Sumário: Registo comercial de hipoteca voluntária sobre embarcação de



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Proc.º n.º C.Co. 91/2010 SJC-CT recreio. Sumário: Registo comercial de hipoteca voluntária sobre embarcação de I Relatório 1 O Banco, S.A. pretendeu registar na Conservatória do Registo Comercial do uma hipoteca sobre uma embarcação de recreio com base numa escritura pública celebrada em 22 de Dezembro de 2009 no cartório notarial de Ana, sito no, tendo sido informado de que o registo de factos relativos a embarcações de recreio não era da competência das conservatórias mas apenas da Capitania do. O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 403/86, de 3 de Dezembro, que aprovou o Código do Registo Comercial, estatui que é revogada toda a legislação anterior referente às matérias abrangidas pelo CRC, designadamente o Decreto-Lei n.º 42 644 e o Decreto n.º 42 645, ambos de 14 de Novembro de 1959, salvo as disposições referentes ao registo de navios que se mantém em vigor até à publicação de nova legislação sobre a matéria. As embarcações nacionais estão obrigatoriamente sujeitas a registo (n.º 1 do artigo 72.º do Regulamento Geral das Capitanias), estando as embarcações mercantes sujeitas a registo comercial (artigo 19.º do referido Regulamento). Como as embarcações de recreio não se consideram embarcações mercantes parece que não estarão sujeitas a registo comercial. Por outro lado, também o Regulamento da Náutica de Recreio (RNR) não prevê o registo comercial de qualquer facto respeitante às embarcações de recreio, existindo apenas uma obrigação de registo de propriedade junto da autoridade marítima por força do disposto nos artigos 19.º e 20.º do RNR. Por não se encontrar na lei uma resposta suficientemente clara sobre a matéria, aquela instituição bancária vem solicitar ao Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. que informe qual a entidade competente para proceder ao registo da hipoteca sobre uma embarcação de recreio. 2 Devido à inexistência de doutrina firmada sobre o ponto e tendo em conta a complexidade da questão foi, por despacho de 5 de Novembro de 2010, determinada a audição deste Conselho, pelo que cumpre emitir parecer. 1

II Fundamentação 1 O artigo 19.º do Regulamento Geral das Capitanias (doravante RGC) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72 1, de 31 de Julho, procede à classificação das embarcações nacionais nos seguintes termos: «1 As embarcações da marinha nacional, incluindo as do Estado não pertencentes à Armada, a forças de segurança interna e a outros órgãos do Estado com atribuições de fiscalização marítima, em conformidade com as actividades a que se destinam, classificam-se em: a) De comércio; b) De pesca; c) De recreio; d) Rebocadores; e) De investigação; f) Auxiliares; g) Outras do Estado. 2 As embarcações a que se referem as alíneas a), b), d) e f) do número anterior constituem a marinha mercante e designam-se por embarcações mercantes. 3 As embarcações a que se referem as alíneas a), b) e c) do n.º 1 constituem, respectivamente, as marinhas de comércio, de pesca e de recreio». Por seu turno, o artigo 72.º, n.º 1, preceitua que: «1. As embarcações nacionais, com excepção das pertencentes à Armada, estão sujeitas a registo de propriedade, abreviadamente designado por registo, para que possam exercer a actividade que determina a sua classificação». Deste universo, por força do prescrito no n.º 3 do citado preceito, apenas as embarcações mercantes estão também obrigatoriamente sujeitas a registo comercial nos termos da respectiva lei, pelo que se revela necessário, antes de mais, proceder à identificação rigorosa das referidas embarcações. 1 JANUÁRIO GOMES, in Leis Marítimas, 2007, 2.ª edição, pág. 65, chama a atenção para o facto de o presente diploma se encontrar bastante desactualizado, apesar das frequentes alterações legislativas de que tem sido objecto. 2

