Paulo permaneceu um ano lá pregando antes de ser enviado para suas viagens missionárias. Tudo isso contribuiu para fazer de Antioquia um dos centros do cristianismo ao lado de Roma e Alexandria, ou seja, o princípio apostólico e petrino. A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samósata, em 312, em direta oposição aos excessos e fantasias do método alegórico de Orígenes e dos alexandrinos. Esta escola centrava cuidadosamente a atenção no próprio texto e encaminhava seus discípulos para uma interpretação literal e o estudo histórico e gramatical da Escritura. Utilizava-se dos métodos da filosofia aristotélica, mais realista e empírica. A escola antioquena atingiu o seu apogeu com Diodoro de Tarso em fins do século IV. São João Crisóstomo foi seu discípulo mais ilustre e Teodoro de Mopsuéstia, o mais extremista. A tendência racionalista da escola antioquena foi causa do surgimento de muitas heresias, por exemplo, Luciano, o fundador, foi o mestre de Ário. A cristologia antioquena era a ascendente, partia da humanidade de Cristo sob a qual se velava sua divindade cuja manifestação paulatina se culmina na ressurreição, inspirando-se, desse modo, na cristologia paulina da redenção. Esta se dá sobretudo pela morte de Cristo, como sacrifício expiatório, e sua ressurreição pela qual venceu o poder da morte e do pecado. A Escola antioquena fazia nítida distinção entre a humanidade e a divindade de Cristo. II.3. Duas fontes do pensamento cristão Por métodos diferentes, as duas escolas teológicas contribuíram para a formação do 16 Cf At 11,19-20. 17 Cf. At 10, 1-48. 18 Cf. At. 11, 26. 19 No sentido de povo judeu, nação judaica. 20 No sentido amplo de não judeus, pagãos. 21 Os cristãos de Jerusalém eram predominantemente de origem judaica e exigiam que todos os convertidos aceitassem a circuncisão e as práticas judaicas. Isso levou a uma certa desconfiança para com a comunidade antioquena que cada vez mais abandonava todas as práticas judaicas e aceitava numerosos gregos, pagãos, ao batismo.

pensamento teológico e filosófico do cristianismo antigo, pois, nem todas as suas teses eram tão antitéticas que não poderiam se complementar e moderar os excessos que uma ou outra parte poderiam tomar. Enquanto que a corrente alexandrina tendia ao misticismo, a antioquena se encaminhava ao racionalismo, ambas as tendências igualmente perigosas se radicalizadas e ambas foram berços das correntes heterodoxas que se digladiavam em torno da questão da natureza de Cristo e que mais tarde foram agrupadas sob os termos monofisismo e difisismo. Convém lembrar que essas duas correntes de pensamento não estavam restritas aos complexos geográficos que lhe deram origem: o Egito e a Síria, respectivamente. Orígenes, o grande mestre alexandrino, fundou mais tarde uma escola em Cesareia da Capadócia que também se tornou centro de irradiação do pensamento alexandrino. Os pensadores mais importantes que lá se formaram, foram: São Basílio, São Gregório Nazianzeno e São Gregório de Nissa, os chamados Padres capadócios, que juntamente com São João Crisóstomo, de tradição antioquena, fundamentaram a tradição teológica da Igreja bizantina, sintetizada no século VIII por São João Damasceno, em pleno domínio islâmico. Quanto ao pensamento estritamente antioqueno, teve seu desenvolvimento sobretudo entre os cristãos sírio-orientais da Pérsia por influência da corrente nestoriana, embora não tivessem adotado exatamente as teses heterodoxas de Nestório. Todavia, a sua preferência pelo cultivo da filosofia aristotélica e de uma teologia racionalizante esteve na base da formação do mutazilismo 22 e na origem da recepção das obras filosófico-aristotélica pelos árabes. Podemos sintetizar o que até aqui foi dito sobre as duas escolas teológicas, alexandrina e antioquena, no seguinte quadro sinótico: E s c o l a s T e o l ó g i c a s Alexandrinos Antioquenos Linha exegética Alegórica Literal Método filosófico Platônico Aristotélico Cristologia Descendente (joaneia) Ascendente (paulina) III. Monofisismo x Difisismo Sob esses dois termos um tanto genéricos, monofisismo e difisismo, colocam-se várias teses, umas compatíveis, outras não, com a ortodoxia cristã, dependendo de como se entende o termo grego physis e, consequentemente, como se aplica em relação à pessoa de Cristo. Não sendo o caso de aprofundar a significação de physis na filosofia helênica, basta para nós, de momento, entendê-la por natureza, enquanto expressão da essência ou condição própria de um ser. 22 Corrente teológica racionalista do Islam que berçou a formação da falsafa, a filosofia entre os árabes.

