A DEFENSORIA PÚBLICA E O REQUISITO DA HIPOSSUFICIÊNCIA. O breve estudo que se apresenta aborda o requisito da hipossuficiência



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Transcrição:

A DEFENSORIA PÚBLICA E O REQUISITO DA HIPOSSUFICIÊNCIA O breve estudo que se apresenta aborda o requisito da hipossuficiência para a prestação do serviço de assistência jurídica pela Defensoria Pública. O inc. LXXIV do art. 5º da CF dispõe: o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. O art. 134, também da CF, destaca: A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. O que delimita, portanto, a atuação da Defensoria Pública é a qualidade de necessitado e o requisito insuficiência de recursos. Vale observar que o inc. LXXIV utiliza a expressão insuficiência de recursos e o art. 134 e o art. 1º da LC n. 80/94 utilizam o termo necessitado. Ambos os termos são conceitos legais indeterminados, que Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery assim conceituam: São palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por isso mesmo esse conceito é abstrato e lacunoso. Sempre se relacionam com a hipótese de fato posta em causa. Caberá ao juiz, no momento de fazer a subsunção do fato à norma, preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o conceito legal indeterminado ( unbestimmte Gesetzbegriffe), a solução está pré-estabelecida na própria norma legal, competindo ao juiz apenas aplicar a norma, sem exercer nenhuma outra função criadora (...) A lei enuncia o conceito indeterminado e dá as consequências dele advindas 1. 1 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 176. Sobre o tema, ler também: ENGLISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Galouste Gulbenkian, 2001, p. 205-274. 1

Preenchido o conteúdo da expressão insuficiência de recursos e do termo necessitado, deve ser prestada a assistência jurídica 2. A primeira legislação brasileira que cuidou do tema da assistência, anteriormente apenas judiciária, foi o Decreto n. 2.457, de 1897, que previa a assistência para os pobres 3. Também seguindo essa orientação, a Lei n. 1.060/50 4 prevê a assistência jurídica para necessitado econômico. A hipossuficiência econômica é aquela que diz respeito apenas a questões financeiras 5. Observe-se que os hipossuficientes econômicos além de destinatários da assistência jurídica gratuita e integral, também são destinatários da justiça gratuita 6. O necessitado econômico, segundo o parágrafo único do art. 2º, é aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários advocatícios sem prejuízo do sustento próprio ou da família 7. A 2 Vale observar que o ato de concessão ou denegação da assistência jurídica é ato vinculado, eis que não há juízo de conveniência e oportunidade, mas meramente subsunção do fato à norma. 3 O art. 2º conceituava: Considera-se pobre, para os fins desta instituição, toda pessoa que, tendo direitos a fazer valer em Juízo, estiver impossibilitada de pagar ou adiantar as custas e despesas do processo sem privar-se de recursos pecuniários indispensáveis para as necessidades ordinárias da própria manutenção ou da família. 4 Esse diploma legal, embora anterior à nova ordem constitucional, foi recepcionado pela Constituição de 1988 (ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 266). 5 José Augusto Garcia realiza outra classificação: o necessitado economicamente é a pessoa pobre e o necessitado juridicamente é aquele que não é pobre (não é necessitado economicamente), mas não tem condições de arcar com as custas do processo, como por exemplo, uma pessoa que despende mensalmente o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) com o tratamento de um filho autista, não sobrando numerário para o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios (GARCIA, José Auusto. Solidarismo jurídico, acesso á justiça e funções atípicas da Defensoria Pública: a aplicação de um perfil institucional adequado. Revista de Direito da Defensoria Pública, Rio de Janeiro, Defensoria Pública Geral, ano 15, n. 19, p. 241, abr. 2004.). Não adotamos essa classificação entendo ser ambas hipossuficiência econômica, uma vez que ambas existem em razão da ausência de possibilidade de arcar financeiramente com o processo. 6 Assim, ao nosso ver, não existe diferença conceitual entre os destinatários dos diferentes institutos. Entretanto, em termos práticos, acreditamos em uma diferença que se dá pela ausência de estruturação efetiva da Defensoria Pública. Portanto, na prática, a gratuidade da justiça é concedida a um universo maior de hipossuficientes econômicos do que a assistência jurídica por meio da Defensoria Pública. 7 Para ser necessitado, não é imprescindível que seja configurado estado de miserabilidade. Nesse sentido: AMERICANO, Jorge. Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1, 2