Das sete subclassificações que o referido artigo 19.º dá conta apenas as embarcações de comércio, pesca, rebocadores e auxiliares são consideradas embarcações mercantes, constituindo a marinha mercante nacional. Ora, decorre claramente da análise conjugada dos normativos precedentes (artigos 19.º e 72.º, n.º 1) que as embarcações de recreio não integram a marinha mercante e, sendo assim, não são abrangidas pela facti species do n.º 3 do artigo 72.º do RGC, vale por dizer, pelo registo comercial. Acresce, ainda, que os artigos 73.º e segs. do RGC prescrevem que as repartições marítimas são as competentes para o registo (administrativo), das embarcações nacionais, excepto o das embarcações de recreio, que é feito nos organismos indicados na respectiva legislação, cumprindo-lhe apreciar os aspectos jurídicos do navio, mormente o seu estatuto de propriedade 2. Por outro lado, o legislador, para o registo das embarcações de recreio, reservou legislação especial, como flui da remissão plasmada no n.º 7 do artigo 78.º do RGC, que adiante analisaremos. 2 Feita esta sinóptica exegese, apreciemos agora o regime jurídico do registo comercial dos navios que se encontra consagrado no Decreto-Lei n.º 42 644, de 14 de Novembro da 1959, e no Decreto n.º 42 645, de 14 de Novembro de 1959, atenta a excepção consignada no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 403/86, de 3 de Dezembro, que aprovou o Código do Registo Comercial. Ora, o artigo 1.º do citado Decreto-Lei n.º 42 644 prescreve que o registo comercial tem por fim dar publicidade aos factos jurídicos, especificados na lei, referentes aos navios mercantes 3. Resulta do artigo 2.º do diploma citado que o registo comercial compreende a matrícula dos navios mercantes e a inscrição dos factos jurídicos a ele sujeitos (que é obrigatória artigo 6.º, 8.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 42 644), sendo que para a obtenção de qualquer registo em termos definitivos deve ser apresentado o certificado do registo de propriedade na conservatória do registo comercial cfr. o disposto nos artigos 49.º, n.º 3, 50.º, 51.º, n.º 2, e 88.º, todos do Decreto n.º 42 645. 2 Veja-se, para mais desenvolvimentos sobre o ponto, o parecer do CT proferido no proc. n.º R.Co.10/2006 DSJ-CT, pág. 11 e segs., publicado na Intranet. 3 A expressão «navios mercantes» ou «embarcações mercantes» é utilizado indiferentemente pelo legislador para designar a mesma realidade flutuante vd., designadamente e em conformidade, os artigos 19.º, n.º 4, do RGC, 1.º do Decreto-Lei n.º 201/98, de 10 de Julho, que aprovou o estatuto dos navio, e o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 96/89. 3

A grande preocupação que o legislador revelou com a harmonização do registo comercial com o registo administrativo é manifesta. Para o efeito, procurou garantir, concomitantemente, que a cada navio mercante apenas pudesse corresponder um registo de propriedade efectuado junto das repartições marítimas e uma matrícula nas conservatórias do registo comercial. Com tal desiderato, não permitiu que a conservatória do registo comercial pudesse matricular qualquer navio mercante nem inscrever factos jurídicos sobre o mesmo, em termos definitivos, sem a apresentação do respectivo título de propriedade emitido pela autoridade marítima competente. 2.1 Do prescrito no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 42 644 resulta que estão sujeitas a registo, quando referentes a navios mercantes, «as hipotecas, suas modificações ou extinção, bem como a cessão da hipoteca ou do grau de prioridade do respectivo registo», sendo que nenhum facto pode ser levado a registo sem que o navio se mostre matriculado (artigo 8.º), salvaguardada que seja a excepção consignada no n.º 2 do artigo 12.º do diploma citado 4. 3 Vejamos então, ainda que perfunctoriamente, o que dispõe o Regulamento da Náutica de Recreio, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio, com respeito às embarcações de recreio. O objecto deste Regulamento visa o estabelecimento das normas reguladoras da actividade náutica de recreio tendo por âmbito de aplicação as embarcações de recreio, qualquer que seja a sua classificação, os respectivos equipamentos e materiais e os seus utilizadores, como decorre do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 124/2004. Do artigo 2.º, alínea a), do aludido diploma consta a definição de embarcação de recreio (ER) como sendo «o engenho ou aparelho de qualquer natureza, utilizado ou susceptível de ser utilizado como meio de deslocação de superfície na água em desportos náuticos ou de lazer». Por «autoridade marítima» entende-se as capitanias dos portos, sendo que o «porto de registo» é o porto onde se efectuou o registo da embarcação de recreio alíneas d) e e) do preceito citado. 4 A primeira inscrição referente a navios mercantes é a da sua construção ou da aquisição. Contudo, a lei excepciona da previsão desta norma a inscrição da hipoteca provisória sobre navios em construção ou a construir, bem como a sua penhora, arresto ou arrolamento cfr. o disposto no artigo 12.º do Registo Comercial de Navios. 4

