Monitoramento comunitário da qualidade da água: uma ferramenta para a gestão participativa dos recursos hídricos no semi-árido



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Transcrição:

Monitoramento comunitário da qualidade da água: uma ferramenta para a gestão participativa dos recursos hídricos no semi-árido Maria Cléa Brito de Figueirêdo Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira Suetonio Mota, Morsyleide de Freitas Rosa Lúcia de Fátima Pereira Araújo Ênio Girão, Bryan L. Ducan RESUMO: No Brasil, o envolvimento da sociedade civil na gestão das águas tem sido promovido por meio da implantação de Comitês de Bacias Hidrográficas e de campanhas educativas sobre a importância da gestão hídrica. Entretanto, a efetiva participação comunitária vem sendo comprometida pelo desconhecimento dos problemas ambientais locais que se refletem sobre a quantidade e qualidade da água disponível. O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a gestão participativa e o monitoramento qualitativo dos recursos hídricos no país, avaliando os benefícios oriundos da adoção do modelo de monitoramento comunitário dos Vigilantes da Água Global (Global Water Watch GWW) no semi-árido. São analisados os desafios e oportunidades relacionadas à aplicação do modelo, apresentando-se a experiência na formação de grupos de monitoramento no assentamento rural Santa Bárbara, Jaguaretama - CE. Os resultados obtidos com a implantação do modelo reforçam a importância do aprender fazendo na mudança de atitude e na criação de uma consciência política, atributos essenciais à participação ativa da sociedade na gestão das águas. Palavras-chave: gestão participativa, monitoramento comunitário, qualidade da água, semi-árido nordestino. ABSTRACT: In Brazil, the engagement of the civil society in water management actions has been promoted through the implantation of Waterbasin Committees and environmental education campaigns. However, the effective public participation has been inhibited by their lower environmental literacy, leading to greater problems of water scarcity and quality. This work aims to reflect about participatory management and water quality monitoring in the country, evaluating the benefits of adopting the Global Water Watch (GWW) model of community-based water quality monitoring in Brazil semi-arid region. Challenges and opportunities related to the adoption of this model are analyzed, presenting the experience of organizing water monitoring groups in the Santa Bárbara rural settlement, Jaguaretama, Ceará. The results obtained with the adoption of the model reinforce the importance of learning by doing in changing attitudes and in the formation of a political consciousness, essential attributes to the active participation of society in the waterbasin management. Keywords: participatory management, communitybased monitoring, water quality, semi-arid INTRODUÇÃO A água é um recurso que está disponível em quantidade e qualidade variadas no tempo e no espaço, independente das necessidades humanas. No Brasil e no mundo, situações de escassez hídrica e/ou insatisfação dos usuários com a qualidade das águas são comuns, requerendo seu gerenciamento para equalização da demanda com a oferta hídrica. A partir da década de 90, as diretrizes para a gestão dos recursos hídricos em todo o mundo afirmam a importância da integração das questões relacionadas à água com as questões ambientais, da descentralização das ações e da participação da sociedade no planejamento e implementação de ações que garantam os usos múltiplos. Essas diretrizes estão presentes na Declaração de Dublin (1992),

REGA Vol. 5, no. 1, p. 51-60, jan./jun. 2008 52 na Agenda 21 e na Política Nacional de Recursos Hídricos. O envolvimento de representantes da sociedade civil brasileira na gestão das águas tem sido promovido pelos governos federal e estadual com a implantação de Comitês de Bacias hidrográficas em todo o território nacional e com a realização de campanhas educativas informando a população sobre a importância da gestão hídrica na qualidade de vida. Entretanto, a participação comunitária nos Comitês vem sendo comprometida pelo desconhecimento dos problemas ambientais locais e regionais que se refletem sobre a quantidade e qualidade da água disponível. Esse fato é especialmente comprometedor em regiões de baixa renda e escolaridade, características da região semi-árida nordestina. Nessas regiões, comunidades afastadas dos rios perenizados e dos grandes e médios reservatórios, sobrevivem da agricultura de sequeiro e da criação de ovinos e caprinos, abastecidas pela água acumulada em pequenos reservatórios, cisternas e poços, em sua maioria, de águas salobras. Essas localidades não são abrangidas por ações de monitoramento da quantidade e da qualidade da água, acarretando o desconhecimento pela população local da ocorrência de contaminação dos corpos hídricos e dos problemas associados à contaminação. Esse trabalho aborda o processo participativo na gestão hídrica no Brasil, vinculada a realidade física e social do semi-árido, apresentando um modelo de monitoramento comunitário da qualidade da água, como estratégia capaz de fomentar a participação de comunidades sertanejas na gestão hídrica. VISÃO HISTÓRICA DA GESTÃO PARTICIPATIVA DAS ÁGUAS NO BRASIL A gestão