MIGRAÇÃO AFRICANA: DIVERSIDADE E MOBILIDADE COMO DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS PARA A TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL Autores: Valdir Pierote Silva Casa das Áfricas; Denise Dias Barros Universidade de São Paulo; Marina Pastore Casa das Áfricas; Miki Sato Casa das Áfricas; Débora Galvani Universidade de São Paulo 1. APRESENTAÇÃO Migrar para conseguir melhores possibilidades para si e para a sua família é uma ação que marca a presença de mulheres e homens no mundo. Foi assim que os diversos continentes foram povoados pelos humanos ancestrais, que percorreram longos caminhos em busca de alimentos, água e condições climáticas menos severas. Com o passar dos séculos, o reconhecimento de necessidades humanas foi se alargando e ganhando o estatuto de direitos inalienáveis. Não só comida e água, mas saúde, educação, moradia, trabalho, cultura etc. foram sendo conquistados por meio de lutas como aspectos fundamentais de uma vida humana. Nesse sentido, embora muitas migrações contemporâneas continuem ocorrendo por ausência de alimentos nas regiões de origem, muitas outras se efetuam pelo desejo em se ter direitos civis, políticos e sociais. Contudo, diversas engrenagens ideológicas, burocráticas e militares trabalham constantemente para manter as fronteias (físicas e simbólicas) entre aqueles que têm direitos e os que não podem ter. Trata-se de uma perspectiva segregacionista que associa direitos diferentes e desiguais aos Estados-Nações e que condiciona o asseguramento das condições básicas de uma pessoa a sua nacionalidade. No mundo contemporâneo e globalizado, ocorre um regime de circulação no qual as mercadorias ultrapassam os limites nacionais com poucas restrições e rapidez enquanto a mobilidade humana é sistematicamente impedida, burocratizada e criminalizada. Além disso, diversas mídias e discursos produzem imagens dos imigrantes como pessoas perigosas e que podem roubar vagas de trabalho e/ou promover um inchaço nos serviços públicos (COGO, 2012). Nessa mesma linha, quem migra seria também responsável pela degeneração da cultura, das tradições e da pureza do país receptor, visão racista e xenofóbica que tem sido utilizada para justificar graves atos de violência. Nesse complexo cenário, a cidade de São Paulo tem se destacado como um importante destino nos fluxos migratórios internacionais. Essa dinâmica tem ganhado 237
cada vez mais visibilidade, seja pelo número significativo de pessoas que chegam diariamente, seja pelas condições e formas de acolhimento que têm revelado situações variadas de violações de direitos. No entanto, novas perspectivas se abriram a partir de 2013 com a criação na Prefeitura Municipal da Coordenadoria de Políticas para Imigrantes ligadas à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Uma parcela significativa dos imigrantes é oriunda do continente africano, os quais têm buscado no Brasil uma alternativa a situações de conflitos armados em seus países de origem ou também como um local para estudos e para conhecer novas culturas e possibilidades. Nesse contexto, o Projeto Metuia/USP-UFSCAr (Grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte), em parceria com a Casa das Áfricas - instituto cultural, de formação e de estudos sobre sociedades africanas, tem se preocupado em sensibilizar estudantes, profissionais e pesquisadores da Terapia Ocupacional (TO) para tais questões. A proposta do artigo é, então, apresentar preliminarmente o trabalho que tem sido desenvolvido pelo grupo na interface entre mobilidade humana, migração africana e direitos humanos na cidade de São Paulo. 2. MIGRAÇÃO AFRICANA PARA SÃO PAULO No geral, a compreensão da sociedade brasileira sobre os africanos tem sido muito precária. SATO,BARROSe SANTOSargumentam que os migrantes africanos acabam sendo percebidos apenas como pessoas oriundas de um continente conhecido pela miséria e pelas guerras (2007, p.13). Na mesma linha, KALY (2001) aponta que a grande diversidade cultural, linguística e étnica da África costuma ser reduzida no Brasil a um grande bloco mono-indenitário no qual se destacam a fome, os conflitos, as guerras e a miséria. Enquanto os estrangeiros europeus, asiáticos e norte-americanos são tratados a partir de suas nacionalidades próprias, os da África, não. Somos «africanos», com tudo o que isso carrega de negativo (IBIDEM, p. 112). RODRIGUES (2014) também acrescenta que na cidade de São Paulo os africanos são muitas vezes identificados apenas como nigerianos e discriminatoriamente associados ao tráfico de drogas e ao crime. 238