A questão medular que provocou as grandes discussões cristológicas estava no conceito que os teólogos heleno-cristãos faziam de physis ou natureza humana. Havia duas tendências, não necessariamente ligadas a uma ou outra escola, que se defrontavam: a) physis é a natureza em sentido concreto como princípio operativo ou fonte de ação; a natureza humana consiste num corpo orgânico animado cujo principio vital (psyché, alma) é idêntico a um nous (intelecto, espírito, mente); b) physis é a natureza no sentido individual concretamente subsistente num sujeito agente, num eu ; acrescenta à definição anterior a noção de subjetividade e nesse sentido physis equivale a hypostasis (subsistência, subsistente, pessoa). A partir disso, levantava-se a seguinte questão: a união do Logos divino com a natureza humana assumida na incarnação resultou em Cristo duas physis (difisismo) ou uma physis (monofisismo)? A resposta dependia do conceito que se fazia de physis e que podemos reduzir a quatro teses: duas monofisitas e duas difisistas, em que cada uma apresentava uma tese ortodoxa e outra heterodoxa e, portanto, havia duas teses ortodoxas e duas heterodoxas. Abaixo serão expostas as teses em questão. III.1. O Monofisismo O termo monofisismo 23 foi cunhado muito tardiamente para designar a doutrina da única natureza de Cristo. Todavia, isso se presta a equívocos, pois, sendo um termo genérico, abarca pelo menos três teses distintas e, até certo ponto, contrárias: o apolinarismo, o miafisismo e o eutiquianismo. Pode-se, no entanto, afirmar que o monofisismo não é tanto uma doutrina, mas uma tendência ligada à escola alexandrina que colocava em evidência a divindade de Cristo em relação à sua humanidade, vista como instrumento passivo do Logos 24. O ponto de partida das teses monofisitas estava na polivalente fórmula de Apolinário, que seus discípulos atribuíram a Santo Atanásio: Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, uma só natureza do Logos divino incarnado. Como já vimos, Apolinário negava que Cristo possuía uma alma racional, função assumida pelo Logos, e, portanto, tinha uma natureza humana incompleta. Quanto ao miafisismo e ao eutiquianismo, estas teses surgiram como réplica às tendências extremadas dos antioquenos que se ocupavam de tal modo em distinguir a divindade da humanidade de Cristo, colocando em risco a noção da unidade de pessoa. III.1.1. São Cirilo de Alexandria e o miafisismo Cirilo, arcebispo de Alexandria, aceitando a fórmula apolinarista como sendo de Santo 23 Monofisismo, do grego monos, um só, e physis, natureza. 24 Lembremos que Santo Atanásio considerava o corpo de Cristo como instrumento do Logos.

Atanásio, quis dar-lhe uma interpretação ortodoxa por ocasião da controvérsia nestoriana. Esta defendia a tese de que, em Cristo, havia duas pessoas distintas, uma divina e outra humana. Cirilo, entendendo physis como equivalente a hypostasis (pessoa), afirmava que as duas naturezas (physis), antes da união, resultou da união de ambas em uma só natureza (mia physis) subsistente, uma hypostasis, o Logos, em que todas as características da divindade e da humanidade se unem substancialmente num único sujeito, Cristo, Deus e homem. A fórmula cirílica foi adotada pelo Concílio de Éfeso como doutrina ortodoxa mediante a qual o nestorianismo foi condenado como heresia. Posteriormente, a doutrina cirílico-efesita foi denominada miafisismo, aludindo às primeiras palavras gregas da fórmula apolinarista: mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee. A seguir, um importante trecho da carta de São Cirilo aprovada pelo Concílio como expressão da reta fé: Não afirmamos que a natureza [physis] do Verbo se tenha transformado para tornar-se carne. Também não afirmamos que a natureza do Verbo se tenha transformado para tornar-se um homem completo, constituído de corpo e alma. Mas professamos que o Verbo uniu a si hipostaticamente 25 [kath'hypostasin] uma carne animada por uma alma racional e se fez homem de modo inexplicável e incompreensível, e assim assumiu o título de Filho do Homem não por simples vontade ou benevolência, nem simplesmente porque assumiu uma pessoa. Afirmamos, além disso, que, embora as duas naturezas sejam diferentes uma da outra, elas se uniram em verdadeira união, de tal modo que de ambas resulta um só Cristo e Filho. Isto não quer dizer que desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só Senhor e Cristo [ ] Não se diga que num primeiro momento nasceu da Santa Virgem um homem, no qual, num segundo momento, desceu o Verbo 26. Mas, sim, afirmamos que desde o seio materno o Verbo se uniu à carne humana numa concepção carnal, de tal maneira que tornou sua a geração carnal [ ] E assim os Santos Padres não hesitaram em chamar Theotókos 27 a Santa Virgem. Isto não significa que a natureza do Verbo ou a sua Divindade tenha tido origem no seio da Santa Virgem, mas, sim, que foi gerado por ela o corpo santo, animado e racional, ao qual se uniu hipostaticamente 28 [kath'hypostasin] o Verbo; em consequência, este foi gerado segundo a carne 29. III.1.2. O Eutiquianismo ou monofisismo estrito 25 Isto é, no plano da pessoa. 26 Refere-se ao ebionismo ou adopcionismo, doutrina herética do século II cuja tese era de que Jesus era um homem comum e que por ocasião do batismo por João, fora revestido de uma energia divina tornando-se Cristo e sendo adotado por Deus como Filho. 27 Literalmente: Aquela que dá à luz Deus. 28 Isto é, segundo a pessoa. 29 DS 250-251.