pública das águas no Brasil foi marcada por uma mudança de paradigma na compreensão da questão hídrica e na sua forma de gestão. Até meados da década de 70, a água era compreendida como um recurso isolado do sistema natural, abundante, com exceção da região semi-árida nordestina, e prioritária para o desenvolvimento do país, no que concerne ao seu uso para a agricultura irrigada e como fonte geradora de energia elétrica. Com essa visão, foi estabelecido, em 1934, o Código das Águas (Decreto 24.643, de 10/07/1934), marco regulatório que possibilitou a expansão do setor de energia hidroelétrica no país. A administração da água, segundo o Código, ocorreu de forma centralizada nos governos federal e estadual e esteve focada na gestão quantitativa, na concessão de uso para geração de energia e, posteriormente, para irrigação de projetos públicos. A mudança de paradigma para uma gestão integrada e participativa ocorreu como resultado de dois processos primordiais. Primeiramente, intensificaram-se em todo o mundo os debates das questões ambientais, que integrava a água aos demais recursos naturais, ressaltando sua situação de escassez e degradação da qualidade, resultante do desperdício no seu uso, do aumento da poluição, do desmatamento e do uso inadequado do solo na agricultura e no meio urbano. A integração da gestão hídrica à gestão ambiental teve como principais fóruns mundiais de discussão a Conferência Internacional sobre Desenvolvimento das Águas e do Meio Ambiente (1992), a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-1992) e a Conferência sobre Avaliação e Gerenciamento de Recursos Hídricos (1996). O envolvimento de diferentes grupos civis no debate ecológico global desencadeou a formação de associações comunitárias estruturadas com o objetivo de atuar na melhoria da qualidade de vida local, propagando-se o pensamento, no final do século XX, da importância de pensar globalmente e agir localmente. A participação da população na gestão hídrica tornou-se aparente com a constatação da escassez hídrica e necessidade de racionalização do uso da água para garantia de reservas em quantidade e qualidade aceitáveis. A Declaração de Dublin, de 1992, chama a atenção dos países para os riscos inerentes aos problemas de desperdício e poluição das reservas hídricas e para a necessidade de se contar com a participação da sociedade na adoção de ações que levem ao seu uso eficaz. Posteriormente, aliada ao debate ecológico global, a democratização política no Brasil, a partir da década de 80, arraigou na política e na legislação a busca da preservação do meio ambiente a partir da educação e participação da sociedade civil. A Constituição de 1988 aponta o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado imputando ao poder público e a coletividade o dever de protegê-lo. Já a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938, de 31/08/1981) integrava a gestão da água na gestão dos recursos naturais e reconhecia a educação ambiental como instrumento para a participação da comunidade na defesa dos recursos ambientais. Os debates mundiais sobre a importância da gestão hídrica no desenvolvimento sustentável e a

Figueirêdo, M. C. B. de; Vieira, V. P. P. B.; Mota, S.; Rosa, M. F.; Araújo, L. F. P.; Girão, Ê.; Ducan, B. L. Monitoramento comunitário... legislação ambiental nacional já em vigor refletiramse na formulação de uma nova política de recursos hídricos no Brasil, promulgada pela Lei 9.433 em 08/01/1997. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) definiu os princípios e instrumentos de gestão das águas no país, tendo como objetivos: - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos; - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos. Com esses objetivos, o governo consolida seu compromisso com a gestão da quantidade e da qualidade da água para usos múltiplos, de forma integrada a gestão dos demais recursos ambientais. Além disso, essa legislação reconhece a água como indispensável à vida, como bem escasso e com valor econômico, e como bem a ser gerenciado de forma descentralizada e com a participação ativa da sociedade civil nas diferentes bacias hidrográficas do país. Anteriores a legislação federal, leis estaduais sobre o gerenciamento de recursos hídricos em vários estados brasileiros foram promulgadas fundamentadas nos mesmos princípios da PNRH de participação da sociedade e de gestão integrada, dentre eles: São Paulo, 1991; Ceará, 1992; Rio Grande do Sul, 1994; Bahia, 1995; Sergipe, 1995; Paraíba, 1996 e Pernambuco, 1997 (Barth, 2002). A principal ação política fomentadora da gestão participativa foi a criação de comitês em bacias hidrográficas. Segundo a PNRH, os Comitês de Bacias são colegiados compostos por representantes da União, dos Estados, dos municípios, das entidades civis de recursos hídricos com atuação na bacia e de usuários das águas. Os Comitês têm como objetivos principais debater as questões hídricas locais e regionais, aprovar os Planos de gestão de bacias e acompanhar o cumprimento das metas estabelecidas nos respectivos planos. O Rio Grande do Sul foi o primeiro Estado brasileiro a formar um Comitê de Bacias, em 1988, na bacia do Rio dos Sinos (Nogueira, 2004). O Estado do Ceará foi o primeiro Estado nordestino a organizar Comitês de Bacia, sendo o primeiro Comitê o