Um grande número dos migrantes africanos não fala o português, fato que, somado a outras diferenças culturais, dificulta o exercício da cidadania e o acesso aos direitos. Outro dado importante é que parte desse grupo é acolhida em serviços de referência à população em situação de rua, o que pode contribuir ainda mais para o aumento de estigmas e preconceitos. Em 2000, dados da PF apontavam que viviam regularizados no Brasil 1.054 africanos de 38 nacionalidades. Em 2012, esse número tinha aumentado em 30 vezes e saltado para 31.866 imigrantes e, dessa vez, vindos de 48 dos 54 países do continente. Entre as nacionalidades, os angolanos (11.027 pessoas) lideravam e eram seguidos por cabo-verdianos (4.257 pessoas) e nigerianos (3.072 pessoas). De acordo com o mesmo relatório, a maior parte dessas migrações se dá por via aérea, mas há também rotas pelo mar e, em outras situações, alguns imigrantes vão para países da fronteira norte para em seguida entrarem no Brasil por terra (EFE, 2014). VARGEM (2012/2013) considera a busca por trabalho, a proteção contra conflitos vivenciados no país de origem e a procura por cursos de graduação ou pós-graduação como os principais motivos que fazem africanos migrarem para o Brasil. Talvez o estreitamento das relações do Brasil com a África e emergência do país no cenário internacional, associados ao endurecimento das leis migratórias nos países do Norte e a crise econômica de 2008, possam igualmente ter contribuído para o significativo aumento nesse afluxo para o qual a cidade de São Paulo tem sido um dos principais destinos. Nesse contexto, a migração africana na capital paulista passou a ter destaque inclusive na mídia: ora por violências cometidas pelo próprio Estado, ora por casos de racismo e xenofobia cometidos por nacionais. Um dos mais graves episódios foi a morte da estudante angolana Zulmira de Souza Borges Cardoso, assassinada no bairro do Brás após provocações racistas de um grupo de brasileiros em um bar (JORNAL DA TARDE, 2012). Zulmira veio estudar no Brasil por conta própria, sem bolsa do governo. Cursava engenharia em uma universidade privada e foi assassinada com um tiro na cabeça, após ela e seu grupo de amigos africanos serem afrontados e chamados de macacos e, logo em seguida, alvejados por inúmeros disparos. Zulmira faleceu na hora, pela gravidade da lesão, e parte dos seus amigos também foram feridos. Além de situações como essa, práticas mais sutis embora não menos graves - de xenofobia e racismo no transporte público ou em 239
instituições públicas tem sido recorrentes no cotidiano dos imigrantes africanos em São Paulo (EFE, 2014). A realidade dos imigrantes tem ganhado mais visibilidade por compreender situações variadas de violências e negação de direitos e, ao mesmo tempo, por se relacionar a legislação autoritária e anacrônica - como se revela o Estatuto do Estrangeiro de 1980 (BRASIL, 1980). Entretanto, novas perspectivas se abriram em 2013 em São Paulo com a criação da Coordenadoria de Políticas para Migrantes pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Um passo importante da nova Coordenadoria foi a organização, ainda em 2013, da 1ª Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes entre os dias 29/11, 30/11 e 01/12, uma antiga reivindicação dos movimentos sociais e entidades de defesa de direitos dos imigrantes. O evento abordou IV Eixos: (I) Promoção e garantia de acesso a direitos sociais e serviços públicos; (II) Promoção do trabalho descente; (III) Inclusão social e reconhecimento cultural; (IV) Legislação federal e política nacional para as migrações. Esse foi o primeiro de uma série de eventos que antecedeu a 1ª Conferência Nacional de Migrações e Refúgio (COMIGRAR), que ocorreu entre maio e junho de 2014. 