Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. 1



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Transcrição:

Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. 1 Palavras chave: Escrita; estilo; objeto; literatura Heloisa Caldas * A proposta neste trabalho é a de levantar algumas notas sobre a escrita de Guimarães Rosa destacando em seu estilo a tensão entre a transmissão do objeto ilegível, a letra no sentido lacaniano, e a produção significante de sentido do laço social. Com relação ao estilo, os leitores de Lacan conhecem bem a frase de Georges Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), citada por ele na abertura de sua coletânea dos Escritos: O estilo é o próprio homem 1. Lacan se afasta dela ao questionar o que é o homem. Ele acrescenta, à frase imortal de Buffon, que o estilo é o homem em seu endereçamento. Dois significantes nomeiam o destino desse endereçamento: o leitor e o aluno. Trata-se do estilo na transmissão, o que dá importância à representação e ao sujeito que ela implica. No entanto, Lacan não se detém na lógica da intersubjetividade, a despeito de seu convite ao leitor/aluno que ponha de si na interpretação. Respondendo ao que é o estilo, diz: o objeto pequeno a. Posteriormente, sintetiza ainda mais e muda o aforismo buffonesco para: o estilo é o objeto 2. Objeto que, a princípio, na teoria, teve um lugar de destaque como causa de desejo, mas que com a concepção de falasser ganha valor como causa de gozo no que suporta um sujeito entre a verdade e o saber. Ou seja, não há verdade que não seja sustentada por um saber, embora não se possa dizer que o saber é a verdade. O saber é o dizer que vem em socorro à falta da verdade 3. Dessa disjunção entre o saber e a verdade, o objeto é a causa que se apresenta no efeito, isto é no trabalho inconsciente de tentar conectar o saber à verdade, fazer um laço no lugar onde há uma ruptura. O objeto é causa e o estilo seu efeito, o saber fazer nesse fluxo significante que, como Lacan diz, ladra atrás da coisa 4. Isso que fala não encontra resposta, mas não cessa de dialogar e de tentar estabelecer uma ligação com o Outro. Um diálogo em parte de surdos, pela estrutura mesma da disjunção, mas que é indispensável pelo que consente ao objeto, ao vivo nessa ligação. 1 Publicado em Escrita e Psicanálise (2007). Rinaldi, D.; Costa, A. (orgs). Rio de Janeiro: Cia de Freud, pp. 79-84. 1

O estilo, portanto, mantém compromisso com o Outro, como indicam os traços do social, do armazém de onde a matéria prima é retirada. No entanto, também faz obstáculo ao Outro, pois guarda a condição do objeto, da disjunção entre verdade e saber. Está mais do lado da separação do que da alienação. Não se domestica à lógica dos grupos, sob pena de perder sua razão. É próprio a cada um, sem que isto implique o silêncio do gozo autista e por isso comparece na via da transmissão, da transferência, do endereçamento. No sentido lato, o estilo pode ser pensado como a articulação entre o privado e o público na vida cotidiana; no sentido estrito que toma na arte, como na literatura, uma marca na escrita que possa fazer o litoral entre a face real do objeto a e o Outro. Uma maneira de pensar o autor e seu estilo é procurá-lo na tensão constante entre o que há de contínuo e descontínuo em sua produção 5 : na interrupção do sentido; na quebra da previsibilidade da seqüência; no surgimento de elementos dissonantes à estrutura da narrativa; nas epifanias. Cortes que apontam, na composição do texto, para momentos de falência da linguagem e do sentido. Indicadores da presença do vazio significante, do real impossível de definir, o objeto a da teoria lacaniana. Sob esse ponto de vista, o estilo é mais a forma como se trata a falta de sentido que inexoravelmente surge na própria fabricação deste. A presença do real no simbólico. Ele se depura à medida que seja possível identificar na variedade dessa produção uma constante: a varidade, neologismo lacaniano que indica a dimensão da verdade como variável. 6 Dessa forma o estilo pode ser definido como o que dá a verdade sobre o autor, ainda que em nenhum momento essa verdade possa ser enunciada. Como não é o objeto da representação, mas o objeto para o qual não se tem nome, o estilo do objeto só se verifica pelos seus efeitos, em especial pela repetição: seja a repetição simbólica e automática do traço unário, seja a repetição paradoxal do próprio trauma a tyché do encontro impossível 7. Propomos uma análise preliminar de Guimarães Rosa que se restringe a poucos indicadores de sua causa de escritor no texto. Foram úteis alguns dados biográficos publicados que servem apenas para corroborar o que se revela no estilo. Guardamos a esse respeito a constatação lacaniana de que o artista não demanda interpretação. Ao contrário, ele transmite um objeto que causa, por sua vez, efeitos de leitura e... de gozo. Guimarães Rosa parece ser o escritor brasileiro mais próximo a Joyce no que diz respeito a um uso singular da escrita. Assim como a língua inglesa revelou-se outra para 2

