IX CONGRESSO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS CONCURSO DE TESES



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Transcrição:

1 IX CONGRESSO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS CONCURSO DE TESES CRISTIANO VIEIRA HEERDT A LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA NAS AÇÕES DE SAÚDE Porto Alegre 2010

2 CRISTIANO VIEIRA HEERDT A LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA NAS AÇÕES DE SAÚDE Tese a ser apresentada ao IX Congresso Nacional de Defensores Públicos, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Porto Alegre 2010

RESUMO 3 A presente tese busca argumentar de forma objetiva e concisa que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional conferiram à Defensoria Pública legitimidade extraordinária para substituir o cidadão nas ações e demandas judiciais que envolvam o direito à saúde. RESUMEN Esta tesis trata de argumentar así objetiva y concisa de que la Constitución Federal y la ley ordinaria dio la Defensa Pública legitimidad extraordinaria para sustituir a lo ciudadano em las acciones y demandas que involucram el derecho a la salud.

4 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...5 2 A DEFENSORIA PÚBLICA E O DIREITO À SAÚDE...6 2.1 Direitos fundamentais: o direito à vida e o direito à saúde...6 2.2 A (falta de) efetividade de um direito social: crise do Estado...9 2.3 A legitimidade extraordinária e a efetivação do direito à saúde...11 3 CONCLUSÃO...13 REFERÊNCIAS...15

5 1 INTRODUÇÃO No Brasil tem se verificado um número crescente de ações judiciais que envolvem o direito à saúde. Os pedidos judiciais que buscam assegurar vagas em estabelecimentos hospitalares, realização de exames e procedimentos médicos e fornecimento de medicamentos, entre outras questões, são fundados no direito à saúde, elevado a direito social e fundamental, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Não obstante tenha o constituinte consagrado o direito à saúde e o direito à vida como direitos fundamentais, percebe-se o que podemos chamar de crise do Estado, simbolizada pela falta de efetividade desses direitos. Sob o enfoque do Estado como devedor de uma prestação material, vislumbra-se a necessidade de se disponibilizar meios para assegurar o cumprimento da obrigação estatal. Nesse contexto ingressa a Defensoria Pública como instrumento necessário ao Estado Democrático e imprescindível ao cidadão. De fato, a novel instituição vem sendo aparelhada com um manancial de leis que reforçam seu papel constitucional de assegurar a mais ampla assistência jurídica ao cidadão. A definição da Defensoria Pública como instrumento do regime democrático, tendo por objetivos a primazia da dignidade humana, a prevalência, a efetividade e a difusão dos direitos humanos, à luz dos incrementos trazidos pela Lei Complementar 132, de 07 de outubro de 2009, assegura sua legitimidade ativa extraordinária nas ações de saúde.

6 2 A DEFENSORIA PÚBLICA E O DIREITO À SAÚDE 2.1 Direitos fundamentais: o direito à vida e o direito à saúde O conceito de direitos fundamentais está invariavelmente está ligado à concepção de direitos humanos, pois ambos derivam da própria existência humana. Há uma aproximação conceitual entre direitos fundamentais e direitos humanos, embora doutrinariamente possam ser traçadas distinções entre as duas expressões, como propõe Sarlet (2006, p. 35-36), ao especificar que fundamentais são aqueles direitos do ser humano positivados na esfera do direito constitucional, enquanto que a expressão direitos humanos guarda relação com os documentos de direito internacional, e revelam um inequívoco caráter supranacional. Dallari (1998, p. 7) conceitua a expressão direitos humanos como uma forma reduzida e abreviada de referência a direitos fundamentais da pessoa humana, sendo fundamentais porque traduzem a capacidade de existência, de desenvolvimento e de participação plena da vida. Ambos focam o ser humano como destinatário direto e absoluto de seus efeitos. Sob uma perspectiva estatal, direitos humanos e fundamentais são erigidos a essa condição pelo próprio poder que os organiza num determinado tempo e lugar, e carregam consigo um aspecto qualitativo de garantia de proteção ao ser humano e de inafastabilidade do sistema social, o que lhes caracteriza no mundo jurídico como direitos fundamentais. A vida aparece na história como bem supremo a ser tutelado e preservado,