3. MIGRAÇÃO AFRICANA, DIVERSIDADE E TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS A temática das Áfricas e da migração africana no Brasil em articulação aos desafios e questões que se colocam para a Terapia ocupacional social tem sido fontes de reflexão na produção do campo (BARROS, 2004; BARROS, VECCHIA, 2008; SATO, 2004; SAVADOGO, 2012; PASTORE, 2013; PIEROTE-SILVA, 2014) e constituem atualmente pontos importantes na construção teórico/prática do Projeto Metuia/USP- UFSCar. A parceria entre esse grupo interinstitucional e a Casa das Áfricas vem fomentando discussões sobre migração e mobilidade africana e, ao mesmo tempo, tem também empreendido ações práticas de suporte social, educacional e cultural a imigrantes africanos em São Paulo. Sensíveis ao contexto da contemporânea migração africana para São Paulo, docentes, terapeutas ocupacionais e estudantes vinculados às disciplinas práticas de TO social, assim como outros profissionais da Casa das Áfricas, têm participado ativamente 240
do debate público sobre migração e direitos humanos desde 2011 - sobretudo na mobilização de imigrantes africanos para a participação política em fóruns, audiências públicas, manifestações e conferências. Foi assim que, em 2013, a parceria Projeto Metuia/USP-UFSCar e Casa das Áfricas se inseriu na recém-criada Rede interinstitucional em prol do imigrante. Esta rede reúne uma série de iniciativas e atores sociais envolvidos com as questões migratórias na cidade de São Paulo. Uma das principais pautas tem sido a discussão para a mudança do quadro legal e, portanto, da lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, que definiu a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e criou o Conselho Nacional de Imigração. Discute-se a urgente necessidade em mudar o paradigma vigente apoiado na filosofia da segurança nacional, para o paradigma dos direitos humanos e cidadania plena. No campo educacional e cultural, o grupo tem promovido ações de valorização da presença e contribuições dos africanos/as que vivem no Brasil. A principal atividade com esse caráter é O Círculo Áfricas: contribuições de intelectuais e artistas africanos no Brasil que consiste em uma série de encontros sobre temáticas ligadas às culturas africanas. São debates fomentados com participação de artistas, pesquisadores e colaboradores africanos, que procuram ampliar a discussão sobre a temática africana, aprofundar os temas abordados, sensibilizar outros interessados, promover a troca de experiências e de saberes entre os diversos envolvidos: educadores, pesquisadores, terapeutas ocupacionais etc. Um dos objetivos da parceria é também desenvolver metodologias de abordagem (e de atividades) para trabalhar a temática da migração africana no Brasil a partir das questões de gênero, religiosidade e expressividade artística em contextos marcados por desigualdade racial, socioeconômica e/ou cultural. A Casa das Áfricas tem sido um parceiro importante para o Projeto Metuia/USP- UFSCar no processo de formação e sensibilização de estudantes e de terapeutas ocupacionais no campo da diversidade. Como já apontado, a proposta que tem sido construída nos últimos anos desenha-se em torno da mobilidade intelectual e estudantil e migração africana no contexto africano e brasileiro. Mas ela se desdobra em preocupações ligadas à compreensão da alteridade e ao conhecimento das Áfricas e de suas expressões estéticas e de linguagem. Tais preocupações consolidam-se em projetos diversos de universos estéticos e culturais precisos como o da literatura infanto-juvenil, cinema e arte africanas no contemporâneo que se fazem dentro de uma preocupação de formar professores e agentes culturais além dos próprios terapeutas ocupacionais. 241