da bacia do Curu, formado em 1997 (Souza Filho, 2001). Atualmente, o Ceará tem instalados os comitês referentes às 10 bacias estaduais, faltando apenas a bacia do Parnaíba que é uma bacia federal. Outros Estados, como Minas Gerais, também possuem experiências de gestão das águas com a participação ativa de Comitês de Bacias (Coelho, 2001). No Ceará, além dos Comitês de Bacias também vêm sendo constituídas entidades deliberativas sobre as questões hídricas atuantes em microbacias, como os Conselhos Gestores de Recursos Hídricos. Esses Conselhos são formados em comunidades que se abastecem de açudes, visando fomentar a participação na alocação de água e no estabelecimento de regras de uso e preservação de um determinado manancial (Garjulli, 2001). A formação de Comitês de Bacias é um avanço na democratização da gestão das águas no país, constituindo-se num espaço de debate, conscientização e formulação de estratégias diferenciadas de uso eficiente da água, considerando-se as especificidades socioeconômicas e ecológicas das regiões brasileiras. Seu processo de constituição requer a mobilização da sociedade, educação ambiental e contínuo incentivo à participação na gestão hídrica (Garjulli, 2001; Nogueira, 2004). Sua manutenção requer apoio financeiro e institucional capaz de subsidiar as discussões e tomada de decisão pelos seus integrantes. Nesse processo, o conhecimento e a compreensão das questões relacionadas ao meio físico e aos problemas socioambientais inerentes a cada bacia hidrográfica é de extrema importância, além da atuação ativa da comunidade na resolução dos problemas. O conhecimento dos problemas inerentes aos recursos hídricos deve ser baseado em estudos particulares de cada bacia hidrográfica, embora essa informação muitas vezes não esteja disponível em meios não acadêmicos. A compreensão da intricada teia ecológica na qual a água é o fio principal, entretanto, requer que as ligações dessa teia possam ser estabelecidas por cada um a partir da vivência pelos membros da comunidade dos problemas ambientais de sua região. Somente essa compreensão permite o engajamento, a mudança de atitude pessoal e coletiva na busca pela melhoria da qualidade ambiental. O MONITORAMENTO DA QUALIDADE DA ÁGUA NO BRASIL O monitoramento da qualidade das águas, assim como da quantidade, é essencial ao planejamento da oferta hídrica, de forma a atender as necessidades dos diferentes usuários de uma bacia hidrográfica. Entretanto, historicamente no Brasil, o monitoramento da água tem sido focado na quantidade disponível 53

REGA Vol. 5, no. 1, p. 51-60, jan./jun. 2008 54 e no movimento das massas hídricas para o estudo do clima e planejamento energético e de irrigação. Em especial, na região semi-árida, onde a escassez hídrica compromete o desenvolvimento econômico e social da região, o monitoramento quantitativo tem sido o foco das ações governamentais, subsidiando a tomada de decisão quanto aos locais para construção de reservatórios, para instalação e expansão das redes de canais de irrigação e para transposição de água entre bacias. Segundo a Agência Nacional de Águas ANA, em 2006, a Rede Hidrometeorológica Nacional era composta por 4.341 estações, sendo 1.286 de monitoramento da qualidade da água, com um período trimestral de amostragem de cinco parâmetros: ph, turbidez, condutividade elétrica, temperatura e oxigênio dissolvido. Na avaliação da ANA, apenas 14 Estados brasileiros, em sua maioria localizados nas regiões sul e sudeste, possuem sistemas de monitoramento considerados bons ou ótimos (MMA, 2006). Com relação às redes estaduais de monitoramento da qualidade da água, a Fundação do Estado do Rio de Janeiro (FEEMA) e a Companhia de Tecnologia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) possuem as redes mais extensas e com as séries históricas mais longas do país, datando da década de 70 (Braga et al, 2002). No Ceará, a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH) iniciou em 1999 o monitoramento trimestral da salinidade das água em 117 reservatórios e em 2001 o monitoramento semestral em seções dos rios Parnaíba, Acaraú, Curu e Jaguaribe, além do monitoramento mensal de açudes que abastecem a região metropolitana de Fortaleza (COGERH, 2002). Outra importante rede de monitoramento da qualidade da água foi constituída a partir de 1986 com o Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano, do Ministério da Saúde (Freitas; Freitas, 2005). A Portaria 518 de 25/03/2004 traz em seu texto um plano de amostragem e freqüência para coleta e análise de água para consumo humano para uma série de parâmetros físico-químicos, químicos e bacteriológicos, que também são de relevância para os demais usuários das águas numa bacia. Entretanto, esses dados não são de livre acesso, nem integram uma base de dados comum sobre qualidade da água no país. O monitoramento da qualidade das águas em todo o país se caracteriza por ser embrionário na administração de muitas instituições responsáveis pela gestão das águas e por ser realizado por instituições governamentais, que com as crises orçamentárias descontinuam as análises ou reduzem os parâmetros monitorados. As informações levantadas dificilmente estão acessíveis ao público em geral ou aos Comitês de Bacias. A imensa quantidade de cursos d água no país também limita o