AÇÕES AFIRMATIVAS PARA VALORIZAÇÃO DA CULTURA E HISTÓRIA AFRO- BRASILEIRAS Thiago Menezes de Oliveira meneiz@gmail.com.br Universidade Federal do Ceará UFC Introdução De acordo com censo de 2005, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Ceará é um Estado que possui 64,9% de pessoas pretas ou pardas, negras, portanto. Considera-se negros pessoas que se identificam como pretas ou pardas, senão vejamos o que diz Sales Augusto dos Santos: (...) a diferença entre pretos e pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los a uma única categoria, a de negros (Santos, 2002:13). A afirmação implica dizer que, objetivamente, as condições de exclusão de pessoas pretas e pardas são muito similares e, por não se ter diferenciação essencial no trato social, os preconceitos vividos se assemelham. Na verdade, ocorre uma exclusão de negros na sociedade em geral, fechando-se portas para aqueles que se parecem, fato que gera condições objetivas similares, portanto. Apesar de ter tamanha concentração de negros em nosso Estado, factualmente, não se vê a mesma porcentagem de negros a estudar em colégios particulares, a acessar a Rede de Ensino Superior e a constituir o funcionalismo público. A exclusão de negros na educação, e em outros serviços e equipamentos públicos, não é coincidência e pode ser explicada a partir de processos históricos racistas vivenciados anteriormente ou vividos nesta conjuntura. É nesse contexto que se percebe o mito da democracia racial brasileira, na qual advoga-se a tese de que não há racismo no Brasil. Em consonância a uma pesquisa feita pela Folha de São Paulo e pelo Instituto de Pesquisa Datafolha em 1995, 89% dos entrevistados afirmam que existe racismo no Brasil, e 90% dessas pessoas admitiram a sociedade brasileira como racista. Por outro lado, 96% dos entrevistados afirmam que não são preconceituosos. Tal fato nos leva a crer que no
Brasil se tem uma pseudo democracia racial, na qual se reconhece o racismo, mas não há quem se reconheça enquanto agressor. Do Não-Acesso à Educação Formal Com base em dados sistematizados pelo IBGE, o racismo se reflete na educação, vez que a taxa de analfabetismo entre negros (em torno de 16%) é bastante superior frente a dos brancos (cerca de 7%); a média de atrasos escolares dos negros também é maior entre negros (27% dos negros entre 18 e 24 anos ainda cursam o ensino fundamental) do que em brancos (a mesma análise nos brancos cai para 11%); e 51% da juventude negra está não em série inadequada no Ensino Médio, porém, para os brancos, esse fato social cai para 11%. De forma imediata, tem-se como conseqüência que apenas 2,5% dos estudantes que acessam universidades são negros, contrapondose a 97% de estudantes brancos. As conseqüências da não-garantia da Educação Básica à população negra no Brasil são diversas, acarretando em exclusão também no trabalho. No censo de 2005 do IBGE, de 1% da elite nacional mais rica, os negos representam 15,8% dentro desse universo; enquanto dos 10% mais pobres, os negros ocupam 66,6%. No quadro médio da população, os negros ocupam 3% de cargos em diretoria de grandes empresas e 26% dos cargos relacionados a funções subordinadas, além de receberem em torno de 51,1% da receita de um trabalhador que se declare branco. Por certo, a exclusão de uma pessoa negra se inicia ainda na educação básica e extrapola as conseqüências objetivas da exclusão social. Esse excesso se dá principalmente pelo poder se regular pela cultura da branquitude que gera o não-reconhecimento e a desvalorização da cultura afrobrasileira. De acordo com Eliane dos Santos Cavalleiro: (...) foi possível comprovar que a existência do racismo, do preconceito e da discriminação raciais na sociedade brasileira e, em especial, no cotidiano escolar acarretam aos indivíduos negros: auto-rejeição, desenvolvimento de baixa autoestima com ausência de reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual racialmente; timidez; pouca ou nenhuma participação em sala de aula; ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial; dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e, conseqüentemente, evasão escolar. Com o objetivo de combater práticas racistas e preconceituosas, fazem-se necessárias políticas públicas especiais, denominadas de ações afirmativas. Elas têm o escopo de criar situações de maior proteção jurídica para determinados segmentos sociais que sofrem discriminação e são impossibilitadas a ter direitos efetivados devido ao pertencimento social ou étnico-racial. As ações