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a construção de uma sociedade mais aberta à diversidade e à diferença, é preciso favorecer cada vez mais espaços de debate sobre os sentidos da diversidade e sobre as políticas de inclusão e de participação. Trata-se de criar espaços para que as diferenças coexistam e partilhem da dinâmica do processo social. No Brasil, mas não apenas, isto se deve traduzir também em ações contra o racismo e a xenofobia. Nessa perspectiva, o trabalho apresentado não parece ser uma voz isolada e se conecta as preocupações que a terapia ocupacional brasileira tem apresentado: o fazer humano em sua diversidade de sentidos históricos, culturais, políticos, econômicos, existenciais e uma vocação translocal e transnacional integrada na mobilidade internacional. Trata-se também de desenvolver diálogos sul-sul e, sobretudo, de reaprender nosso conhecimento com parâmetros políticos complexos e vinculados à grande multiplicidade de linguagens, expressões estéticas e éticas e de formas de trocas culturais. O trabalho que a parceria Projeto Metuia/USP- UFSCar e Casa das Áfricas têm produzido efetua-se no adensamento de inovadoras ações reflexivas, políticas e técnicas e tem contribuído na constituição de novas metodologias de abordagem que procuram dialogar com a recente migração africana no Brasil e as multiplicidades que o fenômeno apresenta. Porém, o desafio permanente é estabelecer práticas transdisciplinares que respeitem a diversidade dos sujeitos e de suas histórias de vida e, ao mesmo tempo, possa valorizar as culturas e os saberes de cada grupo, sem dissociar ação técnica e política. 242
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6815.htm (Acesso em 01 de setembro de 2014); BARROS, D.D. Itinerários da Loucura em Território Dogon. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2004; ; VECCHIA, T. Dogonicidade no ciberespaço: para uma leitura crítica da produção, interpretação e substantivação de identidades na rede mundial de computadores. In: 32º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2008; COGO, D.M. Latino-americanos em diáspora: usos de mídias e cidadania das migrações transnacionais. Rio de Janeiro: Tríbia, 2012; EFE. Imigração africana no Brasil aumenta 30 vezes entre 2000 e 2012. Disponível em: http://www.efe.com/efe/noticias/brasil/sociedade/imigra-africana-brasil-aumenta-vezesentre-2000-2012/3/2017/2314753 (Acesso em 12 de setembro de 2014); JORNAL DA TARDE. Universitária angolana é morta. 23 de maio de 2012. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/jt-seguranca/universitaria-angolana-e-morta/ (Acesso em 12 de setembro de 2014); KALY, A.P. O Ser Preto africano no «paraíso terrestre» brasileiro. Um sociólogo senegalês no Brasil. Lusotopie, Bordeaux - França, 2001, pp. 105-121; PASTORE, M.N. Economia de trocas e marginalização da infância em comunidades moçambicanas: um olhar da Terapia Ocupacional sobre um fenômeno étnico, político e cultural. Início: 2013. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós- Graduação em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos (Projeto de pesquisa); PIEROTE-SILVA, V. A contemporânea migração africana para a cidade de São Paulo: garantia de direitos, políticas públicas e diversidade. 2014. 46p. Monografia (Especialização em Terapia Ocupacional: campos de intervenção e perspectivas de inovações da prática) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo-FMUSP, São Paulo, 2014; RODRIGUES, E.F.V. Imigrantes Africanos No Brasil Contemporâneo: Fluxo e Refluxos da Diáspora. 2014. 118p. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC, São Paulo, 2014; SAVADOGO, P.B.A.H. Territorialidades em movimento: estratégias de reinserção social, religiosa e econômica de jovens muçulmanos burquinabês retornados após estudo de países de língua árabe. Início: 2012. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional) - Universidade Federal de São Carlos, Casa das Áfricas. (Projeto de pesquisa); SATO, M. Levantamento de refugiados africanos na Casa do Migrante. 2004. 64 p. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Terapia Ocupacional) Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 2004; ; BARROS, D.D.; SANTOS, A.S.A. Da África para albergues públicos: africanos na Casa do Migrante em São Paulo. Estudos Afro-Asiáticos, 2007, v. 29, pp. 29-62; VARGEM, A.A. A Imigração de Africanos para o Brasil nos dias Atuais. Jornal Nosostros Imigrantes, ano II, n. 9, dez. 2012-jan. 2013. Disponível em: http://camispm.com.br/nosotros/nosotros_09.pdf (Acesso em 12 de setembro de 2014). 243
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