monitoramento aos principais rios e reservatórios, sendo inexistentes informações sobre a qualidade da água de pequenos reservatórios, córregos e rios de 1 ª e 2 ª ordem em todo o país. Nesse contexto, destacam-se os projetos de monitoramento da qualidade da água implementados em comunidades, por possibilitarem o conhecimento, compreensão e participação ativa de cidadãos comuns na gestão local dos recursos ambientais. Nos últimos 20 anos, tem-se consolidado o trabalho de voluntários no monitoramento de rios e represas nos Estados Unidos. Esse trabalho vem sendo incentivado pela Agência de Proteção Ambiental americana (EPA), por compreender suas limitações financeiras e de recursos humanos no trabalho de monitoramento das águas e do benefício proveniente da parceria com a comunidade, na ampliação da compreensão das questões ambientais. Desde 1978, agências estaduais de meio ambiente americanas de 26 Estados têm financiado projetos de monitoramento comunitário da água. Estima-se que em 2004, cerca de 5.000 voluntários monitoravam a qualidade da água em mais de 1.800 pontos nos Estados Unidos (Overdevest et al, 2004). O MODELO DE MONITORAMENTO COMUNITÁRIO DA ÁGUA DOS VIGILANTES DA ÁGUA GLOBAL (GLOBAL WATER WATCH GWW) Desde 1992, a Universidade de Auburn, no Alabama, Estados Unidos, atua na consolidação de uma rede mundial de Vigilantes da Qualidade da Água (GWW). A rede no Alabama contava, em 2006, com 240 grupos de monitoramento, coletando e analisando dados em 1.800 diferentes locais em 700 corpos d água (CWM, 2006). Grupos de monitoramento na Tailândia, Filipinas, Equador, México e Brasil integram essa rede (Auburn University, 2008). A rede GWW foi estruturada de acordo com o modelo conceitual de monitoramento comunitário apresentado na Figura 1 que culmina na melhoria da qualidade de vida de comunidades, numa dada bacia hidrográfica.

Figueirêdo, M. C. B. de; Vieira, V. P. P. B.; Mota, S.; Rosa, M. F.; Araújo, L. F. P.; Girão, Ê.; Ducan, B. L. Monitoramento comunitário... 55 Figura 1. Modelo de Monitoramento Comunitário da rede GWW. Fonte: CWM (2006) Pessoas As pessoas se organizam em grupos responsáveis pela identificação de pontos de monitoramento, coleta e avaliação da qualidade da água, organização dos dados, avaliação dos problemas encontrados e definição de estratégias de atuação para solução dos problemas. Embora no Alabama a rede de monitoramento seja constituída por voluntários graduados, a experiência alcançada pela rede GWW em países em desenvolvimento mostra que grupos formados em comunidades onde a escolaridade é baixa podem conduzir projetos eficientemente quando são adequadamente capacitados. Indispensável ao monitor é a motivação para contribuir na melhoria da qualidade de vida de sua comunidade. Tecnologia Para que o monitoramento possa ser realizado por não especialistas em qualidade da água, a tecnologia a ser utilizada deve permitir a análise dos dados em campo, ser de baixo custo, simples de operar e precisa. A Universidade de Auburn desenvolveu um protocolo de coleta e análise da qualidade da água, aprovado pela EPA, para os seguintes parâmetros físico-químicos e bacteriológicos: oxigênio dissolvido, ph, alcalinidade, dureza, turbidez, temperatura, sólidos suspensos totais, Escherichia coli e outros coliformes. Também foi estabelecido um protocolo para biomonitoramento em rios de 1 ª e 2 ª ordem, por meio da identificação, contagem e classificação de macroinvertebrados bentônicos. As análises são realizadas

REGA Vol. 5, no. 1, p. 51-60, jan./jun. 2008 56 com kits adaptados para a rede, utilizando-se um kit para os parâmetros físico-químicos desenvolvido pela empresa Lamotte, um kit Coliscan Easygel para os parâmetros bacteriológicos e o jogo Macromania para o biomonitoramento (CWM, 2006). Dados confiáveis A geração de dados confiáveis requer a capacitação dos grupos e a estruturação de um plano de monitoramento pela comunidade que permita direcionar os esforços na aquisição e interpretação dos dados coletados. A rede GWW desenvolveu manuais em linguagem acessível para cada parâmetro de monitoramento mencionado. Freqüentemente são realizados cursos para formação de monitores na metodologia de monitoramento comunitário da qualidade da água. A rede dispõe ainda de um sistema de informação acessível a qualquer pessoa via Internet (www. globalwaterwatch.org), que armazena os dados do monitoramento de corpos d água em várias regiões do mundo e gera gráficos de tendência e que interrelacionam parâmetros (Auburn University, 2008). Utilizando dados locais Os dados gerados podem ser utilizados pelas comunidades na condução de atividades de educação ambiental, proteção e recuperação ambiental e atuação política junto às instituições governamentais, na formulação de políticas que contribuam para o manejo sustentável dos recursos hídricos na região. Para tanto, é imprescindível aos grupos a compreensão da legislação pertinente aos recursos hídricos e ambientais, além do conhecimento técnico sobre fontes potenciais de poluição hídrica, indicadores ambientais, volume de diluição de cargas poluentes, monitoramento da qualidade da água, dentre outros. Divulgação A discussão dos resultados das análises junto com a comunidade é promovida em seminários onde especialistas auxiliam nas discussões dos problemas