afirmativas são embasadas na nova hermenêutica constitucional que trata a justiça com a eqüidade, não somente com a mera igualdade formal. Nesse contexto de exclusão e de não reconhecimento do negro, é importante analisar a da aplicação Lei 10.639/03 em Fortaleza, bem como a necesidade de sua efetivação. O intuito é contribuir com elementos concretos para a construção de uma sociedade multicultural e deveras democrática, na qual as diversas culturas e histórias sejam respeitadas e valorizadas, especialmente a cultura negra marginalizada e excluída. Aplicação da Lei 10.639/03 A devida aplicação da lei 10.639/03 na educação básica brasileira necessita da criação de recursos pedagógicos, como livros e metodologias afins com a cosmovisão africana. É mister, portanto, a formação de profissionais que tenham uma vivência diferenciada dos ensinamentos ocidentais cartesianos. Em outras palavras quer-se com isso dizer que os professores têm de ser capazes de garantir uma vivência cultural da história africana, porquanto somente tendo um contato com uma perspectiva de mundo não-ocidentalizado é que se pode valorizar a cultura e a história africana. Elas não se resumem apenas a livros ou aulas expositivas, vez que o africano tem uma forma de pensar diferente na qual se busca a harmonia entre as duas almas, de acordo com a religião tradicional africana. A mais importante é o espírito, o anjo da guarda, a alma propriamente dita, que está ligada à mente, ao destino, aos antepassados e à reencarnação, e que determina se a pessoa é inteligente, se tem sorte na vida etc. A segunda alma é o sopro vital, a respiração, a vida física, que dá vida ao homem e o faz trabalhar (NEI LOPES, 1998:40). Desta feita, e de acordo com os preceitos da Convenção 169 da Organização internacional do Trabalho (OIT), em vigor no território brasileiro desde julho de 2003, o ato de lecionar deve respeitar as costumes e as peculiaridades da cultura da comunidade em foco, no caso em escopo a afro-brasileira. Senão vejamos a própria letra da Convenção 169 da OIT: Artigo 31 Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim, deverão ser realizados esforços para assegurar que os livros de História e demais materiais didáticos ofereçam uma descrição equitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos interessados.
Assim, afirma-se a importância da lei em comento no sentido de quebrar preconceitos e construir uma nova cultura a partir da nossa própria história afro-brasileira. Essa cultura perpassa inclusive os meios institucionais como o Judiciário, e é nesse sentido que é válido salientar que a Convenção 169 da OIT, em 2006, teve aplicabilidade prática pela Justiça Federal do Maranhão. Ressalta-se que a Convenção, como afirma Celso D. Albuquerque de Mello, tem força de lei em sua aplicabilidade, não havendo o que se falar em afirmação meramente principiológica, como alguns autores advogam a tese para a aplicabilidade das declarações internacionais. Ainda de acordo com o autor citado, a convenção é o tratado que cria normas gerais (CELSO D. ALBUQUERQUE DE MELLO, 2000:200). Compreendendo ainda tratado como a fonte de direito internacional, a qual um Estado não pode invocar o direito interno para não aplicá-lo, nos moldes do preceituado pela Convenção de Viena, de maio de 1969. O Estado signatário tem o dever de aplicar a convenção que passa a ter força de lei interna, como ocorreu aqui no Brasil desde 2003 com a Convenção 169 da OIT, portanto. Alteração com a Lei 11.645 A Lei Federal 10.639 alterou o disposto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394/96, que tratam das disposições gerais da Educação Básica brasileira, acrescendo um novo artigo que passou a vigorar com a seguinte redação: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Malgrado a implementação desse dispositivo da Educação Básica nas escolas de Fortaleza, temos pouquíssimos exemplos concretos, pois não se garantiu as condições básicas para que se lecionasse história e cultura afro-brasileira. Esse fato se deu pela não-contratação de profissionais habilitados e pela falta de incentivo de aplicar concretamente a Lei 10.639/03, de forma geral. Entretanto, aos 10 de março do corrente ano, a lei sofreu modificação, ocasião a qual de acresceu ao art. 26 A e parágrafos seguintes o estudo da história e cultura indígena. O fato gera estranheza não pela inclusão na lei dos direitos indígenas, mas sim por historicamente as reivindicações dos povos indígenas serem silenciadas e postergadas. Alie-se a esse contexto ainda o recuo do atual governo federal no sentido de dificultar o reconhecimento das terras quilombolas com a Instrução Normativa (IN) 20 de 2005 do Incra. A IN 20/2005 torna o processo de reconhecimento mais burocratizado e moroso, ressalva-se que apenas sete títulos foram concedidos