Como decorre do prescrito no artigo 19.º do RNR, o registo destas embarcações é efectuado junto das autoridades marítimas e é obrigatório, devendo estas emitir o respectivo livrete e proceder à sua entrega ao respectivo proprietário. As ER só podem ser utilizadas depois de devidamente registadas, apresentando-se tal registo como uma condição para o exercício da actividade. O artigo 20.º do citado Regulamento fixa as regras a aplicar ao processo de registo sendo este efectuado a pedido dos interessados, respeitando o primeiro registo à propriedade, com ou sem reserva de propriedade (vd. os modelos n.ºs 3 e 4, do Anexo B do Decreto-Lei n.º 124/2004). Encontram-se igualmente sujeitos a registo a mudança de proprietário, com ou sem reserva de propriedade, a alteração das características da ER, da zona de navegação ou da lotação e a transferência de registo para outro porto. Do livrete constam, entre outras, as características da embarcação, o conjunto de identificação (artigo 13.º), o nome da ER (artigo 14.º) e o proprietário (artigos 20.º e 21.º). Aplicam-se-lhe subsidiariamente as regras em vigor para o registo (administrativo) das embarcações nacionais por força do prescrito no n.º 12 do artigo 20.º. Com o objectivo de centralizar os elementos atinentes às ER, o Instituto Português dos Transportes Marítimos deve manter actualizado o Registo Técnico Central das embarcações de Recreio (RETECER), de harmonia com o prescrito nos artigos 24.º e segs. do Decreto-Lei n.º 124/2004. Dos termos expostos, podemos desde já extrair a seguinte conclusão axiomática: não emergindo o registo de hipoteca sobre embarcações de recreio de nenhuma das normas ínsitas no Decreto-Lei n.º 124/2004, nem de qualquer outro, o mesmo não pode ser efectuado. 4 Na sequência da metodologia adoptada impõe-se, ainda, uma breve alusão ao regime especial que vigora na Região Autónoma da Madeira. Pelo Decreto-Lei n.º 96/89, de 28 de Março, foi criado o Registo Internacional de Navios da Madeira, abreviadamente designado por MAR, incumbindo à Conservatória do Registo Comercial privativa da Zona Franca da Madeira 5, designadamente, o registo de todos os actos e contratos referentes a navios a ele sujeitos artigos 1.º e 2.º. 5 A zona franca da Região Autónoma da Madeira é legalmente entendida como o enclave territorial em que as mercadorias lá existentes são, em regra, consideradas exteriores ao território aduaneiro para efeitos de aplicação de direitos aduaneiros, restrições quantitativas ou medidas de efeito equivalente cfr. o disposto nos 5

Do n.º 2 do artigo 14.º do citado diploma consta expressamente que «O acto de constituição ou modificação de hipoteca sobre navio deve constar de documento assinado pelas partes, com reconhecimento das assinaturas». O Decreto-Lei n.º 393/93, de 23 de Novembro, veio alargar o âmbito do Registo às embarcações de recreio, tendo, para a prossecução de tal desiderato, consignado na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º que compete ao MAR «efectuar o registo de navios de comércio, incluindo os contratos de construção, e das embarcações de recreio». Também a noção de navio consagrada na alínea e) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 96/89 sofreu ampliação no sentido de abranger na facti species da norma as embarcações de recreio. Da previsão do n.º 2 do artigo 14.º do citado diploma passou também a constar, além da constituição ou modificação de hipoteca sobre navio, «a extinção de hipoteca ou de direito a ela equivalente». Mediante a introdução de um novo número no artigo 14.º, consignou-se a possibilidade das partes convencionarem a lei aplicável à hipoteca ou direito equivalente. Esta norma, porém, suscitou dúvidas de interpretação em face das regras do direito internacional tendo, a pedido da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitido parecer no sentido de que tal norma efectivamente contraria o estatuído no artigo 14.º da Convenção Internacional para a Unificação de Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, de 10 de Abril de 1926, e no n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa 6. Fora do âmbito da zona franca da Madeira não regem disposições análogas, sendo que os navios registados no MAR exercem, para todos os efeitos, a sua actividade no âmbito da zona franca da Madeira por força do prescrito no artigo 6.º do citado Decreto- Lei n.º 96/89 7. 5 Procedamos agora à caracterização sumária do regime jurídico da hipoteca no direito interno português. artigo 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 500/80, de 20 de Outubro, e 1.º do Decreto-Regulamentar n.º 53/82, de 23 de Agosto. 6 Para mais desenvolvimentos, veja-se o parecer n.º 4/97 da PGR, que se encontra publicado no DR n.º 269, II Série, pág. 14 314 e segs. Veja-se também, no que concerne à determinação do direito aplicável, LIMA PINHEIRO, Contributo para a reforma do direito comercial marítimo, in ROA, ano 60, 2000, pág. 1063, e MÁRIO RAPOSO, Direito Marítimo Uma Perspectiva, in ROA, Ano 43, 1983, pág. 364. 7 Cfr., novamente, o parecer da PGR n.º 4/97 supra identificado. 6