legislação infraconstitucional optou por não utilizar critérios fixos. Optou, sim, por uma equação. Assim, para a aferição da hipossuficiência econômica, não basta olhar apenas um dos fatores, como o rendimento mensal, já que, muitas vezes, ainda que este seja elevado, deverá haver a concessão do direito, pois o resultado da equação poderá ser insuficiente para arcar com as despesas próprias de determinado processo. Rogério Nunes de Oliveira afirma que gastos mensais que não se trata apenas dos recursos utilizados para a subsistência fisiológica do postulante e de sua família 8, mas sim recursos utilizados para uma vida digna. Assim, destaca: Por prejuízo ao sustento também se devem entender os gatos atinentes com a locomoção, vestuário em geral, medicamentos, obrigações incidentes sobre imóveis, próprios ou não, e, até em certo grau, o que se gasta com lazer, educação e alguns serviços, contanto que a privação desses bens possa produzir danos significativos à sobrevivência digna do requerente ou dos seus 9. Tendo em vista que se trata de uma equação, é certo que a imposição de critérios rígidos vai de encontro à garantia constitucional da assistência jurídica 10. Algumas Defensorias Públicas, entretanto, estabeleceram critérios fixos quanto ao rendimento particular ou rendimento cit., p. 94; THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense: 2003. v. 1., p. 89. OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência jurídica gratuita, Assistência jurídica gratuita. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 105; SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição, cit., p. 173. Em sentido contrário, afirmando a necessidade de miserabilidade, temos: CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 2, p. 819. Tampouco é necessária a configuração do estado de pobreza. Em sentido contrário, entendendo ser configurada a situação de pobre, temos: SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 312. 8 Família, aqui, tendo em vista o princípio da pluralidade da entidade familiar previsto no art. 226 da CF. Sobre o pluralismo das entidades familiares, ler: LÔBO, Paulo, Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 56-75. 9 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência jurídica gratuita, cit., p. 108. 10 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência jurídica gratuita, cit., p. 105; ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!, cit., p. 266. 3

familiar para a concessão do serviço 11. A previsão de critério fixo é adequada apenas para a presunção da hipossuficiência econômica, não sendo possível a criação de critério absoluto que afasta a possibilidade de configuração da necessidade. É certo, porém, que a Constituição atual, ao utilizar-se de conceitos tão amplos, não restringiu assistência jurídica somente ao hipossuficiente econômico, como era o paradigma das antigas legislações. Da mesma forma que o conceito de necessitado não pode ser restrito àqueles necessitados economicamente 12. A assistência jurídica integral e gratuita poderá e deverá ser prestada a titulares de outras insuficiências. Ada Pellegrini Grinover afirma o dever de rever o antigo conceito de assistência judiciária aos necessitados, porque, de um lado, assistência judiciária não significa apenas assistência processual, e porque, de outro lado, necessitados não são apenas os economicamente pobres, mas todos aqueles que necessitam de tutela jurídica 13. Neste sentido, o legislador infraconstitucional elegeu algumas situações de hipossuficiência. A primeira diz respeito à pessoa presa em flagrante. 11 Essas Defensorias adotam critérios fixos da seguinte forma: renda familiar até 2 (dois) salários mínimos: Defensorias Públicas do Amapá; renda até 3 (três) salários mínimos: Defensorias Públicas do Amazonas, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Roraima, do Rio Grande do Sul; renda familiar até 3 (três) salários mínimos: Defensoria Pública de Espírito Santo, São Paulo; renda até 4 (quatro) salários mínimos: Defensorias Públicas do Acre, Piauí e do Tocantins; renda familiar até 5 (cinco) salários mínimos: Defensorias Públicas de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e renda familiar até 6 (seis) salários mínimos: Defensorias Públicas do Ceará. Dados do III Diagnóstico da Defensoria Pública, disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/iii%20diagn%c3%b3stico%20defensoria% 20P%c3%bablica%20no%20Brasil.pdf. Acesso em 10 de agosto de 2010. 12 Neste sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 246; ASSIS, Araken de. Garantia de acesso à justiça: benefício da gratuidade. In: TUCCI, José Roberto Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 20; MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 49-50. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual, cit., p. 246 4