Em meio aos debates anti-nestorianos, Eutíquio, arquimandrita 30 de um mosteiro de Constantinopla, um monge piedoso, mas pouco versado em teologia, no intuito de seguir São Cirilo, afirmava que a partir da incarnação do Logos só ficava uma natureza em Cristo, a divina. Segundo ele, Cristo não era consubstancial com os homens, isto é, não compartilhava da mesma substância ou natureza com eles, das duas naturezas antes da união, resultava uma natureza após a união, pois a divina teria absorvido a humana. Por conseguinte, o corpo de Cristo já não seria igual ou consubstancial ao nosso, pois teria sido divinizado. Para ilustrar essa tese, usava-se da seguinte imagem: assim como uma gota de mel lançada na imensidão do oceano aí se dissolve totalmente, da mesma forma a humanidade de Cristo se dissolveu na divindade do Logos, que a assumiu 31. O pensamento de Eutíquio era mais confuso do que errôneo. Faltava-lhe clareza em certos conceitos, no entanto, sua tese foi condenada por ter negado a realidade humana de Cristo. Mesmo assim, o eutiquianismo propagou-se rapidamente, especialmente entre os monges e os cristãos mais simples, pois, tendo Cristo por modelo, propunha-se a divinização de todos os cristãos fieis e, portanto, uma doutrina mística neoplatonizante. Por afirmar a única physis (divina) após a incarnação, sem nenhuma noção de dualidade divino-humana, ao eutiquianismo convém propriamente o termo de monofisismo. Essa corrente heterodoxa deu origem a numerosas seitas populares, muitas das quais com doutrinas um tanto extravagantes, que se multiplicaram nas regiões desérticas da Síria e do Egito, e que certamente estiveram na origem do sufismo 32. III.1.3. Um quadro sinótico dos monofisismos No intuito de salvaguardar a unidade de Cristo após a incarnação do Logos, os teólogos alexandrinos, em polêmica com os antioquenos, desenvolveram teses que foram agrupadas sob o termo monofisismo. O problema central estava na interpretação da obscura fórmula apolinarista: Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, uma só natureza do Logos divino incarnado, atribuída falsamente a Santo Atanásio, dando a ela, desse modo, uma autoridade indiscutível. Sendo assim, tal fórmula deveria ser interpretada de modo coerente com a fé cristã que, ao mesmo tempo, se distanciasse do apolinarismo. Daí, duas teses foram formuladas, uma de caráter erudito, ortodoxa, e outra de caráter popular, confusa e herética: o miafisismo e o eutiquianismo respectivamente. O miafisismo, nome dado à fórmula de São Cirilo, é uma doutrina monofisita somente na aparência. A doutrina confirmada pelo Concílio de Éfeso, se bem observada no trecho de carta de 30 Arquimandrita, do grego archós, superior, mandra, monastério, o mesmo que abade nas Igrejas gregas. 31 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 85. 32 Sufi, corrente mística islâmica. Vale lembrar que a modalidade de cristianismo conhecida por Maomé e pelos primeiros muçulmanos foram certamente os monofisitas e nestorianos.

São Cirilo acima exposta, afirma a dualidade divino-humana de Cristo: Isto não quer dizer que desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só Senhor e Cristo. A fórmula apolinarista pseudo-atanasiana, porém, era um obstáculo à afirmação da união de duas physis em Cristo numa única hypostasis. E, por outro lado, uma afirmação difisista pareceria incorrer no erro dos antioquenos que afirmavam as duas physis ou pessoas em Cristo. Era necessário uma maturação das ideias, algo sempre muito arriscado. Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das três teses monofisitas: Monofisismo (alexandrinos) heterodoxo ortodoxo apolinarismo eutiquianismo miafisismo Cristo não possui uma natureza humana completa, uma alma racional, função assumida pelo Logos. A natureza humana de Cristo foi absorvida pela divina na incarnação, restando apenas uma natureza, a divina. A divindade e a humanidade realizam uma perfeita união hipostática, isto é, substancial, na única pessoa do Logos divino incarnado. III.2. O Difisismo O termo difisismo, diofisismo ou diafisismo designa a doutrina da escola antioquena das duas naturezas de Cristo. Possui suas raízes nos primeiros escritos cristãos que distinguem, em Cristo, um elemento divino (pneuma-logos), e um elemento humano (sarx) 33. Com as disputas contra o paganismo e as heresias dos séculos II e III, reforçou-se a ideia de uma dualidade em Cristo: Melitão de Sardes falava de duas ousiai, isto é, duas essências ou substâncias ; Origines, de duas physis ou atributos e Tertuliano, de duas substantiae, substâncias ou naturezas. A controvérsia anti-ariana contribuiu para o desenvolvimento da concepção de geração divina distinta da humana, induzindo à elaboração mais acurada dos conceitos das duas naturezas e das duas consubstancialidades. Levantava-se então o problema de como se realizam a união das duas naturezas num único Cristo. A escola antioquena procurava ressaltar a natureza humana distinguindo-a da divina em franca oposição às teses alexandrinas, quer contra o apolinarismo, quer contra Cirilo de Alexandria. A tese difisista tem como principais mentores Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia, discípulo do anterior. Teodoro entendia por physis uma natureza completa subsistente num sujeito agente. Portanto, reconhecia, em Cristo, duas naturezas distintas e dois sujeitos. Preocupado, todavia, com o divisionismo que a doutrina poderia redundar e que era criticada pelos apolinaristas, negava a afirmação de haver dois Senhores e dois Filhos. Ensinava que as duas naturezas estão 33 Termos gregos: pneuma, espírito ; logos, razão, intelecto, pensamento ; sarx, corpo.