7 sempre referendado como o centro de reflexões filosóficas e o objeto permanente de atenção do Estado. A positivação do direito à vida e do direito à saúde, como direitos fundamentais, é, para muitos, fruto de um processo evolutivo da organização social, que destaca seus atributos essenciais. Luhmann (1985, p. 117) identifica, no direito positivo, um mecanismo de conquista evolutiva do sistema social: na medida em que o direito é positivado [...] apresenta-se uma nova perspectiva, e ela mesma deve ser avaliada como uma conquista evolutiva. Com efeito, é possível traçar um paralelo entre a evolução do sistema social, a positivação do direito e a afirmação histórica dos direitos humanos fundamentais, dentre os quais se encontram o direito à vida e o direito à saúde. E tal afirmação é verificada a partir do estudo do constitucionalismo moderno. Em relação ao direito à saúde é comum atribuir-se à Declaração Universal dos Direitos Humanos 1 o primeiro indicativo de sua positivação em um documento político moderno. E não há que se pensar em mero protocolo de princípios universais e internacionais, pois o processo de absorção dos direitos fundamentais e de evolução constitucional constituiu verdadeira positivação, cuja funcionalidade é dinâmica, não estática. Nessa linha, conclui Moraes (2000, p. 21) que o fenômeno da constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa mera enunciação formal de princípios. Destaca o autor uma plena positivação que guarnece as tutelas e as garantias a serem exigidas perante o Poder Público, para a concretização do Estado Democrático. Assinala ainda um caráter de indispensabilidade da proteção judicial para que se torne efetiva a aplicabilidade dos direitos humanos fundamentais previstos no ordenamento. 1 Aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948

8 O direito natural e o direito positivo constituem a base de estudos filosóficos e jurídicos ao longo dos tempos. De qualquer forma, independentemente da linha adotada, se voltada ao jusnaturalismo ou ao positivismo jurídico, é relevante perceber o que Hart (2009, p. 250) denomina de conteúdo mínimo do direito natural, como uma série de princípios de comportamento universalmente reconhecidos. Porém, para abstrair um pouco a questão da origem naturalista dos direitos do homem, resgatamos a análise do fundamento dos direitos do homem através de Bobbio (2004, p. 45) quando se preocupa não com a quantificação e especificação dos direitos, mas com o modo para garanti-los e impedir que sejam violados. O direito à saúde revela uma dupla fundamentalidade, como assevera Sarlet (2007, p. 2-3). Aponta para uma fundamentalidade formal, enquanto parte integrante do sistema constitucional positivo, e para uma fundamentalidade material, revelada pela inafastabilidade do bem jurídico tutelado da ordem social, considerada sua característica elementar de universalidade. Esse reconhecimento da força normativa dos conceitos constitucionais e infraconstitucionais que forjam a essência dogmática do direito à saúde no Brasil e que o elevam a uma categoria prestigiada de direitos sociais e fundamentais, é a força propulsora das demandas judiciais que buscam assegurar o direito à saúde. Soma-se a essa dupla caracterização o conteúdo de imperatividade das normas constitucionais, ressaltado por Barroso (2007?, p. 5). Como direito fundamental constitucionalmente assegurado, o direito à saúde goza de um atributo que reforça sua efetividade: a imperatividade inerente aos comandos constitucionais. E o sistema jurídico deve conter mecanismos para a tutela dos comandos constitucionais, em caso de ação ou omissão que lhes atinjam. Dentre tais mecanismos está inserida a garantia do acesso ao sistema

9 judicial, como princípio e direito fundamental, descrito dentre o rol do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. 2.2 A (falta de) efetividade de um direito social: crise do Estado Cumpre-nos analisar o Estado como condutor e elemento de positivação e efetivação do direito fundamental à saúde. O Estado, num primeiro momento, preocupa-se em tutelar o direito na ordem positiva, criando a obrigação para si próprio. E, num segundo momento, volta-se à realização e satisfação dessa obrigação, garantindo que seja efetivamente cumprida. Dallari (1998, p. 69) sugere que um direito só existe realmente quando pode ser usado. Também especifica uma categoria que abrange e expressa, de certa forma, todas as outras expressões de direitos: o direito à proteção dos direitos. Cita ainda o prejuízo injusto daquele que não soube ou não pode usar um direito e que, por isso, o perdeu. Acrescentamos que é prejudicial ao direito a existência de uma opacidade, decorrente de um hiato entre a organização jurídico-social e a efetiva compreensão dessa organização, como alerta Cárcova (1998 p. 13-16). Se é verdade que o Estado desempenha seu papel inicial tutelando o direito à saúde no ordenamento jurídico, colorindo-o no mundo como direito positivo, também é verdade que o mesmo Estado deve protegê-lo, criando mecanismos para que o mesmo seja usado. No Estado Democrático de Direito a lei aparece como instrumento de transformação da sociedade, como revelam Streck e Morais (2001, p. 93-94), com a imposição de um componente utópico, tendo como um dos objetivos intrínsecos a igualdade. Sob o aspecto substancial, há um esticamento entre o texto constitucional proposto e a garantia da efetividade dos direitos fundamentais. A percepção de uma