5.1 A noção de hipoteca encontra-se plasmada no n.º 1 do artigo 686.º do Código Civil nos seguintes termos: «A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. A hipoteca caracteriza-se, essencialmente, pela natureza dos bens que constituem o seu objecto mediato coisas imóveis e móveis elencadas no artigo 688.º do citado Código. Podem, portanto, ser também objecto mediato da hipoteca as coisas móveis desde que exista lei que, para este efeito, as equipare a imóveis 8. 5.2 O artigo 584.º do Código Comercial prevê também que se podem constituir hipotecas sobre navios, aplicando-se-lhe as mesmas disposições que às hipotecas sobre prédios, designadamente quanto à produção de efeitos jurídicos, em tudo quanto for compatível com a sua especial natureza, e salvas as modificações da presente secção. A lei comercial admite, pois, a constituição de hipotecas (legais e voluntárias) sobre navios, com as ressalvas estabelecidas no artigo 585.º do Código Comercial, aprovado pela Carta de Lei de 28 de Junho de 1888 9. 5.3 A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes por força do prescrito no artigo 687.º do Código Civil. A ineficácia prescrita nesta norma não corresponde, contudo, à inexistência ou nulidade da hipoteca 10. É por isso que a hipoteca, sendo válida (repare-se), pode a todo o tempo ser acolhida no Registo desde que, bem entendido, respeite a bem que a lei sujeite a registo. O artigo 688.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil prescreve que são hipotecáveis as coisas móveis que, para este efeito, sejam por lei equiparáveis às imóveis, donde nos parece possível concluir que, à míngua de lei nesse sentido, a embarcação de recreio em causa não pode ser objecto de hipoteca 11. Cremos que o ponto fulcral, embora não equacionado pelo Banco, gira precisamente em torno da análise da escritura pública de hipoteca de bem móvel (rectius, de embarcação de recreio), não equiparado por lei a imóvel, mas tal matéria 8 Cfr., adrede, o que prescrevem sobre as coisas imóveis e móveis os artigos 204.º e 205.º do Código Civil. 9 A hipoteca sobre navios mercantes é desde há muito admitida entre nós. Recorde-se que já o vetusto Código Comercial de Ferreira Borges, aprovado em 1833, a previa. 10 Cfr. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in Código Civil Anotado, I Volume, págs. 630 e segs. 11 Como se sabe, sobre coisas móveis não hipotecáveis é susceptível de recair penhor cfr. o preceituado nos artigos 666.º e segs. do Código Civil e MENEZES CORDEIRO, in ob. cit., pág. 748. 7