detectados, levantando possíveis causas e possíveis ações que possam contribuir para melhoria do sistema hídrico. Grupos e Projetos Sustentáveis As seguintes características são importantes para sustentabilidade do programa e grupos de monitoramento: trabalho em conjunto com lideranças locais, mostrando a importância do monitoramento da água na melhoria da qualidade de vida; planejamento das ações de monitoramento; percepção pelo grupo da relevância do trabalho no contexto sóciopolítico e ambiental; adaptação dos objetivos e forma de atuação da rede GWW às características sociais e econômicas de cada país e região; parcerias com instituições de ensino e pesquisa, governamentais e não governamentais, empresas e instituições de financiamento, essenciais na formulação e implementação do programa. No Estado do Alabama, o GWW fundou uma organização sem fins lucrativos, a Associação de Vigilância da Água do Alabama que impulsiona os trabalhos da rede com suporte técnico e recursos financeiros obtidos de instituições doadoras, além de atuar nos principais fóruns políticos ambientais. Já a Universidade de Auburn, por meio do Centro Internacional de Aquicultura e Ambientes Aquáticos, desenvolveu e mantém o Plano de Garantia da Qualidade dos dados coletados pelos monitores, o banco de dados com informações de corpos d água em todo o mundo, materiais didáticos, capacitações e debates com os diferentes grupos de monitoramento em todo o mundo. LIÇÕES APRENDIDAS NA APLICAÇÃO DO MODELO NA COMUNIDADE RURAL DE SANTA BÁRBARA, CEARÁ. No Brasil, o Fundo Cristão para Crianças FCC possui uma rede de monitoramento comunitário junto a 24 comunidades rurais no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, sendo a primeira experiência no país da rede GWW (Siste et al, 2005). Em 2005, a Embrapa Agroindústria Tropical iniciou a formação de grupos de monitoramento no Assentamento rural de Santa Bárbara, Jaguaretama Ceará, atuando atualmente em mais quatro comunidades. As informações sobre o programa Vigilantes da Água no Ceará, coordenado pela Embrapa Agroindústria Tropical encontra-se disponível em www.cnpat.embrapa.br/vigilantes (Embrapa Agroindústria Tropical, 2008). O Assentamento Santa Bárbara, localizado no município de Jaguaretama, Ceará, compreende 56 famílias e está instalado numa área de 1.373 ha, na bacia do Jaguaribe. Mesmo localizada nas margens do açude de mesmo nome, a fonte de captação de água para consumo humano é o açude Alegre, situado

Figueirêdo, M. C. B. de; Vieira, V. P. P. B.; Mota, S.; Rosa, M. F.; Araújo, L. F. P.; Girão, Ê.; Ducan, B. L. Monitoramento comunitário... a 8 km de distância. Foi perfurado um poço pelo DNOCS, mas a água apresentou alta salinidade, sem condição de consumo. As águas do açude Santa Bárbara são utilizadas para irrigação de pequenas áreas de feijão e sorgo, dessedentação animal e banho. O açude recebe os esgotos gerados na escola local, após tratamento com decantação e cloração. Em 2006, a comunidade sofria com problemas de pele atribuídos ao contato com a água que recebe (Figueirêdo et al, 2006). O programa de monitoramento da qualidade da água implantado em Santa Bárbara tem como objetivo dispertar a consciência ambiental na comunidade, com a formação de um grupo de Vigilantes da Água capaz de utilizar e interpretar os resultados do kit bacteriológico americano do GWW (Coliscan Easygel), conhecer e compreender os fatores determinantes da realidade encontrada e transformar essa realidade atuando junto aos demais pessoas da comunidade na melhoria das condições ambientais. A primeira ação visando a implantação do programa de monitoramento comunitário da qualidade da água, nos moldes do modelo GWW, foi a identificação de parcerias locais e de lideranças que estivessem interessadas em desenvolver ações de cunho ambiental no assentamento. Nesse sentido, foi estabelecida uma parceria com a Cáritas Diocesana e o Grupo Espírita Paulo Estevão, entidades já atuantes na região. A iniciativa conta ainda com a parceria do FCC, Centro Federal Tecnológico do Ceará (CE- FET/CE), da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECE). A partir de 2005, vem sendo realizados, na escola do Assentamento, cursos de capacitação dos Vigilantes da água, sendo abordados assuntos relacionados à poluição ambiental, importância e delimitação de uma bacia hidrográfica e uso do kit de monitoramento bacteriológico americano na avaliação de coliformes totais e Escherichia coli. O uso do kit bacteriológico permite trabalhar com os alunos vários conceitos importantes como contaminação microbiológica, indicador ambiental, concentração de poluentes e volume necessário à diluição de determinada concentração de poluentes. Nos cursos, foram definidos 10 pontos de monitoramento na bacia, a partir de uma dinâmica de grupo onde os alunos desenharam o mapa das fontes hídricas para abastecimento da comunidade, identificando as mais importantes e potencialmente poluídas. Após a coleta e interpretação dos dados, os Vigilantes confeccionaram painéis com as informações do programa e os resultados das análises realizadas, para serem mostrados em reuniões com a comunidade. A Tabela 1 mostra os resultados de quatro campanhas de monitoramento realizadas pelos Vigilantes, entre 2005 e 2007. Na campanha de 2005, os resultados revelaram contaminação