unidas de modo inefável e eternamente indissolúvel num único prosopon 34, que a união não destrói a distinção das physis, nem a distinção não impede que as duas physis sejam um Cristo. Na verdade, porém, existem duas teses difisistas distintas: o nestorianismo e a doutrina do Concílio de Calcedônia, fundada na definição do Papa Leão I, o Grande. A primeira, heterodoxa, é uma radicalização das teses de Teodoro de Mopsuéstia; a segunda, ortodoxa, assemelha-se à doutrina cirílico-efesita, dita em termos antioquenos, e se aproxima da fórmula de união assinada por São Cirilo e por João de Antioquia após o Concílio de Éfeso, que trataremos a seguir. III.2.1. O Nestorianismo Nestório, piedoso monge e sacerdote de Antioquia, era discípulo de Teodósio de Mopsuéstia. Em 427, foi nomeado arcebispo de Constantinopla. Era conhecido por suas excelentes qualidades de orador e pelos ataques violentos aos hereges. Levando as teses difisistas ao extremo, condenou a devoção popular, muito difundida entre os monges e os fieis, a Maria Mãe de Deus, Theotókos, pois a considerava apolinarista e não dava, segundo ele, o devido reconhecimento à natureza humana de Cristo. Ensinava que Maria era Christotókos, Mãe de Cristo 35, ou seja, Mãe de Jesus em sua união com o Logos, mas proibia que se dissesse anthopotókos, mãe do homem Jesus, para se evitar o perigo do adopcionismo. Eis um texto de Nestório: Com frequência é suscitada entre nós uma dificuldade: Deve-se falar da Theotókos, isto é, de uma mulher que tenha gerado Deus, Maria, ou antes se deve falar de uma mulher que deu à luz um homem, anthropotókos? Mas será que Deus tem mãe? [ ] Uma criatura não pode dar à luz o Criador, mas deu à luz um homem, instrumento da Divindade [ ] Mas mesmo assim, Jesus é um Deus para mim, visto que encerra Deus. Adoro o vaso por causa do seu conteúdo, a vestimenta por causa do que ela cobre 36. A sua preocupação, como bom antioqueno, é a de salvaguardar, contra apolinaristas e arianos, a integridade da natureza humana de Cristo, entendida como completa personalidade, capaz de livre iniciativa, enquanto os alexandrinos a reduziam a mero instrumento passivo do Logos. Por isso, ele mantém cuidadosamente distintas as propriedades das duas naturezas e os nomes que a estas se referem. Mas, não obstante a distinção, ele recusou a acusação de Cirilo de pregar dois Cristos, reafirmando constantemente a indivisibilidade e a unidade de Cristo. Para indicar a união das duas naturezas, ele fala também de unidade inefável, mas prefere synápheia, cunjunção, para evitar que a união fosse considerada mistura. Ele adota a terminologia tradicional antioquena e fala do homem assumido pelo Logos, de templo em que o Logos veio morar, isto é, uma 34 Prosopon, em grego: aparência, aspecto externo, figura, e por extensão, pessoa, mas em sentido não equivalente a hypostasis. 35 Cf. nota 26. Tokein, parir, dar a luz. 36 Sermão 9. Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 81.