10 crise do modelo de Estado, portanto, pode estar associada a uma crise existencial, material e substancial de instalação do próprio modelo. E não se pode olvidar que a instalação de um modelo é dinâmica, não estática, e demorada, não rápida, pois substantiva, não meramente formal. Ao tratar do problema de legitimidade das Constituintes e das Constituições, Bonavides (1995, p. 17) descreve que a crise é revelada por um hiato entre a vontade constitucional [ ] e a vontade dos grupos e da coletividade em geral. Sob o aspecto da efetividade dos direitos fundamentais, especialmente do direito social à saúde, é possível afirmar que há uma crise de legitimação constitucional no Brasil, eis que o Estado, assumidamente social e democrático, não responde às demandas que envolvem tal direito. Alinhamo-nos à corrente que descreve como existente no Brasil uma crise de legitimação constitucional, em razão do espaçamento entre a ordem constitucional vigente e a efetividade dos princípios e direitos fundamentais inscritos na ordem constitucional positiva. Para diminuir esse espaçamento o legislador infraconstitucional formatou a Defensoria Pública, especialmente a partir das alterações promovidas pela Lei Complementar 132, de 07 de outubro de 2009, na Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, atribuindo-lhe essencialmente a promoção e defesa dos direitos humanos. Contudo, ainda resta ao sistema judicial reconhecer as importantes mudanças legislativas que envolvem a Defensoria Pública, a partir de uma visão integrada do processo civil e do constitucionalismo moderno, para se fomentar a efetividade dos direitos fundamentais. É necessário reconhecer a importância da Defensoria Pública como instituição estatal, difusora dos direitos humanos e que tem como função atuar na efetivação dos direitos que o próprio Estado positivou, mas insiste em sonegar.

11 2.3 A legitimidade extraordinária e a efetivação do direito à saúde A jurisprudência vem admitindo a legitimação extraordinária do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais indisponíveis, dentre os quais o direito à saúde, com base na sua função essencial e no que dispõe o art. 127 da Constituição Federal, como se vê do voto do Ministro Teori Albino Zavaski, no julgamento do Recurso Especial nº 933974-RS, no Superior Tribunal de Justiça, ocorrido em 04 de dezembro de 2007 e publicado no Diário da Justiça em 19 de dezembro de 2007. Acreditamos que idêntico caminho será reservado pela jurisprudência à legitimação extraordinária da Defensoria Pública para a tutela dos direitos individuais indisponíveis, precipuamente quando caracterizada a hipossuficiência econômica, com base na Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, alterada pela Lei Complementar 132, de 07 de outubro de 2009. Ocorre que incumbe ao órgão a promoção dos direitos humanos (leia-se: direito à vida e à saúde) e a defesa dos direitos individuais dos necessitados de forma integral, assegurada ainda a legitimidade para propositura de ação civil pública. Entendemos que o sistema jurídico-constitucional autoriza a legitimidade da Defensoria Pública, mesmo quando não explicitamente esteja consignada, como alguns sustentam em relação ao Ministério Público, invocando, para tanto, o art. 6 do Código de Processo Civil. Com efeito, não há o que se falar em necessidade de expressa previsão legal para se atribuir a legitimação extraordinária à Defensoria Pública nas ações de saúde, em razão dos fundamentos que sinteticamente

12 apresentamos: a) função de promoção e defesa dos direitos humanos atribuído pelo sistema positivo; b) (dupla) fundamentalidade do direito à saúde; c) necessidade de efetivação dos princípios do Estado Democrático de Direito e superação da sua inefetividade; d) a emergencialidade circunstancial que caracteriza o direito sanitário. A legitimação extraordinária da Defensoria Pública nos procedimentos que envolvam o direito à saúde deve ser condicionada à emergencialidade que caracteriza as situações de risco à vida. Portanto, a emergencialidade não é apenas um fundamento, mas sobretudo uma condição sem a qual a Defensoria Pública não estará legitimada a agir. Abastecida dos elementos que indiquem, como condição da ação, o interesse processual de agir, ou seja, a necessidade da resolução do conflito por ato judicial, a Defensoria Pública não estará apenas legitimada, mas compelida a agir ativamente para efetivar um direito fundamental. E aqui evidencia-se a essencialidade da função, indispensável e imprescindível para a efetivação do direito proclamado como fundamental. Não poderá a Instituição deixar de promover o direito humano e fundamental da saúde, à vista da emergencialidade que exige a tutela jurisdicional de urgência, pena de afronta às normas constitucionais e infraconstitucionais que regulam o direito à saúde e o acesso ao sistema judicial. Os mecanismos de aceleração da tutela jurisdicional compõem o que denominamos hoje de tutela de urgência. A tutela de urgência é caracterizada por uma celeridade judicial incomum que, diferentemente de demandas não urgentes, requerem um provimento jurisdicional rápido. O que se privilegia, na tutela de emergência, é a faticidade, como explicam com propriedade Schwartz e Gloeckner (2003, p. 128). Sendo assim, a legitimidade extraordinária da Defensoria Pública decorre da necessidade de utilização dos remédios jurídicos e processuais que