seus falantes a partir da escrita de Joyce, a literatura brasileira e a potencialidade da língua portuguesa não puderam mais ser vistas da mesma maneira após a espantosa forma com que Guimarães Rosa a reinventou. Nesse sentido, parece ser possível destacar, na escrita rosiana, um aspecto que se relaciona ao Nome-do-Pai como tradição. Não se trata da tradição da religião, mas da tradição comum aos sujeitos de linguagem: um corpus de linguagem compartilhado. Ele usa e respeita essa tradição, faz, no entanto, uso dela de forma criativa, singular e impossível de coletivizar. 8 É fato notório e público o amor de João Guimarães Rosa à literatura, à língua portuguesa, às outras línguas e seu conhecimento de muitas delas. Devido a esse amor, ele se dedicou de forma obstinada à leitura em várias línguas, tornando-se um sujeito culto e poliglota. Lembram que sua transgressão de criança era a de se esconder para ler, a despeito da desaprovação paterna e de seus problemas com a miopia. Como disse um de seus tios e biógrafo de sua infância: sua atividade maior, constante, fatal, era a leitura. 9 Há, pois, em Guimarães Rosa, um paixão pela língua. Penetrando na literatura precocemente, ele presta enorme atenção à autoridade dos grandes nomes da tradição literária e às línguas em que escreveram. No entanto, quando ele próprio se lançou na arte da escrita, ainda que considerasse que a arte é coisa seriísima, tão séria quanto a natureza e a religião 10, seu uso literário do português não obedeceu religiosamente a nenhum cânone. Profundo conhecedor da língua, ele podia usá-la na versão mais consagrada ou produzi-la nas suas variantes regionais, dependendo do efeito estético que visava. Como conhecia muitos outros idiomas, utilizava recursos destes para produzir na sua língua materna, o português, neologismos e variações sintáticas. 11 Com a psicanálise lacaniana sabemos que a língua natural, dita materna, não é a mesma que produz o laço social. Os significantes da alíngua materna criam no corpo os signos de gozo, mas isso ocorre independente de qualquer encadeamento significante 12. São significantes isolados, comparáveis a nomes próprios, que indicam sem produzir significação. Originários do gozo podem ser chamados de pai do gozo e ao mesmo tempo, por darem um nome a este, de pai do nome. 13 Nomes que, como no caso do nome próprio, são esvaziados de significação; frutos acidentais do desencontro traumático entre gozo e linguagem. Eles marcam o ponto onde a linguagem fracassa como dito, sustentando apenas o querer dizer e o gozar. O falante precisa encontrar formas de encadear esses fragmentos 3

da alíngua materna com outros significantes, submetê-los aos padrões correntes, para poder compartilhar da língua comum. Ou seja, passar do S 1, pai e nome do gozo, ao S 2 que permita produzir alguma significação, o Nome-do-Pai. Nesse sentido, podemos pensar que a língua que se maneja compartilhando da significação com outros é a língua pátria para chamá-la de outra forma e considerá-la, assim, como uma modalidade de Nome-do-Pai, uma amarração dos três registros que permite ao ser habitado pela linguagem fazer, com os signos do vazio do seu gozo, algum laço social. O que constatamos em Guimarães Rosa é uma permanente operação de construir pontes entre S 1 e S 2 que obtém sucesso na produção de uma significação, mas, ao mesmo tempo, deixam escapar o sentido. Nessa significação furada, o S 1 permanece ilegível. Isso nos permitiria dizer que encontramos a presença do Nome-do-Pai na escrita de Guimarães Rosa, mas ela está, de certa forma, a serviço do pai do nome, da relação espantada que este autor teve com o mundo e da qual a construção da realidade em sua ficção dá testemunho. Conseqüentemente, em sua escrita poética, o semblante tramado com o imaginário e o simbólico inclui o real em sua tessitura, de tal sorte que sabemos que se trata da língua portuguesa. Esta se apresenta, porém, em um uso tão singular que é também a língua de Guimarães Rosa. Temos uma manifestação viva da presença da tradição, da valorização da língua pátria, mas que ele, ao mesmo tempo em que respeita, recria. Eis um pouco do que poderíamos supor como parte do seu projeto de escritor, revelado por ele mesmo numa carta: A língua portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria. Está descalça e despenteada; mesmo para andar ao lado da espanhola ela não tem roupa. Empobrecimento de vocabulário, rigidez de fórmulas e formas, estratificação de lugares-comuns, como caroços num angu ralo, vulgaridade, falta do sentido de beleza, deficiência representativa. É preciso distendê-la, destorcêla, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão, exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores. E é preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas horas. Derretê-la, e trabalhá-la, em estado líquido e gasoso. 14 4