excede notoriamente a economia deste parecer pelo que nos dispensamos de a desenvolver. De qualquer modo, sempre adiantaremos que a correcção ou não da qualificação efectuada pelas partes no negócio jurídico não vincula o intérprete 12. 5.3.1 A constituição da hipoteca depende da sua inscrição no registo 13 veja-se, designadamente, o que dispõem os artigos 2.º, n.º 1, alínea h), e 4.º, do Código do Registo Predial, o artigo 4.º do Registo da Propriedade Automóvel e o artigo 4.º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 42 644, de 14 de Novembro de 1959. Como se sabe, o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem nos termos e por força do prescrito no artigo 6.º, n.º 1, do CRP, aplicável também ex vi do artigo 29.º do Registo da Propriedade Automóvel ao registo de veículos e ao de navios por força do prescrito no artigo 19.º do decreto-lei n.º 42 644, e no artigo 12.º do Código do Registo Comercial. 5.4 Como decorre do prescrito nos artigos 704.º, 710.º e 712.º do Código Civil, o nosso ordenamento jurídico comporta as seguintes modalidades de hipoteca: a legal, a judicial 14 e a voluntária. Destas, apenas reveste pertinência para o caso dos autos a hipoteca voluntária. Esta pode ser instrumentalizada em escritura pública (artigo 80.º do CN), testamento (artigo 714.º do Código Civil) e documento particular autenticado (criado pelo artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho. 5.5 Como é sabido, o registo tem, em regra, efeitos meramente declarativos, o que equivale por dizer que não integra nenhum facto complexo de produção sucessiva em que ele seja o culminar da aquisição do direito real. Só é constitutivo em relação à hipoteca, e mesmo neste âmbito nem todos os autores são unânimes, defendendo alguns que ela «existe» mesmo sem o registo 15. A doutrina maioritária, porém, sustenta que se nem entre as partes tem eficácia, só emergindo com um mínimo de força jurídica depois do registo, então é porque essa 12 No que concerne à interpretação e integração dos negócios jurídicos, veja-se, entre muitos outros, MOTA PINTO, in Teoria Geral de Direito Civil, 4.ª edição, 2005, pág. 441 e segs. 13 Veja-se, no que concerne aos efeitos do registo, CARVALHO FERNANDES in Lições de Direitos Reais, pág. 126 e segs. 14 O Código de Seabra apenas contemplava as hipotecas legais e as voluntárias. As hipotecas judiciais encontravam-se previstas no Código de Processo Civil. 15 Com efeito, OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Civil Reais, pág. 357, sustenta que, no caso da hipoteca, o registo é meramente condicionante da eficácia absoluta. 8

alegada «existência» não tem efeitos, e se só mediante o registo os adquire então é porque o registo é constitutivo 16. Na verdade, segundo José Alberto C. Vieira 17, «o registo constitui uma parte, a parte final, do processo de constituição do direito real hipoteca, e não uma mera condição de oponibilidade. O registo tem, pois, neste caso, eficácia constitutiva de um direito real». 6 Por fim, não podemos deixar de realçar que é sobejamente reconhecido que a hipoteca traduz a mais sólida garantia das obrigações e que, por isso, reveste enorme importância económica pois, além de permitir aos titulares de coisas imóveis ou móveis sujeitos a registo um acesso mais rápido e barato ao crédito de que necessitem, incute também no credor a ideia de que existe nestes casos um mínimo de riscos na satisfação do seu crédito. Ora, da margem de risco decorre, na razão inversa, a carestia ou a barateza do crédito, donde o interesse prático de credores e devedores o eliminarem ou, pelo menos, reduzirem à sua ínfima expressão. A hipoteca, segundo Menezes Cordeiro 18, constitui um factor de dinamização do direito das coisas. Pense-se no registo predial (e nos demais registos, acrescentamos nós). 7 Em face do que precede, afigura-se-nos indiscutível que as ER não estão sujeitas a registo comercial, por força do disposto nos artigos 19.º, n.ºs 1 e 3, e 72.º, n.ºs 1 e 3, do RGC, bem como nos artigos 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 42 644, pelo que, enquanto não existir lei que preveja o registo das embarcações de recreio 19, não se pode proceder ao pretendido registo. Porém, o quadro jurídico global do comércio marítimo não é satisfatório, sendo de clara evidência que, actualmente, os preceitos vigentes na lei portuguesa não 16 Cfr., entre outros, MENEZES CORDEIRO, in Direitos Reais, 1993, Reprint, págs. 282, 17 In Direitos Reais, 2008, pág. 289. 18 Ob. cit., pág. 754 e segs. 19 No Código do Registo de Bens Móveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 277/95, de 25 de Outubro, prevê-se o registo de hipoteca sobre embarcações de recreio como decorre do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, alínea b), e 44.º, n.º 1. Porém, como é sabido, o referido Código não chegou a entrar em vigor por falta de regulamentação cfr. o disposto nos artigos 4.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 277/95. 9