terminologia que realçava a distinção entre o homem e Deus. III.2.2. A Fórmula de União A fórmula cirílica adotada pelo Concílio de Éfeso não agradara a muitos bispos antioquenos, aos quais pareceram não fazer clara distinção entre a divindade e a humanidade de Cristo e consideravam perigosa a fórmula Theotókos por parecer desviar-se do conceito de Deus imutável. Por isso, em 433, estabeleceu-se um acordo entre João de Antioquia e o arcebispo de Alexandria, Cirilo, que assinaram uma fórmula dita de União, provavelmente redigida por Teodoreto de Ciro. Essa fórmula procura expressar a ortodoxia de Éfeso em termos antioquenos, afastando-se do nestorianismo. Eis o seu trecho principal: Confessamos que nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Único de Deus, é Deus perfeito e homem perfeito, [composto] de alma racional e corpo, gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a Divindade, e nos últimos dias por nós e pela nossa salvação, nascido da Virgem Maria segundo a natureza humana. Ele é consubstancial com o Pai por sua Divindade, e é consubstancial conosco por sua humanidade. Já que havia a união das duas naturezas, confessamos um só Senhor, um só Cristo e um só Filho. Visto que compreendemos esta união realizada sem confusão de uma parte com a outra, confessamos que a Santa Virgem é Theotókos, pois o Verbo de Deus se incarnou e se fez homem, e desde o momento de sua concepção, uniu a si o templo que dela assumiu. Quanto às expressões dos Evangelhos e dos Apóstolos concernentes ao Senhor, sabemos que os teólogos ora as usam no singular como referentes à única pessoa de Jesus, ora usam no plural aludindo às duas naturezas; atribuem à Divindade de Cristo as que se aplicam à Deus, e a sua humanidade as que exprimem humilhação 37. Esta fórmula, ao expressar a ortodoxia de Éfeso, serve-se de um vocabulário apto a não ferir os adversários de Cirilo. Assim, por exemplo, não fala de uma união kath'hypostasin, hipostática, mas professa a união, sem confusão, de duas naturezas. Não fala de uma natureza do Logos feito carne, expressão de Apolinário que Cirilo julgava ser de Santo Atanásio. É perceptível a réplica a Apolinário na afirmação Deus perfeito e homem perfeito, [composto] de alma racional e corpo. A fórmula fala de duplo nascimento: um a partir do Pai, o outro a partir da Virgem Maria, mas reconhece um só Senhor, Filho e Cristo. Faz uma alusão também ao Concílio de Niceia quando menciona a consubstancialidade com o Pai e a consubstancialidade conosco. III.2.3. São Leão Magno e o Concílio de Calcedônia Em reação à controvérsia eutiquiana (monofisista), o Papa Leão I dirigiu uma carta dogmática ao arcebispo Flaviano de Constantinopla, conhecida como Tomus ad Flavianum 38, em 37 DS 271-273. 38 Epístola XXVIII do epistolário leonino.

que esclarecia a questão das naturezas de Cristo nos termos da teologia latina. Este documento tornou-se referência à toda Igreja ocidental e base à definição promulgada pelo Concílio de Calcedônia. Eis um importante trecho: Salvaguardadas, pois, as propriedades de ambas as naturezas e substâncias, unidas numa só Pessoa, foi assumida a humildade pela majestade, pela força a fraqueza, pela eternidade a mortalidade. Para obter o débito de nossa condição, a natureza inviolável uniu-se à passível. Assim, como remédio conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus, de um lado podia morrer, e doutro lado não o podia. Nasceu o verdadeiro Deus com a íntegra e prefeita natureza de um verdadeiro homem, todo o que é seu, todo inteiro o que é nosso. Por nosso entendemos aquilo que o Criador fez em nós no início e que assumiu para ser reparado [...] O aniquilamento pelo qual o invisível se fez visível e o Criador e Senhor de todas as coisas quis ser um dos mortais, era compassiva, condescendência não deficiência de poder. Quem na natureza de Deus criou o homem, fez-se homem na condição de servo. Cada uma das duas naturezas conservou, sem alteração suas propriedades. Como a natureza de Deus não eliminou a natureza de servo, assim a natureza de servo não diminuiu a natureza de Deus [...] Dignou-se o Deus impassível tornar-se homem passível, o imortal submeter-se às leis da morte [...] Recebeu o Senhor de sua mãe a natureza, mas isenta de culpa. A natureza humana de nosso Senhor Jesus Cristo, nascido do seio da virgem, não difere da nossa por ter tido ele admirável natividade. Sendo verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem. Nesta unidade não há mentira, pois mutuamente se coadunam humildade humana e grandeza divina. Como Deus não se altera por tal misericórdia, o homem não desaparece, absorvido pela natureza divina 39. Age cada uma das naturezas em consonância com a outra, quando a ação é peculiar a uma delas. O Verbo opera o que lhe é próprio, e a carne executa o que lhe compete. Uma resplandece pelos milagres, enquanto a outra é sujeita aos opróbrios. Como não se aparta o Verbo da igualdade da glória paterna, a carne não perda a natureza do gênero humano. Um e o mesmo, convém repeti-lo, é verdadeiramente Filho de Deus e verdadeiramente filho do homem 40. São Leão Magno reafirma a consubstancialidade de Cristo com o Pai e a consubstancialidade do mesmo com Maria, donde resultam duas naturezas completas não mutiladas nem confundidas entre si. Cada uma dessas naturezas realizou, durante a vida terrestre de Jesus, o que lhe era próprio. Portanto, uma doutrina difisista. Todavia, o sujeito responsável pelos atos de uma ou outra natureza, era Deus Filho, o Logos divino. Desse modo, a doutrina do Papa Leão I se afasta do nestorianismo ou das teses antioquenas extremadas, rejeita o apolinarismo e o eutiquianismo. O eutiquianismo foi condenado pelo Concílio de Calcedônia (451), durante o qual foi lida solenemente o Tomus ad Flavianum, que juntamente com a Fórmula de União, foi base para a 39 Alusão à tese de Eutíquio. O grifo é nosso. 40 LEÃO MAGNO, S., Tomo (28) a Flaviano. In: Sermões, p. 265-267.