da água com E. coli na maioria das fontes de captação da comunidade, incluindo a água da cisterna e dos filtros da escola local. De acordo com a Portaria nº 518 do Ministério da Saúde (MS), de 25 de Março de 2004, E. coli deve estar ausente em mananciais de abastecimento de água para consumo humano. TABELA 1 Resultados das análises bacteriológicas para E. coli nos pontos de monitoramento Pontos E. coli (NPM.100 ml -1 ) de monitoramento 28/06/05 05/09/05 22/11/06 26/11/07 Barragem 0 0 100 0 Cisterna da Vanessa 0 0 Açude Alegre 67 0 0 0 Cisterna do Valtecino 1.200 0 Campina Alegre 0 200 1.333 Açude Mufineza 933 467 200 233 Cisterna Escola 733 0 100 Filtro Escola 67 0 100 0 Açude Grande 0 0 0 200 Almas Açude Novo 0 0 167 Com os dados obtidos, a comunidade levou ao conhecimento da Prefeitura local o problema da água da escola, conseguindo que a fonte de abastecimento dos alunos passasse a ser água tratada no sistema de distribuição da Sede municipal, transportada por carros-pipa para a cisterna da escola. Também foi providenciado a limpeza da cisterna e filtros da escola. Na primeira campanha de 2006, as análises da água da cisterna e dos filtros da escola não apresentaram contaminação. Entretanto, na segunda coleta de 2006, nova contaminação foi identificada nesses locais, mostrando a necessidade de uma atuação contínua de educação ambiental dos Vigilantes junto á comunidade e a realização de investimentos na construção de uma cisterna na Escola para captação 57

REGA Vol. 5, no. 1, p. 51-60, jan./jun. 2008 58 da água da chuva. Com a participação ativa da comunidade e instituições parceiras foi possível construir essa cisterna na Escola, que deixou de utilizar as águas dos açudes e de carros-pipa como fonte de água para seus alunos (Girão et al, 2007). Em 2007, somente uma análise foi conduzida com a utilização do kit, devido à demora na sua importação. Algumas reflexões podem ser realizadas a partir dessa experiência: a parceria com ONGs locais possibilitou a rápida mobilização da comunidade para o tema e interesse das lideranças para implementação da rede de monitoramento; a tecnologia de análise empregada foi facilmente compreendida por estudantes, donas de casa e agricultores sem experiência prévia em monitoramento da água. Esse fato motivou o grupo, possibilitando um maior engajamento dos Vigilantes; ações simples de limpeza de filtros e de reservatórios de água puderam ser implantadas de imediato, melhorando a qualidade da água de muitas fontes de abastecimento, reforçando a importância do acesso ao conhecimento na melhoria da qualidade ambiental; a atuação política do grupo foi imediata e os resultados positivos dessa intervenção reforçaram a importância das atividades de monitoramento na comunidade e do trabalho conjunto com o setor público; o trabalho de educação ambiental dos Vigilantes junto à comunidade deve ser contínuo para que as ações de prevenção da poluição hídrica sejam continuamente adotadas. A demora na aquisição dos Kits e seu custo de importação descontinuam o trabalho de monitoramento. DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA APLICAÇÃO DO MODELO GWW NO SEMI-ÁRIDO A adaptação do modelo de monitoramento comunitário da qualidade da água pela comunidade, desenvolvido pelo GWW pode contribuir para a consolidação da gestão participativa das águas no Brasil, em especial, na região semi-árida. O monitoramento comunitário pode beneficiar comunidades sertanejas em dois aspectos principais: construção da cidadania e geração de informação sobre qualidade da água. O monitoramento nos moldes apresentados constitui uma ferramenta rica no processo participativo, defendido na legislação e política nacional de recursos hídricos. Monitores conscientes das questões hídricas de sua comunidade e engajados com o desenvolvimento de soluções locais tornam-se atores ativos em suas comunidades, podendo contribuir para o aprofundamento das discussões nos comitês de bacias aos quais pertencem, ampliando o escopo das decisões quando são consideradas informações de qualidade da água até então desconhecidas. O desconhecimento das questões hídricas locais tem sido um dos grandes entraves à participação ativa e consciente dos membros de comitês de bacias no Ceará. Outro benefício do estabelecimento de uma rede de monitoramento comunitária é a ampliação do conhecimento da qualidade da água em localidades distantes dos grandes reservatórios de abastecimento e rios perenizados. Nessas comunidades, a água para todos os usos advém de pequenos açudes ou poços de vazão restrita, que servem de fonte de água para consumo humano, criação de animais e agricultura. A falta de informação sobre a qualidade da água nessas comunidades é quase absoluta. A rede de monitoramento da qualidade da água em operação no país já enfrenta sérias dificuldades técnicas e financeiras para manter as análises nos atuais pontos de monitoramento nos grandes rios e represas, sendo reduzidas as chances de expansão da rede atual. Os dados provenientes do monitoramento comunitário podem expandir a base de conhecimento atual, servindo de primeiro alerta para a tomada de ação governamental nas questões hídricas e possibilitando uma atuação mais eficaz em comunidades remotas. Entretanto, para que um programa de monitoramento comunitário possa ser implementado e mantido no médio e longo prazo em comunidades sertanejas, é necessário considerar questões de ordem social, econômica, institucional e tecnológica. A questão social está relacionada à baixa escolaridade e renda predominante em comunidades rurais e periurbanas no semi-árido. O desconhecimento da legislação e dos problemas associados à qualidade da água é generalizado, situação oposta à realidade americana, onde a rede GWW é formada por pessoas graduadas. Para formação de monitores da qualidade da água, torna-se então necessária à capacitação de lideranças para a compreensão do que é uma bacia hidrográfica, das interações ambientais entre solo, água e biota e do estado atual de disponibilidade e quali-

