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Transcrição:

SOCIUS Working Papers Comunicação apresentada na Conferência O Assédio Moral no Local de Trabalho: emergência de uma nova realidade (29 e 30 de Novembro de 2007) António Garcia Pereira O ASSÉDIO MORAL Causas e condicionantes Nº 3/2008 SOCIUS - Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações Instituto Superior de Economia e Gestão Universidade Técnica de Lisboa Rua Miguel Lupi, 20 1249-078 Lisboa Tel. 21 3951787 Fax:21 3951783 E-mail: socius@iseg.utl.pt Web Page: http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/index.htm

O Assédio Moral Causas e condicionantes 1. O recente interesse pelo fenómeno do assédio O fenómeno do assédio moral, conhecido e estudado na Europa há mais de duas décadas, só muito recentemente ganhou entre nós foros de alguma importância. Na verdade, começam agora a surgir reportagens e artigos jornalísticos, inclusive na imprensa da área económica, dissertações de mestrado e até de doutoramento, eventos de natureza científica (como a I Conferência Portuguesa sobre Assédio Moral no Local de Trabalho realizada no final de Novembro de 2007 no ISEG) e até uma ou outra sentença judicial tendo por temática essencial a análise quer do fenómeno em geral quer de situações concretas do mesmo. Não há, porém, ainda em Portugal uma única associação de vítimas de assédio moral que, à semelhança do que se passa, de forma generalizada, por exemplo em Espanha, possa estudar mais aprofundadamente esta questão da perspectiva das diferentes áreas de conhecimento (a Medicina, o Direito, a Acção Social, a Psicologia, a Sociologia e até a Economia e a Gestão), propiciar ajuda adequada nas várias frentes às vítimas e divulgar os dados e os elementos mais importantes (estatísticas, investigação científica mais avançada, sentenças exemplares, etc.). E uma reacção adequada, suficientemente reparadora e dissuasora, por parte da Ordem Jurídica está muito, muito longe de ser uma realidade. 2. As causas do nosso atraso o caldo de cultura organicista e autoritário A razão de ser desse nosso atraso decorre de causas sobre as quais, aliás, importa reflectir um pouco, até para que aquele possa mais rapidamente ser ultrapassado. Tais causas radicam, antes de mais, num caldo cultural, político e social (próprio de regimes autoritários como o chamado Estado Novo ) assente na lógica organicista do 2

pouco respeito pelo cidadão (sempre considerado filho de um Deus menor perante a sacrossanta, intocável e indiscutível entidade mítica do Estado ou da Nação ) e pelos seus direitos fundamentais e, logo, potenciadora, do maior desrespeito institucional pelos valores da cidadania e pela protecção da dignidade da pessoa humana e pela salvaguarda da sua integridade moral. E também por concepções do tipo ordens são ordens e não se discutem!, manda quem pode, obedece quem deve! ou é Deus que nos ensina que devemos obedecer aos nossos superiores que, em nome da imposição da obediência cega e servil ao chefe, (ao duce ou ao führer seja na família, na igreja, na escola, na empresa ou na Sociedade em geral, ajudam a legitimar socialmente práticas absolutamente contrárias aos mais elementares princípios da cidadania. Este caldo de cultura produzido e imposto a gerações e gerações durante 500 anos de Inquisição e 50 de Fascismo obviamente não desaparece de um momento para o outro, nem pela simples consagração formal, na Constituição da República de 1976 de uma concepção antropocêntrica do mundo e da dignidade da pessoa humana como valor estruturante do próprio Estado de Direito. E, mais do que isso, essa cultura do servilismo, do pouco respeito pelo outro, de os fins justificam os meios, e de uma espécie de darwismo social em que só os fortes podem triunfar e os mais fracos, velhos ou débeis devem ser afastados, foi e é entretanto retomada em força pelas concepções neo-liberais justificadoras dos invocadamente inelutáveis efeitos da globalização e que, com a missa hipnótica da permanente proclamação da competitividade e da mudança a todo o custo, procuram assim justificar a espiral a caminho do fundo e a promoção, como melhor destino dos grandes investimentos internacionais, dos paraísos da desregulação não apenas fiscal e administrativa, mas também laboral e social, cotando-os nos primeiros lugares das chamadas agências de rating. É igualmente por isso que o estudo do fenómeno do assédio moral e o combate pela sua adequada punição e erradicação é, afinal e antes de tudo, um combate de cidadania e pela cidadania! E que não pode ser consequentemente travado a não ser integrado no combate mais geral pelos direitos cívicos dos cidadãos e pela preservação da cidadania em todas as suas vertentes. 3