Dispõe 1 do art. 306 do Código de Processo Penal (CPP), inserido pela Lei n. 11.449/2007: Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. Note-se que em nenhum momento questiona-se a condição econômica do preso, sendo concedido o serviço da assistência jurídica, simplesmente, em razão da situação de evidente hipossuficiência, decorrente da privação da liberdade. Neste sentido, também é função institucional da Defensoria Pública: atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais (inc. VIII do art. 4º da LC 80/94). No caso, toda e qualquer pessoa que se encontra privada de sua liberdade em estabelecimento policial ou prisional é, faticamente, hipossuficiente. A condição de aprisionado impõe uma situação de desigualdade e fragilidade perante o Estado que o vigia 14, de sorte a impor o dever de atuação da Defensoria Pública. Outra situação diz respeito a todo e qualquer processo judicial criminal. Nesse caso, independentemente da situação econômica do acusado, na hipótese de não ter constituído advogado particular, a Defensoria Pública será responsável pela defesa, sendo função institucional assegurar aos seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o 14 Nesse sentido, afirmam as regras 22 e 23 do documento 100 Reglas de Brasilia sobre acceso a la justicia de las personas en condición de vulnerabilidad: 22. La privación de la libertad, ordenada por autoridad pública competente, puede generar dificultades para ejercitar con plenitud ante el sistema de justicia el resto de derechos de los que es titular la persona privada de libertad, especialmente cuando concurre alguna causa de vulnerabilidad enumerada en los apartados anteriores. 23. A efectos de estas Reglas, se considera privación de libertad la que ha sido ordenada por autoridad pública, ya sea por motivo de la investigación de un delito, por el cumplimiento de una condena penal, por enfermedad mental o por cualquier otro motivo. 5

contraditório e a ampla defesa, com recursos e meios a ela inerentes (inc. IX do art. 4º da LC 80/94). Entende-se que no processo criminal a atuação da Defensoria Pública deve ser ampla e irrestrita, agindo em prol daquele que, independentemente de sua condição econômico-financeira, está em situação de flagrante hipossuficiência, dada a ausência de profissional jurídico capaz para realizar sua defesa técnica, fundamental para o respeito do princípio da ampla defesa e do contraditório 15. Nesse sentido, disserta Ada Pellegrini Grinover: Não pode haver sentença condenatória sem que o juiz tenha aferido o efetivo e concreto exercício da defesa e do contraditório, visto este como paridade de condições, como paridade que não pode satisfazer-se com um contraditório meramente eventual; deve estimular o contraditório para que da tese e da antítese possa ele imparcialmente formular a síntese. E, por isso mesmo, necessita esse juiz de um ofício de defesa tão bem estruturado quanto o da acusação. Agora, não cabe ao Estado indagar se há ricos ou pobres, porque o que existe são acusados que, não dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, não poderão ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais uma faceta da assistência judiciária, assistência a necessitados, não no sentido econômico, mas no sentido de que o Estado lhes deve as garantias do contraditório e da ampla defesa 16. 15 Os princípios do contraditório e da ampla defesa se aplicam a todos os processos, sejam eles judiciais ou administrativos. Afirma expressamente o art. 5º, inc. LV, da CF: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. No processo penal, esses princípios assumem uma abrangência ainda maior, já que nele o contraditório deve ser real, efetivo ou substancial (NERY, Nelson Nery. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 172). Em razão dessa abrangência, entende-se serem indispensáveis a defesa técnica, exercida por um profissional, bem como a autodefesa, que é aquela exercida diretamente pelo acusado. No caso da defesa técnica, ao contrário da autodefesa, que pode não ser exercida pelo réu, o qual exerce seu direito constitucional de permanecer em silêncio, não é disponível (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 56). A atuação no processo penal, portanto, não é necessariamente em favor do hipossuficiente econômico, mas em atenção a todo e qualquer acusado que não detenha defesa técnica, independentemente do motivo (ASSIS, Araken de. Garantia de acesso à justiça, cit., p. 20). 16 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual, cit., p. 246. 6