composição de uma nova fórmula de fé que, após hesitações e debates, foi aprovada e promulgada pelo Concílio a 22 de outubro de 451. Eis a fórmula calcedonense: Seguindo os Santos Padres, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, Senhor nosso, o mesmo perfeito no tocante à Divindade, e perfeito no tocante à humanidade: Deus verdadeiro e homem verdadeiro em corpo e alma, consubstancial ao Pai quanto à divindade e consubstancial conosco quanto à humanidade; semelhante em tudo a nós, exceto no pecado; gerado pelo Pai segundo a divindade desde todos os séculos, e nos últimos tempos gerado de Maria Virgem Theotokos, por causa de nós e de nossa salvação. O mesmo e único Cristo, Senhor e Filho Unigênito em duas naturezas sem confusão, nem divisão, nem mudança, nem separação, há de ser o termo de nosso reconhecimento, sem que de algum modo desapareça a diferença de naturezas por causa da união, antes salvando-se as propriedades de cada natureza, embora as duas se encontrem numa única pessoa e subsistência. Não separado nem dividido em duas pessoas, mas uma só Pessoa, que é o único e mesmo Verbo, Deus, Filho Unigênito e Senhor Jesus Cristo 41, como em outros tempos nos ensinavam os Profetas a respeito dele, e o próprio Jesus Cristo ensinou a respeito de si mesmo, e como nos transmitiu o símbolo de fé dos Padres 42. Uma vez redigidas todas estas coisas com todo cuidado e diligência e em todos os seus aspectos, este Santo Concílio Ecumênico as define, de modo que a ninguém é lícito professar outra fé, ou escrever, compreender, sentir ou transmitir outra crença aos seus semelhantes 43. A fim de que fique mais claro o teor da definição conciliar, dispomo-la num quadro sinótico, que evidenciam bem a natureza divina e a natureza humana num só Cristo 44 : Perfeito em sua Divindade, Deus verdadeiro, consubstancial ao Pai segundo a Divindade Um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo Perfeito em sua humanidade, verdadeiro homem, constando de alma racional e corpo, consubstancial a nós segundo a humanidade, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado, gerado do Pai antes dos séculos segundo a Divindade gerado de Maria Virgem, Mãe de Deus, segundo a sua humanidade, nos últimos tempos, por causa de nós e de nossa salvação Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezas sem confusão nem mudança; a diferença de naturezas não é extinta pela união, mas, ao contrário, são ressalvadas as propriedades de cada uma das duas naturezas sem divisão, nem separação, unem-se numa só pessoa e não em um ser dividido em duas pessoas, mas um só e único Filho Unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo 41 O grifo é nosso. 42 Refere-se ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que sintetiza a definição de fé aprovada pelos dois primeiros concílios da Igreja, Niceia (325) e Constantinopla (381) e ainda hoje usada e solenemente cantada na Liturgia dominical em todos os ritos eclesiásticos do Oriente e do Ocidente. 43 DS 301-303. 44 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 87-88.

Percebe-se que a primeira parte desta definição confirma o Concílio de Éfeso, professando a unidade em Cristo. A segunda parte acrescenta a doutrina típica de Calcedônia: as duas naturezas, sem confusão, nem divisão ou mudança. A comunicação ou comunhão de propriedades é professada, na medida em que é reconhecida a unidade de pessoa (de sujeito ou de eu ). É o mesmo eu de Jesus que por sua natureza humana, chora sobre Lázaro, e, por sua natureza divina, o ressuscita. Evitemos a confusão, pois, Deus, como Deus, não pode chorar, e o homem, como homem, não pode ressuscitar um morto. III.2.4. Um quadro sinótico dos difisismos Diferentemente do que ocorreu com as teses monofisitas, que partem de uma premissa comum, ou seja, a fórmula apolinarista, as duas teses difisistas se constituíram de modos diferentes e, até certo ponto, independentes, tendo em comum somente a profissão da união das duas physis em Cristo, divergindo, porém, no conceito deste termo. Enquanto que para Nestório, uma physis não tem subsistência, solidez real se não é também uma hypostasis (pessoa), preferindo falar de união por complacência (tachada pelos adversários de adopcionismo), entendida como união voluntária do Logos com um homem, para São Leão Magno, physis e hypostasis eram conceitos distintos e, portanto, poderia falar da perfeita união das duas physis, sem mistura, nem confusão, na única pessoa (= hypostasis) do Logos. Em outras palavras, enquanto que Nestório professava dois sujeitos em Cristo, um humano e outro divino, embora insistisse na unidade perfeita entre ambos, São Leão professava um único sujeito, o Logos divino que assumiu e uniu a si de modo perfeito e distinto, a natureza humana, e, portanto, duas naturezas, physis, unidas em um único sujeito, Cristo. Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das duas teses difisistas: Difisismo (antioquenos) heterodoxo Nestorianismo ortodoxo Concílio de Calcedônia Conceito de natureza não se distingue de pessoa, portanto, as duas naturezas de Cristo constitui dois sujeitos, a do Logos divino e a do homem Jesus, unidos por complacência. As duas naturezas, divina e humana, realizam uma perfeita união, sem mistura, nem alteração, na única pessoa do Logos divino incarnado. III.3. Comparação Sinótica do Monofisismo e do Difisismo A fim de oferecer melhor uma visão de conjunto, colocamos no seguinte quadro sinótico as quatro teses (nestoriana, miafisista, eutiquiana e leonino-calcedonense), distinguindo-as pelas correntes (monofisismo e difisismo) e pela situação doutrinal (ortodoxia e heterodoxia):

Ortodoxo Heterodoxo Monofisismo O Logos divino uniu a si de modo substancial um corpo animado por uma alma racional, isto é, uma natureza humana completa, e se fez homem sem deixar de ser Deus, um único sujeito, Cristo-Logos, perfeitamente divino e perfeitamente humano. (Cirílico-efesita ou miafisismo) Após a incarnação do Logos divino, a natureza (physis) humana foi absorvida pela divindade do Logos, como uma gota de mel que se desfaz no oceano, permanecendo uma única physis-natureza, a divina. (eutiquianismo) Difisismo As duas physis ou naturezas, a divina e a humana, realizaram uma perfeita união, sem mistura ou confusão, nem alteração, permanecendo distintas, mas substancialmente unidas em um único sujeito, Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. (São Leão Magno e Concílio de Calcedônia) As duas physis ( naturezas = pessoas) constituem dois sujeitos, o Logos divino e o homem Jesus, que realizam uma perfeita união indissolúvel por complacência, distinta, sem mistura ou confusão, permanecendo, todavia, dois sujeitos. (nestorianismo) Como se pode notar, em outros termos, as teses ortodoxas do miafisismo e leoninocalcedonense professam a mesma fé a respeito de Cristo: um único sujeito, o Logos divino, que ao encarnar-se une a si a natureza humana completa, realizando uma perfeita união das duas naturezas, divina e humana, sem mistura ou confusão, nem alteração, um só Cristo, Deus e homem perfeitos; uma única Pessoa (divina) em duas naturezas distintas e substancialmente unidas. A teologia posterior formaria o termo teândrico, isto é, divino-humano (de theós, deus, e aneer, andrós, homem ), Cristo seria, então, um ser teândrico. As divisões que se deram entre os cristãos que optaram por uma ou outra tese (miafisismo ou ortodoxia calcedonense) se deram por mal entendidos a respeito dos conceitos que se discutiam, por rivalidades entre as escolas antioquena e alexandrina, bem como por motivos politico-culturais em que as regiões sul-orientais do Império bizantino (Egito e Síria oriental) buscavam autonomia frente a centralização da corte imperial de Constantinopla e a forte helenização das populações semitas ou de outros grupos dentro do Império (como os armênios), cujos argumentos eclesiásticos e teológicos eram somente pretexto para os conflitos ocorridos. IV. O Monenergismo e o Monotelismo O monenergismo 45 e o monotelismo 46 são duas teses heterodoxas afins ao monofisismo propostas pelo patriarca Sérgio de Constantinopla, cuja intenção era reconciliar os monofisitas com a ortodoxia calcedonense, sem, todavia, atingirem o seu intento. O monenergismo propunha que em Cristo havia um só princípio de operação ou atividade (energéia), e este seria o divino. Em outras palavras, no Logos divino estava o princípio de ação de Cristo, não havendo nada proveniente da natureza humana. O monotelismo atribuía a Cristo uma só vontade, a divina, que absorvera a vontade humana, 45 Do grego mono, uma só, e energéia, operação, atividade. 46 Do grego mono, uma só, theleetee, vontade.