Revela-se seu amor pela língua que ele derrete e trabalha, em estado líquido e gasoso. Poderíamos dizer que com esse manejo, se a língua é um pai, ele sabe usá-la prescindindo de sua forma tradicional. Expressões como: ele no ao-longe, nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, nossa mãe muito não se demonstrava, decidiu um adeus para a gente 15 e pirlimpsiquice 16 são alguns dos inúmeros exemplos de invencionice do autor que constituem aqui e ali um uso circunstancial, um chiste, uma ironia, algum vislumbre instantâneo. Pouca probabilidade de serem incluídos no corpus compartilhado da linguagem 17 indicando que, se Guimarães fez uso da língua pátria, esse uso foi estritamente seu. Um uso e uma versão singular da língua revelado por um estilo que sustenta seu valor pela transmissão do objeto. Objeto de gozo. De um gozo do qual Rosa transmite apenas o rastro. O leitor que ponha de si aí. * Doutora em Psicologia UFRJ. Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise EBP e da Associação Mundial de Psicanálise AMP. 1 Lacan, J. Abertura dessa coletânea. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 9. 2 Lacan, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo. Op. cit. p. 751. 3 Lacan, J. Seminário 24 (1976-77). Aula de 14/12/76. Inédito. 4 Idem. Aula de 11/01/77 5 Blanchot, M. A conversa infinita. SP:Escuta, 2001. 6 Lacan, J. Seminário 24 (1976-77). Aula de 19/04/77. Inédito. 7 Rasmussen, R. About repetition and aesthetic in Joyce. Some consideration on his authorship. Ornicar?digital, revue electronique multiligue de psychanalyse, Paris, nº 176, juillet/2001. 8 A respeito de formas de vincular o Nome-do-Pai à tradição, diferentes daquelas da religião e orientadas pela lógica do não-todo, remeto ao artigo Tradição e Nome-do-Pai, de Angelina Harari. Em: Scilicet dos Nomes do Pai. Rio de Janeiro: AMP, pp. 173-174. Também publicado em versão digital em Opção Lacaniana On Line, nº 3, junho de 2006. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br. 9 Guimarães, V. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa (1972). São Paulo: Panda Books, 2006, p. 65. 10 Guimarães Rosa, J. Correspondência. Em: Guimarães, V. Joãozito: a infância de João Guimarães Rosa (1972). São Paulo: Panda Books, 2006, p. 137. 11 Rónai, P. Os vastos espaços. Em: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 25 e p. 39. 12 Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1985, p. 190. 13 Lacan, J. Joyce le symptôme (1975). Em: Le séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris: Seuil, 2005, p. 167. Quanto ao desenvolvimento desse aspecto ver: Esqué, X. Sobre o pai que nomeia. Em: Papers do Comitê de ação da Escola Una, nº 13, maio de 2006. 14 Guimarães Rosa, J. Correspondências. Em: Guimarães, Vicente. Joazito: a infância de Guimarães Rosa (1972), op. cit., p. 138. 15 Exemplos extraídos do conto A terceira margem do rio, op. cit. 16 Nome de um dos contos publicado em Primeiras estórias, op. cit. 17 Cf. Rónai, P. Os vastos espaços. Em: Primeiras estórias, op. cit., p. 45. 5