Também é importante trazer à colação o disposto no art. 141 do Estatuto da Criança e do Adolescente: É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos. Vale observar que toda criança ou adolescente, independentemente de sua situação econômica, tem direito à assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública 17. Tem-se que é a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento que caracteriza a hipossuficiência no caso. Outra hipótese em que se reconhece a hipossuficiência não econômica diz respeito à atuação da Defensoria Pública nos Juizados Especiais. Importante, neste ponto, resgatar que a instalação dos Juizados de Pequenas Causas e, posteriormente, com os Juizados Especiais Cíveis, surgiu com a finalidade de facilitar o acesso à justiça, com a isenção de custas, bem como com a facultatividade da assessoria de advogado 18. O Juizado Especial surgiu em atenção às reformas necessárias para o efetivo acesso à justiça 19. Nesse sentido, vale lembrar que a terceira onda do movimento de acesso à justiça, indicada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, envolve: Alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução (...) 20. A instalação dos Juizados Especiais, portanto, é uma tentativa de 17 ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!, cit., p. 277. 18 WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas do juizado especial de pequenas causas. In: WATANABE, Kazuo (Coord.). Juizado especial de pequenas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 4; MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil, cit., p. 44. 19 CUNHA, Luciana Gross. Juizado especial: criação, instalação, funcionamento e a democratização do acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 8-9. 20 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 71. 7

desformalização do próprio processo, utilizando-se a técnica processual em busca de um processo mais simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência tipos particulares de conflitos de interesses 21. O Juizado Especial visa a abrir as portas do Poder Judiciário ao pequeno litigante, que não tem condições de superar os obstáculos próprios do processo tradicional 22. Tendo em vista estes princípios, a Lei 9.099/05 declara ser facultativa a assistência judiciária a parte caso a outra compareça assistida por advogado ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual (art. 9º, 1º), caracterizando outra hipossuficiência que não a econômica para a atuação da Defensoria Pública 23. Sobre o tema ensina Cândido Rangel Dinamarco que a Lei dos Juizados Especiais adota um critério mais amplo de assistência judiciária, uma vez esta será devida independentemente da condição econômico-financeira da parte. E conclui: A concessão de patrocínio técnico às partes independentemente de sua condição patrimonial é uma das preocupações centrais da legislação referente aos juizados especiais cíveis, no seu empenho em oferecer uma justiça rápida, informal e eficiente. A essa ideia está ligada, inclusive, a exigência de instituição de órgãos assistenciais para prestar serviços especificamente junto 21 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual, cit., p. 179. 22 MORAES, Silvana Campos. Juizados de pequenas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 37-41. 23 Leopoldo Muylaert entende que a disposição do 1º do art. 9º, em razão de a Defensoria Pública apenas atuar em favor de quem comprovadamente demonstrar hipossuficiência econômica, não incide sobre a instituição da Defensoria Pública (MUYLAERT, Leopoldo. Assistência judiciária integral gratuita versus assistência judiciária atuação da defensoria pública junto aos juizados especiais cíveis. Revista de Direito da Defensoria Pública, Rio de Janeiro, v. 9, p. 210, 1996, p. 210). No mesmo sentido: MARTINS, Daniela Calandra. A assistência judiciária junto ao Juizado Especial Cível e a Defensoria Pública. Revista de Direito da Defensoria Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. 89, 2003, PEDROSA, Henrique E. G. Juizados especiais cíveis sem advogado & Comentários às Leis 9.9099/95 e 10.259/01. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 88. 8