Figueirêdo, M. C. B. de; Vieira, V. P. P. B.; Mota, S.; Rosa, M. F.; Araújo, L. F. P.; Girão, Ê.; Ducan, B. L. Monitoramento comunitário... dade das águas numa dada região. Essa capacitação deve ser realizada antes de se iniciar um programa de monitoramento para que a comunidade possa melhor efetuar as ações de planejamento anteriores a coleta e avaliação dos dados em sua bacia hidrográfica. A baixa renda da população requer o desenvolvimento de tecnologias de monitoramento menos onerosas. O programa GWW utiliza kits de monitoramento americanos que, por serem importados, acarretam um maior custo e tempo de aquisição, sendo importante o desenvolvimento de pesquisas voltadas à determinação de kits nacionais cujos resultados se assemelhem aos apresentados pelos importados. Pesquisas também são necessárias no desenvolvimento de novas técnicas de monitoramento simples e de baixo custo, como a definição de bioindicadores para avaliação da qualidade da água de açudes tropicais. A garantia da qualidade dos dados obtidos a partir de novas tecnologias de monitoramento é indispensável para a credibilidade dos resultados obtidos, requerendo o desenvolvimento e acreditação de planos de monitoramento que fazem uso dessas tecnologias. O baixo poder aquisitivo também requer o desenvolvimento ou adaptação de tecnologias de recuperação e proteção ambiental de baixo custo que possam ser utilizadas pela comunidade. A redução das pressões sobre a qualidade da água está relacionada principalmente a recuperação de áreas degradadas, a mudança de práticas agropecuárias e de disposição dos resíduos. Nesse sentido, são necessárias ações de pesquisa e extensão que subsidiem os grupos de monitoramento na implantação de melhores práticas de produção e saneamento ambiental. A capacitação proposta, a realização de pesquisas e a implantação de tecnologias alternativas menos poluentes pressupõem financiamento e corpo técnico multidisciplinar de apoio à formação de uma rede GWW local, que somente é possível com a formação de um arranjo institucional onde estão envolvidos ONGs, instituições de ensino e pesquisa, empresas e governo. Merece destaque nesse arranjo a formação de parceria entre ONGs e instituições de pesquisa e ensino, na mobilização social, capacitação e identificação de soluções ambientais compatíveis com a realidade socioeconômica de cada comunidade. CONCLUSÕES A gestão integrada, descentralizada e participativa dos recursos hídricos, diretriz nacional presente nas políticas públicas, necessita de instrumentos de gestão fomentadores do debate sobre qualidade ambiental, da água em particular, junto a comunidades em todo o país. Nesse trabalho, apresentou-se um modelo de monitoramento comunitário da qualidade da água que possibilita uma maior participação da sociedade na gestão dos recursos hídricos, por envolver as pessoas na compreensão dos seus problemas ambientais e no desenvolvimento de ações que acarretem a melhoria da qualidade da água e, consequentemente, da sua qualidade de vida. A implantação do modelo em estudo requer o estabelecimento de uma forte parceria entre instituições de ensino e pesquisa, organizações civis, o poder público e o setor privado. Ressalta-se aqui, o importante papel dos órgãos de ensino e pesquisa na integração dos demais parceiros e na adaptação do modelo à realidade do semi-árido, facilitando o acesso da comunidade ao conhecimento, desenvolvendo tecnologias de monitoramento nacionais, elaborando protocolos de monitoramento que garantam a qualidade e a análise dos dados obtidos, fomentando o debate aberto dos problemas encontrados, identificando melhores práticas de produção e saneamento e buscando os recursos financeiros necessários à implantação dessas ações. Os resultados obtidos com a implantação do modelo no assentamento rural Santa Bárbara, no Ceará, reforçam a importância do aprender fazendo na mudança de atitude e na criação de uma consciência política. Esses atributos são essenciais à integração das questões ambientais na gestão das águas e à participação ativa da sociedade nessa gestão. 59 Referências ANNUAL INTERNATIONAL WORKSHOP ON COMMUNITY-BASED WATER MONITORING FOR WATERSHED MANAGEMENT (CWM), 2, 2006. Auburn. Proceedings... Auburn: Auburn University, 2006. 120 p. AUBURN UNIVERSITY. Global Water Watch. Disponível em: http://www.globalwaterwatch.org. Acesso em: 12 de março de 2008. BARTH, F. T. Aspectos Institucionais do gerenciamento de recursos hídricos. In: REBOUÇAS, A. C.; BRAGA, B.; TUNDISE, J. G. Águas doces no Brasil: Capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. p. 563 597.