a comunidades quilombolas desde a vigência normativa do Decreto 4.887/2003, até fevereiro de 2008. No que concerne aos recursos pedagógicos e humanos necessários para a aplicação da lei 10.639, não se logrou muitos avanços. Na verdade, os debates ainda eram iniciais, inclusive a sociedade estava se organizando para exigir que a previsão da valorização da cultura e da história afro-brasileira fosse garantida como política pública permanente. Sabe-se que a pauta para lecionar história e cultura africanas é uma reivindicação antiga do Movimento Negro. Assim como a pauta para a garantia da educação diferenciada é historicamente reivindicação indígena. Na verdade, não se quer com isso dizer que as comunidades quilombolas não lutam pela educação diferenciada, nem que o movimento indigenista não pleiteia o reconhecimento de sua cultura e história na educação formal convencional. Porém, fala-se de reivindicações históricas, de pautas que os movimentos sociais delineiam para lutar de forma imediata, e é nesse sentido que se diz que não era a principal pauta do movimento indígena a aprovação da Lei 11.645/08. Esta Lei, modificadora da 10.639/03, traz o reconhecimento necessário para a valorização histórico-cultural dos índios. A questão indígena também, obviamente, carece de ações afirmativas, porém a implementação e regulamentação delas são fruto de muitas lutas e mobilizações, a exemplo das garantias de direitos conquistadas pelos diversos movimentos populares. Desta feita, estranha-se a promulgação da Lei 11.645/08, não pelo seu conteúdo, mas sim pelo fato de ter sido aprovada sem o debate intenso da sociedade e por não ser das pautas mais urgentes dos povos indígenas. Então, questiona-se: será que alterar a previsão da Lei 10.639/03 não é procurar postergar a garantia da implementação dos novos termos da LDB, vez que o movimento negro estava em pleno debate sobre a valorização da cultura e história afro-brasileiras? De toda forma, não se pode encerrar o tema sem antes frisar a legitimidade da pauta indígena e a importância da própria lei que alterou os dispositivos do artigo 26 A. Perspectivas A legislação protetiva e garantidora de direitos para as pessoas negras não é implementada de forma fácil, porquanto a sua aplicação depende de uma mudança anterior do aplicador da lei, essencialmente branco, racista, machista e homofóbico. Daí decorre a necessidade de se lutar pela construção de uma nova cultura dentro da nossa sociedade capitalista. E sabe-se que a mudança de um sistema, carregado de preconceitos tidos como culturais, e de um paradigma não se dá bruscamente. Nesse sentido, políticas públicas permitem a mudança de preconceitos naturalizados na nossa sociedade, destacando-se o papel das ações afirmativas.
Apontamos aqui como perspectiva primeira a valorização da cultura afro-brasileira e indígena, capaz de se desenvolver numa sociedade plural que devemos construir no Brasil. O Multiculturalismo aqui é um fim a que se busca, e, para tanto, são necessárias diversas medidas afirmativas concomitantes que busquem a valorização de grupos sociais destacadamente os étnicos, que compõe a nossa sociedade. Assim, a Lei 11.645/08, por mais que possua origem questionável, deve ser garantida, e, a partir daí, aponta-se a unidade do movimento negro e indigenista para exigir a devida implementação da nova composição do Artigo 26 A, da Lei 9.394/96. Reconhece-se, entretanto que não se deve retroagir nessas conquistas de Direitos Humanos, logo se deve exigir o ensino da cultura e história negra separado da indígena, vez que apesar de comporem grupos excluídos da sociedade, os contextos históricos e culturais aos quais estão inseridos são bem diversos. A separação é didática, por se tratar de áreas do conhecimento diferentes, uma vez que não se almeja a fuga da interdisciplinaridade. A mais, a especificidade dos movimentos supracitados, obviamente, não é empecilho para a união das pautas de luta, mesmo numa perspectiva de unidade de Direitos Humanos. Tendo em vista algumas artimanhas que por ventura os governos façam, destaca-se sempre a independência dos movimentos sociais frente ao Estado, principalmente porque a máquina estatal pertence à classe dominante. Uma outra perspectiva, é o apontamento da construção do pluralismo jurídico através de práticas pedagógicas escolares e comunitárias, capazes de reger a vida comunitária de forma diversa da estatal, extrapolando o conceito de direito monista vigente. Busca-se a práxis de uma nova mundividência, que não a cartesiana capitalista ocidental, através, principalmente, de vivências culturais diversas, como a africana e a indígena. A Africana, a que o breve estudo se ateve, propõe a harmonização e o equilíbrio do Ser. Uma nova forma de pensar acarreta uma nova forma de viver desligada de bens materiais e de uma lógica matemática sistematizada do pensar, valorizando o sentir, sentindo o meio ambiente em que nos inserimos e o meio social que nos encontramos. REFERÊNCIAS AÇÕES Afirmativas e Inclusão Social, Étnica e Racial: As Cotas nas Universidades Estaduais e no Serviço Público do Ceará. Assembléia Legislativa. Edições Inesp. Fortaleza, 2007; AGUIAR, Ubiratan e MARTINS, Ricardo. LDB: Memória e Comentários. 2 ed. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2003; CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva artigo a artigo. 7 ed. Petrópolis:Vozes,2002;
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