aos juizados, como condição prévia e indispensável para a própria instalação de cada um deles (art. 56). 24 No entanto, o autor é genérico ao afirmar a quem caberia a tarefa de realizar tal assistência: Não importa se esses serviços serão prestados pelo próprio Estado, pela Ordem dos Advogados, por entidades filantrópicas, centros acadêmicos etc., desde que estejam convenientemente estruturados 25. Cleber Francisco Alves concorda com a afirmação de que a assistência deve ocorrer independentemente da condição financeira da parte, mas destaca que essa assistência deve ser prestada, necessariamente, pela Defensoria Pública. A esse respeito assevera o autor: A lei determina que o Estado deverá assegurar o funcionamento do serviço de assistência judiciária nos casos do Art. 9º, 1º, independentemente de qualquer ressalva quanto à situação econômico financeira das partes litigantes. Entendemos que, apesar da indicação de que a assistência judiciária será organizada na forma de lei local, o Estado somente pode arcar com o financiamento dessa assistência por intermédio da Defensoria Pública, que é o órgão constitucionalmente encarregado de fazê-lo, embora nada impeça que entidades da sociedade civil atuem em caráter supletivo e voluntário na prestação desses serviços, vedado o recebimento de qualquer verba pública para esse propósito: ou seja, as verbas públicas devem necessariamente ser aplicadas na Defensoria Pública, até que esteja devidamente aparelhada 26. A Defensoria Pública, assim, é instituição fundamental para o funcionamento dos Juizados Especiais 27. Além destas hipossuficiências, a professora Ada Pellegrini Grinover destaca a existência dos carentes organizacionais, próprios de uma sociedade de massa que, segundo a autora, são todos indivíduos 24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Manual dos juizados cíveis. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 199. 25 DINAMARCO, Cândido Rangel. Manual dos juizados cíveis, cit., p. 199. 26 ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!, cit., p. 276-277. 27 Nesse sentido: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, cit., p. 222. 9

que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações sócio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea. Assim, por exemplo, o consumidor no plano das relações de consumo: o usuário de serviços públicos; os que submetem necessariamente a uma série de contratos de adesão; os pequenos investidores do mercado mobiliário; os segurados da Previdência Social; o titular de pequenos conflitos de interesses, que via de regra se transforma em um litigante meramente eventual. Todos aqueles, enfim, que no intenso quadro de complexas interações sociais hoje reinante, são isoladamente frágeis perante adversários poderosos do ponto de vista econômico, social e cultural ou organizativo, merecendo, por isso mesmo, mais atenção com relação a seu acesso à ordem jurídica justa e à participação por intermédio do processo 28. Da mesma forma, Luiz Guilherme Marinoni assevera: Se percebermos as dificuldades da sociedade de massa e as incessantes transformações sociais, certamente compreenderemos a necessidade da assistência jurídica deve deixar de ser enfocada apenas da ótica da pobreza e passar a ser visualizada na perspectiva do cidadão envolvido na complexidade e, às vezes, nos conflitos da sociedade urbana em que vive 29. José Augusto Garcia de Souza, neste contexto, identifica atualmente o fenômeno da pluralização de carência 30. Depreende-se daí que essa hipossuficiência organizacional é o fundamento para a atuação da Defensoria Pública nas demandas coletivas. A legitimidade da Defensoria Pública para ações coletivas sem dúvida gera muita discussão e a análise do requisito da hipossuficiência é fundamental para tentar resolver a questão. 28 GRINOVER, Ada Pellegrini. O acesso à justiça no ano 2000. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) O processo civil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p. 33. 29 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil:, cit., p. 49-50. 30 SOUZA, José Augusto Garcia de. A nova Lei 11.448/07, os escopos extrajudiciais do processo e a velha legitimidade da Defensoria Pública para as ações coletivas. In: SOUSA. José Augusto Garcia de (Coord.). A Defensoria Pública e os processos coletivos: comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 235. 10

