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I O despertador ainda não havia tocado quando abri os olhos na manhã do dia cinco de abril de mil novecentos e noventa e nove. Abri os olhos por intuição e virei o rosto na direção do relógio que estava prestes a tocar. Suavemente, retirei o lençol que me cobria e, apoiando a mão na lateral da cama, pisei o assoalho fresco precisamente com o pé direito. Primeiro o direito, como fiz em todas as manhãs que precederam aquela. Até onde minha memória alcançava, nunca, nem mesmo nas mais despretensiosas manhãs, havia eu levantado da cama senão com o pé direito. Assim que firmei os pés no chão e ergui o corpo ainda enrijecido por aquela longa noite, levei a mão até o pino do relógio e evitei que ele disparasse. Caminhei até o banheiro e enxaguei o rosto três vezes. Nem mais, nem menos. Três enxaguadas que banhavam o rosto inteiro e deixavam minhas sobrancelhas encharcadas. Ali no reflexo daquele espelho com a borda de plástico azul-claro e com manchas pretas pela umidade, percebi algo diferente. Por certo que todos os dias ao nos reencontrarmos em frente ao espelho, nos deparamos com a diferença por mais imperceptível e sutil que seja. Só a frigidez da rotina é que faz com que não percebamos o estranho que nos espera em 7

cada nova manhã. O tempo se esconde em detalhes quase imperceptíveis e sempre disfarçados de ontem. Naquele cinco de abril algo havia mudado além da perspicácia da rotina. No espelho havia mesmo um estranho. Alguém que, por alguma razão, me encarava como se guardasse um segredo. Meus cabelos não estavam nem compridos, nem curtos. Minhas mãos longas não chegaram até eles e se preocuparam apenas em repetir o ritual das três enxaguadas consecutivas que me banhavam o rosto. Longa também era a minha rotina. Passei tempo demais saindo de casa ao nascer do sol e voltando muito depois do crepúsculo. Nada me incomodava. Eu estava sempre bem na habilidade que desenvolvi de permanecer equilibrado independente das adversidades que me afrontassem. Uma espécie de receita que poucos conseguem encontrar e que é, de fato, o segredo da felicidade. Uma brisa leve que passa nas manhãs de outono pode ser maravilhosa ou horrível. O salto em um pequeno trampolim nas piscinas dos dias quentes de verão pode ser fantástico ou horrível. A vida do jeito que está pode ser uma dádiva ou um eterno castigo. Tudo está apenas ligado à capacidade de lidar com a expectativa e sua revelação, com o sucesso e o fracasso. Passei longos anos sorrindo o mesmo sorriso leve e vendo em tudo a beleza das pessoas e das coisas, o que, para muitos, pode ser horrível. Meu pai me ensinou a lavar o rosto três vezes pela manhã e levantar sempre com o pé direito. Determinado, construí uma vida cheia de entusiasmo, porém, na manhã daquele cinco de abril de mil 8

novecentos e noventa e nove, decidi ficar em casa. Subitamente não dei o mesmo sorriso leve de todas as manhãs e por alguma razão precisei voltar às mais remotas histórias. Resgatar o que fosse capaz de lembrar ainda que, por vezes, fossem histórias contadas, histórias lembradas, histórias criadas no traiçoeiro gerenciamento da memória. E nessa busca voltei ao momento exato onde tudo começou... 9

II A temperatura fria do ar e das cores não interferia na emoção que meu pai, Inácio, sentia na sala de espera. Um torpor de proporções desconhecidas. Uma sensação nova e impalpável. Ele sonhava com um filho desde sempre, pois perdera o pai muito jovem e assim esperava recriar a relação que lhe fazia falta. Foi criado por sua mãe, e com dezesseis anos já trabalhava para ajudar em casa. Numa pequena praça, ao lado de uma escola, ele começara a trabalhar. Passava o dia pedalando nuvens de algodões-doces em uma carrocinha ambulante. Um trabalho muito simples, mas que para ele tinha um significado além de ser o meio pelo qual tirava o seu sustento. Em cada criança enxergava seu futuro filho, num exercício interminável de autoprojeção embalado por aquelas nuvens azuis e rosas. Quando com elas brincava, pois estavam sempre correndo a sua volta, oferecia-lhes mais carinho do que a maioria dos seus pais. Inácio se doava em qualquer coisa que fizesse e, além da carrocinha, fazia de tudo para conseguir qualquer extra que lhe fosse conveniente. Um bico ali, outro aqui, e assim ia levando. Batalhando para vencer cada dia e assim ganhar a vida. Fizesse sol, fizesse chuva, ele estava lá sob as árvores da praça, a mesma praça onde 10

surgiu a imagem de minha mãe, Ângela, ao fundo de um pequeno corredor de buganvílias. Uma imagem inesquecível gravada no imaginário de um homem simples mas cheio de sonhos. Sonhos que o levaram até aquela sala de espera enquanto Ângela estava em trabalho de parto... Força!! Não consigo! Força!!! Pelo amor de Deus!! Ele ouvia, de longe, e mantinha os olhos fixos na parede bege que estava a sua frente na sala de espera daquele hospital. Um momento real e distante do imaginário romântico que se cria em torno das passagens importantes da vida. O nascimento. Na teoria algo lindo, divino, cheio de passarinhos entoando melodias aconchegantes ao som aveludado de flautas doces. Força! Não consigo!!! No mundo real, um momento de pura brutalidade, atrito e medo. Medo da dor, medo da morte e da vida. Medo do caminho sem volta que só se justifica com a determinação e a paixão por ser pai e mãe em sua plenitude. O termômetro pendurado na parede marcava oito graus. Era óbvio que ele estava aterrorizado. Era uma época em que quase não se faziam cesarianas uma operação cercada de mitos e mistérios. Usava-se fórceps, alicates de dilatação, tesouras longas. Instrumentos medievais expostos nas inacessíveis salas de parto daqueles anos. Ninguém sabia qual seria o meu sexo. Na época não era possível prever, e eles esperavam que eu fosse uma 11

menina. Todos diziam que a barriga arredondada era sinal de que eu seria mesmo uma menina. Força!!! Silêncio. O silêncio era definitivamente pior do que a gritaria. Silêncio Inhê, inhê, inhê!!! o grito agudo que dei depois de sair da barriga da minha mãe coberto de sangue. Nasceu!!! Meu pai continuou imóvel. Uma postura aparentemente covarde, mas que era típica de seu tempo. Um tempo em que os maridos se ausentavam voltados para si, enquanto as mulheres se estrebuchavam para dar a luz. Nasceu! É um menino! Escorando a mão no braço do sofá, levantou-se e caminhou em passos cadenciados até a porta do corredor que dava acesso à sala de parto. Da pequena janela na parte superior da porta, emanava uma luz que aos poucos banhava todo o seu rosto e realçava o brilho dos olhos molhados. Uma felicidade real. Um reencontro com algo perdido na sua primeira infância. O contato que foi interrompido pelo destino e que ali poderia ser reconquistado. Contato. Uma viagem profunda para dentro da sua personalidade. Uma personalidade única, inconstante e quase sempre indecifrável como a de cada um que procura respostas para si. Sempre ouvi essa história assim. Meu pai fez questão de repeti-la inúmeras vezes com cada detalhe. E confesso que me emociono sempre que me lembro. Não da história, mas da forma com que ele sempre a contou para mim. A paixão. O brilho nos olhos. O orgulho de ter se tornado pai. 12