Daí, também, que um dos principais passos nesta matéria seja a aposta na melhor formação e qualificação, de todos (trabalhadores, empregadores e gestores, representantes sindicais e patronais, técnicos de Higiene e Segurança no Trabalho, Médicos do Trabalho, Inspectores do Trabalho, magistrados do Ministério Público, Advogados, Juízes) quantos têm um papel a desempenhar em áreas que se possam prender com as questões do assédio moral. E sobre esta matéria há, como todos sabemos, ainda um longuíssimo caminho a percorrer 3. Outras razões de um fraco combate ao assédio moral Por fim, impõe-se de igual modo salientar toda uma série de outros aspectos deste fenómeno, que não podem nem devem nunca ser olvidados. Antes de mais, o número de casos que chegam a ser formalmente levados perante a Justiça, e são por esta conhecidos e decididos, constitui ainda hoje uma ínfima minoria da realidade. Tal se deve, fundamentalmente, à consciência colectiva infelizmente com bastantes motivos para tal da gritante incapacidade da Ordem Jurídica para resolver adequadamente este tipo de situações: desde o elevado e exagerado montante das custas judiciais, aliado a um regime de acesso ao Direito que praticamente não isenta ninguém do pagamento daquelas, até às notórias desigualdades na produção da prova (que hoje, em muitos casos, é quase só ou o depoimento da vítima ou o de testemunhas em situação idêntica à do Autor da acção e que, consequente e compreensivelmente, temem represálias mais ou menos idênticas) e à lentidão na produção de uma decisão (lentidão essa drasticamente agravada por medidas políticolegislativas como a da recente extinção da 3ª Secção de todos os 5 Juízos do Tribunal do Trabalho) e, enfim, à natureza ridiculamente miserabilista das indemnizações por danos morais usualmente fixadas pelos nossos julgadores (ainda muito amarrados ao caldo ideológico a que acima nos referimos e tão frequentemente predispostos a denegar o direito à reparação ou à compensação sob o argumento, quantas vezes fundado em pura ignorância, de que se trataria de meros incómodos que não merecem a tutela do Direito!?). Para além de concepções como as de um famigerado 4

Acórdão dom Tribunal da Relação de Lisboa que, em Fevereiro do ano passado, proclamou que o trabalhador contratado a termo que vê o seu contrato cessado de forma ilegal não teria direito a indemnização por danos morais!? Mas a estas se aliam ainda outras circunstâncias, sobre as quais há forçosamente que intervir se quiser conhecer bem e travar um combate eficiente ao assédio moral. Por um lado e para além das óbvias dificuldades, nalguns casos verdadeiramente intransponíveis, na produção da prova, designadamente pela prática inexistência de elementos documentais e pela interpretação e aplicação habituais das regras do ónus daquela, que atiram para cima da vítima com o peso de, sob pena de perda da acção, ter de fazer uma prova muitas vezes praticamente impossível é preciso compreender que, num país tão pequeno como Portugal, com um mercado de trabalho global tão circunscrito como o nosso, e com mercados sectoriais tão diminutos e simultaneamente tão dominados seja apenas por três ou quatro grandes empregadores (como a Comunicação Social ou as Telecomunicações) seja por um autêntico cartel das principais empresas do sector (como a Banca ou a Indústria Farmacêutica), e com a rápida e eficaz circulação de uma dada informação ou cultura de empresa (ao estilo do vejam lá, se até saiu da empresa X ao fim de apenas um ano de trabalho ou meteu a empresa Y em Tribunal, quem me garante que não irá fazer aqui o mesmo? ), numa inevitável avaliação custo/benefício, normalmente a vítima de assédio prefere não lançar mão de qualquer procedimento judicial ou administrativo, precisamente pelo receio de que a eventual vantagem que daí decorra seja afinal muito inferior aos custos que ela sabe seguramente que terá de suportar, desde logo o de não mais conseguir emprego, pelo menos naquele mesmo sector de actividade. 4. A precariedade laboral e o modelo taylorista das relações laborais Depois, num país em que e de forma crescente, pois só entre 2005 e 2007 e de acordo com os próprios dados do INE, os contratos a prazo cresceram em 95,8 milhares enquanto os contratos sem termo diminuíram 27,2 milhares temos cerca de 2 milhões de contratados a prazo (grande parte dos quais, aliás, para responder a necessidades e para preencher postos de trabalho em absoluto permanentes), a que se 5