Gregório Assagra de Almeida sustenta a exigência da pertinência temática na legitimidade conferida à Defensoria Pública, de tal sorte que a instituição somente poderia ajuizar ação civil pública para a defesa de direitos e interesses coletivos em geral de pessoas necessitadas, conforme se interpreta da combinação do art. 5, II, da LACP, com o art. 134, caput, da CF/88 31. No mesmo sentido manifesta-se Teori Zavaski, ao afirmar que a Defensoria Pública apenas poderá ajuizar ação civil pública que diga respeito a interesse de pessoas reconhecidamente carentes de recursos financeiros 32. Essa não é, porém, a nossa opinião, especialmente em razão de a hipossuficiência trazida pela CF como requisito para a atuação da Defensoria Pública não dizer respeito só aos hipossuficientes econômicos, mas também aos organizacionais. Assim, embora seja estritamente verdadeiro que a atuação da Defensoria Pública como legitimado ativo para a propositura de ações coletivas deva ter como norte a função institucional da instituição preceituada na CF, o fato é que, conforme abordado no decorrer do presente trabalho, os conceitos indeterminados utilizados pela CF não se restringem ao hipossuficientes econômicos, mas também aos jurídicos, fáticos, organizacionais etc. Tanto é verdade que a Defensoria Pública possui diversas atividades em que a questão da econômica do destinatário do serviço não é questionada. 31 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 124; SOUZA, José Augusto Garcia de. A nova Lei 11.448/07, os escopos extrajudiciais do processo e a velha legitimidade da Defensoria Pública para as ações coletivas, cit., p. 244. 32 ZAVASKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 77. FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin. Legitimidade ativa da Defensoria Pública em ações civis públicas, p. 163; PEREIRA, Marialdo de Castro; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A Defensoria Pública perante a tutela dos interesses transindividuais: atuação como parte legitimada ou como assistente judicial. In: A Defensoria Pública e os processos coletivos: comemorando a Lei Federal nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Coord. SOUSA. José Augusto Garcia de. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 266. 11

Ademais, ao prever a legitimidade da Defensoria Pública, a legislação não realizou qualquer restrição. Previu a legitimidade de forma ampla e irrestrita 33, tal qual fez com outros legitimados. Nesse sentido afirmam Fredie Didier Junior e Hermes Zaneti Junior: É importante frisar que a Defensoria atua mesmo em favor de quem não é hipossuficiente econômico. Isto por que a Defensoria Pública apresenta funções típicas e atípicas. Função típica é a que pressupõe hipossuficiência econômica, aqui há o necessitado econômico (v.g., defesa em ação civil ou ação civil para investigação de paternidade para pessoas de baixa renda). Função atípica não pressupõe hipossuficiência econômica, seu destinatário não é o necessitado econômico, mas sim o necessitado jurídico, v.g., curador especial no processo civil (CPC art. 9 II) e defensor dativo no processo penal (CPP art. 265) 34. O STJ parece conferir legitimidade ampla à Defensoria Pública 35. Por fim, e talvez a atividade mais importante a ser desempenhada pela Defensoria na persecução do Estado Democrático, diz respeito ao seu papel fundamental em promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico, visando a sanar o que podemos chamar de hipossuficiência da capacidade jurídica. 33 ORDACGY, André da Silva. Primeiras impressões sobre a Lei nº 11.448/07 e a atuação da Defensoria Pública da União na tutela coletiva. In: SOUSA. José Augusto Garcia de (Coord.). A Defensoria Pública e os processos coletivos: comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 95-96. 34 DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. Salvador: Podivm, 2007. v. 4, p. 216. 35 (...). Este Superior Tribunal de Justiça vem-se posicionando no sentido de que, nos termos do art. 5º, II, da Lei nº 7.347/85 (com a redação dada pela Lei nº 11.448/07), a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações civis coletivas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências (...) (STJ, 1ª T., REsp 912849/RS, rel. Min. José Delgado, j. 26.2.2008, DJe 28.4.2008, v.u.). 12