REGA Vol. 5, no. 1, p. 51-60, jan./jun. 2008 60 BRAGA, B.; PORTO, M; TUCCI, C. E. M. Monitoramento de quantidade e qualidade das águas. In: REBOUÇAS, A. C.; BRAGA, B.; TUNDISE, J. G. Águas doces no Brasil: Capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. p. 635 649. COELHO, M. F. C. D. A mobilização social para a gestão das águas e a experiência da primeira conferência das águas de Minas. In: ALVES.R. F. F. CARVALHO, G. B. B. (Org.). Experiências de Gestão dos Recursos Hídricos. Brasília: MMA/ANA, 2001. p. 79-90. COGERH. Rede de Monitoramento da qualidade da água operada pela COGERH. Fortaleza: COGERH, 2002. EMBRAPA AGROINDÚSTRIA TROPICAL. Vigilantes da Água. Disponível em: www.cnpat.embrapa.br/vigilantes. Acesso em: 16/03/2008. FIGUEIRÊDO, M. C. B.; ARAUJO, L. F. P.; GOMES, R. B.; ROSA, M. F; ALVES, A. B. Capacitação e formação de vigilantes da água: uma experiência na bacia do Jaguaribe CE. In: Simpósio Ítalo Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, 8, 2006, Fortaleza. Anais... Rio de Janeiro: ABES, 2006. FREITAS, M. B.; FREITAS, C. M. A vigilância da qualidade da água para consumo humano desafios e perspectivas para o Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde, v. 10, n. 4, p. 993 1004, 2005. GARJULLI, R. Experiência de gestão participativa dos recursos hídricos o caso do Ceara. In: ALVES, R. F. F.; CARVALHO, G. B. B. (Org.). Experiências de Gestão dos Recursos Hídricos. Brasília: MMA/ANA, 2001, p. 107-118. GIRÃO, E. G.; FUCK JÚNIOR, S. C.; ARAÚJO, L. F. P.; ROSA, M. F. Monitoramento participativo da qualidade da água em uma comunidade rural da bacia hidrográfica do rio Jaguaribe, Ceará, como instrumento do saneamento ecológico. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EM SANEAMENTO SUSTENTÁVEL: SEGURANÇA ALIMENTAR E HÍDRICA PARA A AMÉRICA LATINA, 2007, Fortaleza. Anais... Fortaleza: ECOSAN, 2007. p. 9. MMA. Plano Nacional de Recursos Hídricos. Brasília: MMA, 2006. NOGUEIRA, D. Participação e reconhecimento na organização social em torno da gestão dos recursos hídricos: uma análise comparada da bacia do Rio das Velhas/MG e bacia do Rio dos Sinos/RS. 2004. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2004. OVERDEVEST, C.; ORR, C. H.; STEPENUCK, K. Volunteer stream monitoring and local participation in natural resources issues. Research in Human Ecology, v. 11, n. 2, 2004. p. 177 185. SISTE, C. E.; DUNCAN, B.; FRANCA, N. Vigilantes da água: uma proposta metodológica para monitoramento participativo da qualidade da água em nível comunitário. Encontro por uma nueva cultura del água en América Latina, 2005, Fortaleza. Anais. Disponível em: www. unizar.es/fnca/america/index2.php?idioma=pt&x=052. Acesso em: 15 de março de 2008. SOUZA FILHO, F. A. Notas sobre planejamento de recursos hídricos no Ceará. In: Org.: ALVES, R. F. F. CARVALHO, G. B. B. (Org.) Experiências de Gestão dos Recursos Hídricos. Brasília: MMA/ANA, 2001, p. 9-12. Maria Cléa Brito de Figueirêdo Pesquisadora Embrapa Agroindústria Tropical, Fortaleza, CE. E-mail: clea@cnpat.embrapa.br Morsyleide de Freitas Rosa Pesquisadora Embrapa Agroindústria Tropical, Fortaleza, CE. E-mail:???????? Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira Professor Titular da Universidade Federal do Ceará UFC. E-mail:???????? Suetonio Mota Professor Titular da Universidade Federal do Ceará UFC. E-mail:???????? Lúcia de Fátima Pereira Araújo Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará - CEFET. E-mail:???????? Ênio Girão Analista da Embrapa Agroindústria Tropical. E-mail:???????? Bryan L. Ducan Diretor do Centro Internacional de Aqüicultura e Ambientes Aquáticos, Auburn University, Alabama, EUA. E-mail:????????