somam um número de novo crescente de falsos recibos verdes (ou seja, de falsos trabalhadores autónomos, que encobrem relações tipicamente de trabalho subordinado) que se estima se esteja de novo a aproximar do meio milhão, fácil é de compreender que o impedimento constitucional dos despedimentos sem justa causa não tem aqui afinal qualquer aplicação e que é muito fácil pôr-se termo ao contrato de qualquer desses 2 milhões e quinhentos mil trabalhadores e privá-lo do seu único meio de subsistência, dando assim ao estilo de uma conhecida e musculada filosofia de gestão um sinal à organização do que acontecerá a quem ousar denunciar e comprovar a arbitrariedade. Por fim, tenha-se igualmente presente questão esta bem mais vasta mas de igual e incontornável relevância para o futuro do país que o modelo de relações industriais ainda largamente dominante entre nós, e que aliás o Código do Trabalho (quer na já vigente Versão Bagão Félix, quer na ora em preparação Versão Vieira da Silva ) protege, incrementa e institucionaliza, é ainda e lastimavelmente o velho modelo taylorista da utilização intensiva de mão-de-obra relativamente pouco qualificada e com baixos salários, dum processo produtivo de fraca incorporação tecnológica e de trabalhadores pouco diferenciados, agora com a adição própria das teses neo-liberais da fase da chamada globalização também necessariamente precários e amedrontados, numa lógica de competitividade assente na precariedade de quem trabalha (na perspectiva de que só há empresas estáveis com trabalhadores instáveis ) e no seu permanente receio (pois uma mão-de-obra diariamente amedrontada com o risco de perder a sua fonte de subsistência é necessariamente uma mão-de-obra barata e dócil, ou seja, pouco reivindicativa e fácil de gerir, por praticamente tudo tender a aceitar), e não raras vezes na ilegalidade (com pagamentos de remuneração por fora e/ou contra facturas, recibos verdes fraudulentos, fugas aos descontos para a Segurança Social, negociações de termo de contratos com o recurso à invocação de baixas ou mútuos acordos fraudulentos que ponham o Estado, em vez do empregador, a pagar remunerações, etc., etc., etc.). 6

5. Um desafio difícil, mas não impossível! O conjugar de todos estes factores e a prolongada ausência da sua discussão séria e aprofundada, decorrente de uma lógica ou de aceitação servil do que está ou de desvalorização dos valores e bens jurídicos e económicos aqui em causa, ou, enfim, da sua incorporação em estratégias de gestão profundamente erróneas e que sacrificam a ganhos imediatistas, de forma grave e até irreparável, a execução, sólida e sustentada, de um programa de desenvolvimento estratégico do país (assente na definição dos sectores de mais valor acrescentado, no forte investimento tecnológico, na elevada qualificação dos trabalhadores, na capacidade de inovação, na excelência de gestão, no redesenho dos nossos sectores produtivos e na reformulação, de alto a baixo, do nosso sistema de ensino) é evidente que torna particularmente difícil o combate ao fenómeno do assédio moral. Em particular num Estado que tem 2,5 vezes menos do que a média da União Europeia em número de licenciados e portadores de habilitações iguais ou superiores à licenciatura, que tem o maior índice GINI, ou seja, de desigualdades sociais (8,3 contra 4,9 da UE), em que o aparente aumento do emprego destes últimos três anos está a decorrer da substituição do trabalho estável, a tempo inteiro e qualificado, por trabalho precário, a tempo parcial e pouco qualificado, agravando ainda mais as nossas dificuldades endémicas neste campo; e em que, de novo de acordo com o INE, os postos de trabalho dos trabalhadores com níveis de escolaridade e qualificações mais elevadas entre o 3º trimestre de 2005 e o 3º trimestre de 2007 diminuíram 123 milhares, ao mesmo tempo que, neste último ano, o abandono escolar era em Portugal de 39,2% (enquanto na UE-27 era de 15,3%). É um desafio difícil, porém não é de todo impossível. Mas, mais do que isso (atentos os valores que aí estão claramente em causa, mas também as necessidades de progresso do País e do futuro da nossa juventude), é imperioso! Até porque a continuarmos por este caminho, a economia portuguesa não conseguirá competir nem com as economias mais fortes (de forte incorporação tecnológica e elevada produtividade), a começar pela espanhola, nem com os países de grandes stocks de mão-de-obra de reserva, relativamente pouco qualificada mas muito mais barata do que a nossa (como a China), nem com as dos países de Leste recentemente chegados à 7

UE, e que têm, em média, o dobro das nossas qualificações e metade dos nossos custos salariais! E tanto mais que todos os estudos apontam entre nós para um número verdadeiramente astronómico (mais de 200.000) de vítimas de assédio moral no local de trabalho, dos quais uma parte bem significativa são trabalhadores qualificados e mesmo altamente qualificados. No próximo capítulo trataremos então de procurar não apenas definir o fenómeno do assédio e estudar as respectivas modalidades e consequências, como também analisar as várias formas de, por um lado, o detectar e, por outro, de o combater e fazer sancionar como prática económica e de gestão profundamente errada e como realidade jurídico-constitucionalmente de todo inaceitável. Lisboa, 22 Janeiro de 2008 António Garcia Pereira 8