Vale lembrar que Mauro Capelletti e Bryant Garth indicam que uma das barreiras para o acesso à justiça a capacidade jurídica pessoal, que é a capacidade de reconhecer um direito e, a partir disso, propor uma ação ou exercer uma defesa 36. É necessário que as pessoas sejam informadas acerca de seus direitos, bem como da forma pela qual deve ser ele exercido. Assim, o acesso à justiça pressupõe que as pessoas tenham noção de seus direitos ou, numa fórmula consagrada, percebam que têm direito a ter direitos 37. Sobre a importância dessa conscientização, destaca Silvana Cristina Bonifácio Souza que o acesso ao Direito, portanto, passa pela conscientização dos direitos de cada cidadão, criando nele o espírito de luta por esses direitos 38. Nesse contexto, insere-se a obrigação da Defensoria Pública em atuar na educação de direitos. E, nesta atuação tem a Defensoria Pública a função de orientar e estimular lideranças e agentes comunitários, objetivando multiplicar o conhecimento 39. Quando da promulgação da Lei Complementar n. 80/94 esta silenciou sobre este tema, silêncio este não repetido pela a Lei Complementar paulista n. 988/2006 que afirma ser atribuição institucional da Defensoria Pública do Estado: informar, conscientizar e motivar a população carente, inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias fundamentais (art 5º, inciso II). Da mesma forma, prevê a função de 36 Acesso à justiça, cit., p. 21-22. 37 WEIS, Carlos. Direitos humanos e Defensoria Pública. Boletim IBCrim, ano 10, n. 115, p. 5, jun. 2002, p. 5. 38 SOUZA, Silvana Cristina Bonifácio. Assistência jurídica integral e gratuita. São Paulo: Método, 2003, p. 46. 39 Um programa de educação em direitos humanos deve visar, em primeiro lugar, a qualificação dos próprios agentes educadores, tanto instituições ONG s, Igreja, governos, escolas, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais etc. quanto pessoas (FREI BETTO. Educação em direitos humanos. Disponível em: http://www.eurooscar.com/direitos- Humanos/direitos-humanos9.htm. Acesso em: 12 mar 2009. 13

promover trabalho de orientação jurídica e informação sobre direitos humanos e cidadania em prol das pessoas e comunidades carentes, de maneira integrada e multidisciplinar (art. 5º, inc. VI, alínea j ).Porém, com a reforma promovida pela Lei Complementar n. 132/2009, tal omissão foi corrigida, passando a constar no rol das funções institucionais da Defensoria Pública tal atuação (art. 4º, inciso III). Conclui-se, portanto, que a Defensoria Pública para ser a instituição de expressão e instrumento do regime democrático, tal qual afirma o atual art. 1º da LC n. 80/94, alterado pela LC n. 132, 7 de outubro de 2009, não tem suas atribuições vinculadas ao requisito da hipossuficiência meramente econômica, mas sim em todas aquelas hipossuficiências, com potencial de aniquilar direitos, que uma sociedade tão injusta puder constituir. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006 ALVES, José Carlos da Silva. O direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita: alcance e efetividade. 2006. Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. AMERICANO, Jorge. Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1: Artigos 1º a 290. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1958 ASSIS, Araken de. Garantia de acesso à justiça: benefício da gratuidade. In: TUCCI, José Roberto Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1994 (Temas de direito processual Quinta série). CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988, Comentários à Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 2. CUNHA, Luciana Gross. Juizado especial: criação, instalação, funcionamento e a democratização do acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2008. DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. Salvador: Podivm, 2007. v. 4. 14

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