ou seja, Cristo era desprovido de uma vontade humana, o querer de Cristo era o querer do Logos divino, sem cooperação com uma vontade humana. Sofrônio, patriarca de Jerusalém, reconheceu o perigo dessas duas novas apresentações do monofisismo e recorreu ao Papa Honório I, que era pouco versado em grego e em teologia bizantina, não compreendeu a gravidade e sutileza da questão, recomendando somente que se guardasse a fidelidade ao Concílio de Calcedônia e afirmando que isso era somente uma questão linguística e não de fé. E acrescentou que em Cristo não havia oposição entre a vontade divina e a humana e nesse sentido poderia falar de uma única vontade de Cristo. Todavia o papa se referia a uma unidade moral das duas vontades e não de uma única vontade ontológica, levando a sérias discussões. Diante do impasse, o Imperador Constantino IV, propôs ao Papa Agatão a realização de um Concílio ecumênico a fim de dirimir a questão, o que este consentiu prontamente. Por vontade do Papa, realizou-se vários sínodos de bispos no Ocidente a fim de discutirem a questão e por fim, foi composta uma fórmula de profissão de fé. O Concílio de Constantinopla III realizou-se de 7 de novembro de 680 até 16 de Setembro de 681 em que foi definido o seguinte: Este Santo Concílio ecumênico aceita fielmente e recebe de braços abertos a fórmula que propôs ao mui piedoso e fiel Imperador Constantino o mui santo e bem-aventurado Papa da antiga Roma, Agatão: rechaçou nominalmente aqueles que proclamavam e ensinavam haver uma só vontade e operação em Cristo, nosso verdadeiro Deus [ ] Apregoamos duas vontades em Cristo e duas operações, sem divisão, sem separação, segundo a doutrina dos Santos Padres, todavia duas vontades não opostas entre si [ ] A vontade humana de Jesus segue, sem resistência, nem oposição, a vontade divina, à qual está sujeita, pois é toda poderosa [ ] Assim como a carne de Jesus é a carne de Deus, assim também confessamos que a vontade natural própria da sua carne é do Verbo de Deus [ ] Assim como a carne de Jesus, santíssima e sem mancha, não foi extinta por estar divinizada, mas permaneceu dentro dos seus limites e da sua identidade, assimtambém a vontade humana não foi extinta por estar divinizada, mas, ao contrário, substitui usufruindo da salvação 47 É de notar que o texto conciliar fala de carne divinizada e vontade divinizada. O adjetivo era muito caro aos bizantinos. Está, porém, longe de significar a absorção do humano pelo divino; indica, antes, o fato singular de que a humanidade de Jesus subsistia por efeito de uma Pessoa divina; pertencia ao eu do Logos. V. Uma contextualização histórica dos eventos Como dissemos acima, os grandes debates cristológicos que agitaram os cristãos orientais no 47 Cf. DS 553; 556.

século V foram consequência das controvérsias anti-arianas. O apolinarismo havia levantado a seguinte questão: como se realizava a união entre o Logos divino e a natureza humana assumida na incarnação? A tentativa de Apolinário, ao negar a integridade da natureza humana de Cristo, não foi bem recebida pelos teólogos, pois, estes queriam salvaguardar a integridade das duas realidades divina e humana de Cristo. Contudo, alexandrinos e antioquenos discordavam quanto ao modo de entender e colocar os termos. Enquanto os primeiros consideravam a humanidade como instrumento da divindade, os segundos procuravam distinguir de tal modo as duas naturezas que corriam o risco de dividir Cristo em dois sujeitos. A questão explodiu quando um discípulo de Nestório, então arcebispo de Constantinopla, o presbítero Anastácio, condenou do púlpito o título mariano de Theotókos. Isso levou a uma onda de protestos, intimidando o arcebispo a desmentir o auxiliar, o que não o fez, confirmando a tese. Deste modo, veio a tona a tese divisionista de Teodoro de Mopsuéstia. Estalou um verdadeiro tumulto; fieis protestavam durante as cerimônias litúrgicas, monges e bispos denunciavam o arcebispo da corte imperial. No Palácio, as princesas que governavam em nome de Teodósio II olhavam com crescente desagrado, pois encontravam-se indecisas entre o povo devoto da Mãe de Deus e os altos funcionários que as aconselhavam a não exacerbar os ânimos nas províncias da Síria, onde as teses antioquenas estavam bastante espalhadas. Alguns clérigos e monges da capital imperial recorreram a Cirilo, arcebispo de Alexandria, que, em vista da tradicional rivalidade entre Antioquia e Alexandria, via com maus olhos na sede episcopal de Constantinopla, já então principal sede do Oriente, um antioqueno de prestígio; e sua impostação cristológica, de tipo alexandrino, que percebia a unidade substancial das naturezas em Cristo, desconfiava de uma distinção nítida demais de suas propriedades humanas e divinas. Além disso, São Cirilo era injustamente acusado de ter estado implicado em alguns incidentes que haviam agitado Alexandria, tais como a invasão da cidade por um bando de monges que quase conseguiram massacrar o prefeito, e o odioso assassinato, por alguns cristãos fanáticos, da célebre filosofa Hipácia, cabeça da escola neoplatônica. Assumindo a tarefa de refutar Nestório, Cirilo libertava-se de todos esses rumores hostis e agia de acordo com sua fé e o seu temperamento. Após uma correspondência entre os dois arcebispos, mais um pedido de notícias genéricas, a segunda carta de Cirilo e a respectiva resposta de Nestório, ambas de cunho doutrinal, marcaram as divergências entre as cristologias das duas escolas. Em meio à polêmica gerada, tanto Cirilo como Nestório recorreram ao juízo do Papa Celestino I, pois ambos reconheciam a primazia da Sé de Roma. O Papa reuniu, então, um concílio (regional) em Roma, em agosto de 430, em que as teses de Nestório foram tidas como heréticas e convidou-o a reconhecer e renegar seus erros. São Cirilo recebeu delegação do Papa a fim de entregar a Nestório o diktat (decisão) romano e, caso não se retratasse, o excomungasse e o depusesse de sua sede.