compõem a tutela jurisdicional de urgência, para proteção do direito à saúde. 13 3 CONCLUSÃO Procuramos, em nossas reflexões, não apenas abordar o direito fundamental à saúde como norma constitucional positivada, mas também a necessidade de encurtamento entre a norma e sua efetividade, com a redução dos efeitos sociais negativos que advêm do espaçamento entre ambas. Se é verdade que há uma crise estrutural do Estado, também é verdade que o direito à vida é intangível, seja por questões filosóficas ou sociológicas. Ainda que teorias busquem a relativização ou redução da eficácia do conteúdo dos direitos fundamentais, e sejam relevantes para a ciência jurídica, eis que fundamentadas em aspectos essenciais do Estado e da sociedade, não nos parece haver espaços para a ponderação do direito à vida. Não podemos, por certo, perder de vista a perspectiva evolucionista do Estado Democrático de Direito, como uma das manifestações mais recentes do Estado Contemporâneo. Por um aspecto o Estado alcança ao indivíduo a norma, o direito positivo, o substrato adequado e necessário à sociedade. Por outro nega-lhe o próprio direito alcançado. E, finalmente, num ciclo dinâmico, propicia o controle social, com as estruturas imprescindíveis do sistema judicial. E por tal razão entendemos que há, sim, uma crise de efetividade dos direitos fundamentais, mas é o próprio Estado que pode, por ser obrigatório e inafastável, alcançar os meios de otimização da efetividade dos direitos fundamentais. E nesse contexto revela-se aquele que incontestavelmente é o mais fundamental dos direitos humanos: o direito à vida.

14 O caminho para o exercício da melhor efetividade do direito social à saúde não passa pelo enfraquecimento do Poder Judiciário e dos mecanismos para acessá-lo, com a imposição de limites de atuação que afrontem as condições mínimas de vida e a dignidade humana. Nesse sentido, optaram o constituinte e o legislador infraconstitucional pela caracterização da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional, voltada à promoção dos direitos humanos. Dotada de um moderno suporte legislativo, que, é verdade, ainda carece de aperfeiçoamento, a Defensoria Pública deve se voltar à difusão e defesa dos direitos fundamentais, especialmente do direito à vida, para solidificar a sua adjetivação contemporânea: necessária ao Estado Democrático e imprescindível ao cidadão. Por fim, como decorrência da fundamentalidade do direito à saúde e do direito à vida, das modernas reflexões sobre o papel do Estado e o constitucionalismo moderno, e das funções impingidas à Defensoria Pública, concluímos pelo reconhecimento da sua legitimidade extraordinária ativa nas ações de saúde, nas tutelas jurisdicionais de urgência.

15 REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>. Acesso em 22 de julho de 2010. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus, 2004. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3 ed. São Paulo : Malheiros, 1995. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Publicada no Diário Oficial da União em 17 de novembro de 1973. BRASIL. Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994.Organiza a Defensoria Pública, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para a sua organização nos Estados, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União no dia 13 de janeiro de 1994. BRASIL. Lei Complementar 132, de 07 de outubro de 2009. Altera dispositivos da Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e da Lei 1060, de 5 de fevereiro de 1950, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União no dia 08 de outubro de 2009. CÁRCOVA, Carlos María. A opacidade do direito. São Paulo : LTr, 1998. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo : Moderna, 1998. HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. São Paulo : Martins Fontes, 2009. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1985. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários dos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2000. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2006.. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Salvador : Revista eletrônica da reforma do Estado, 2007. Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 11, disponível em <http://www.direitodoestado.com/revista/rere-11-setembro-2007- INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em 27 de julho de 2010. SCHWARTZ, Germano; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A tutela antecipada no direito à

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