correspondem às necessidades da vida social, i.e., à fase de intensa renovação que o Direito atravessa 20. Por isso, do ponto de vista do direito a constituir, não podemos deixar de salientar a necessidade imperiosa de se introduzir no nosso ordenamento jurídico, com a brevidade possível, o registo comercial das embarcações de recreio e de determinados factos jurídicos que lhes respeitem, demandado, aliás, pelos agentes económicos designadamente com vista à protecção dos interesses antitéticos do credor e do devedor, i.e., à facilitação do acesso ao crédito, pelo lado do devedor, e à certeza de que o credor não vê frustrado o seu crédito, contribuindo assim para o almejado desenvolvimento económico tendo sempre presente a segurança do comércio jurídico decorrente do referido registo. III Como síntese das reflexões expostas, podemos firmar as seguintes CONCLUSÕES I As embarcações de comércio, de pesca, rebocadores e auxiliares constituem a marinha mercante e designam-se por embarcações mercantes como decorre da classificação das embarcações nacionais consagrada no artigo 19.º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de Julho. II As embarcações de recreio integram a marinha de recreio, pelo que não são consideradas embarcações mercantes, como resulta da análise dos n.ºs 1 e 3 do citado artigo 19.º do Regulamento Geral das Capitanias. 20 Num plano mais amplo, a premência da reforma do Direito Comercial tem sido clamada por meritórias vozes, como a de FERNANDO OLAVO (MENEZES CORDEIRO e GONÇALVES PEREIRA) que propunha a reforma do Direito Marítimo mediante um dos seguintes métodos: ou rever e completar o Livro Terceiro do Código Comercial, epigrafado «Do Comércio Marítimo», ou elaborar um novo Código de Navegação Marítima. MÁRIO RAPOSO, enquanto Ministro da Justiça, optou por reformar paulatinamente alguns institutos específicos, mediante publicação de legislação extravagante, tentando salvaguardar a unidade e a coerência do sistema. Mais recentemente, o XVII Governo Constitucional pretendeu fazer aprovar uma «Lei de Navegação Marítima», na qual agrupava matérias marítimas a partir do núcleo tradicional do Direito Comercial Marítimo, mas, entretanto, a iniciativa legislativa (Proposta de Lei n.º 281/X) caducou. Também JANUÁRIO GOMES, entre outros, defendeu nas II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, de 2010, subordinadas ao tema: O Navio (bem como no BOA, n.º 74, 2011, pág. 34 e segs.), a necessidade de se aprovar um Código Marítimo ou um Código da Navegação Marítimo que corte as amarras ao Código Comercial que tolhem o Direito Marítimo. 10

III As embarcações nacionais, com excepção das pertencentes à Armada, estão obrigatoriamente sujeitas a registo de propriedade junto das autoridades marítimas nacionais (AMN) para que possam exercer a actividade que determina a sua classificação, como decorre do prescrito no n.º 1 do artigo 72.º do referido Regulamento Geral das Capitanias. IV Para além do aludido registo, as embarcações mercantes estão também sujeitas a registo comercial nos termos da respectiva lei, por força do prescrito no n.º 3 do artigo 72.º do citado Regulamento. V O registo comercial dos navios mercantes e dos factos jurídicos que lhes respeitem encontra-se previsto e regulamentado nos Decretos-Leis n.ºs 42 644 e 42 645, de 14 de Novembro de 1959, ainda em vigor, atenta a excepção consignada no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 403/86, de 3 de Dezembro. VI Actualmente, não existe qualquer disposição legal que preveja o registo comercial das embarcações de recreio, ou de qualquer facto jurídico sobre elas, fora do âmbito do Registo Internacional de Navios da Madeira MAR, pelo que o pretendido registo de hipoteca não pode ser efectuado. Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico de 24 de Fevereiro de 2011. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora, Luís Manuel Nunes Martins, João Guimarães Gomes Bastos, Carlos Manuel Santana Vidigal, José Ascenso Nunes da Maia. Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 02.03.2011. 11

FICHA Proc.º n.º C. Co. 91/2010 SJC-CT Súmula das questões abordadas - Registo técnico de embarcações mercantes artigos 72.º do Regulamento Geral das Capitanias. - Registo comercial de embarcações mercantes Decreto-Lei n.º 42 644 e Decreto n.º 42 645, ambos de 14 de Novembro de 1959, e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 403/86, de 3 de Dezembro. - Registo comercial de embarcações de recreio no MAR Decretos-Leis n.ºs 96/89, de 28 de Março, e 393/1993, de 23 de Novembro. - Registo de embarcações de recreio Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio. - Inexistência de normas que prevejam o registo das embarcações de recreio «nacionais». - Necessidade urgente de produção legislativa. ***** 12