A SOBREVIVÊNCIA MOTIVADA POR UMA FERIDA: UMA LEITURA DE A BELA E A FERA OU A FERIDA GRANDE DEMAIS, CONTO DE CLARICE LISPECTOR



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Transcrição:

A SOBREVIVÊNCIA MOTIVADA POR UMA FERIDA: UMA LEITURA DE A BELA E A FERA OU A FERIDA GRANDE DEMAIS, CONTO DE CLARICE LISPECTOR Professora Dra. Antonia Marly Moura da Silva i (UERN) Mestranda Flávia Rodrigues de Melo ii (UERN) Resumo: Uma marca da contística de Clarice Lispector, reconhecida pela crítica, é o caráter introspectivo da personagem, outro traço privilegiado em sua ficção é a representação de figuras femininas em seus espaços domésticos, na condição de mães, mulheres e donas de casa. O tema da dualidade do ser é marca de sua narrativa. Convém ressaltar que este trabalho é fragmento de uma pesquisa maior sobre os indícios do mito de Narciso no conto de Lispector. Neste, o enfoque é sobre a personagem central do conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, integrante da obra A Bela e a Fera (1979) de Clarice Lispector, Carla de Sousa e Santos, protagonista da narrativa. Trata-se de um mulher que demonstra uma cegueira narcísica, pois as metáforas que giram em torno da figura do espelhos emblematizam a relação entre sujeito e realidade exterior e, em particular, a percepção do eu em relação ao outro e ao seu mundo circundante. Carla é identificada em nossos estudos a partir da observação de metáfora ligadas à problemática do desdobramento do eu como o espelho e o olhar. Procuramos identificar as representações do narcisismo contemporâneo presentes na narrativa lispctoriana. Importa, portanto, observar o diálogo entre literatura e mito, já reconhecido entre críticos literários, antropólogos, filósofos e outros estudiosos como marca recorrente na ficção moderna. Para a leitura aqui proposta serão fundamentais os estudos de Freud (1990) (1996) sobre o narcisismo e o estranho, os postulados de Lash (1983) e Cavalcanti (1992) sobre a cultura do narcisismo e o modo como Hall (2006) e Bauman (2005) concebem o conceito de identidade nos dias atuais e, por fim, os estudos de Rosenbaum (2002), Kahn (2005), Almeida (2004) e Sá (1979) sobre os traços característicos da obra de Clarice Lispector, dentre outros nomes que possam suscitem uma reflexão sobre a produção literária de Clarice Lispector. Palavras-chave: Clarice Lispector, Identidade, Conto brasileiro. 1 Introdução Estudar Clarice Lispector e suas narrativas é adentrar no universo das personagens e, mais que isso, é entender os dramas vividos, os questionamentos em torno de sua existência e os papeis que assume. Dessa forma, este trabalho pretende desenvolver um estudo teórico-crítico sobre a personagem central do conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, integrante da obra A Bela e a Fera (1979) de Clarice Lispector. Observaremos as múltiplas imagens que legitimam a presença da mulher no contexto social, a partir do conteúdo alegórico e metafórico expresso na construção da imagem e, principalmente, a carga metafórica contida na cegueira aparente, observada na ação da personagem, pois o espelho que permite o ato contemplativo, muitas vezes, é figurativo, servindo para revelar a relação entre sujeito e realidade exterior e, em particular, a percepção do eu em relação ao outro e ao seu mundo circundante. Na leitura pretendida, serão fundamentais os estudos de Freud (1990) (1996) sobre o

narcisismo e o estranho, Lash (1983) e Cavalcanti (1992), sobre o narcisismo e a cultura do narcisismo; Hall ( 2006) e Bauman (2005) sobre os conceitos de identidade nos dias atuais e, por fim, os estudos de Rosenbaum (2002), Kahn (2005), Almeida (2004) e Sá (1979) sobre os traços característicos da obra de Clarice Lispector, dentre outros nomes que proporcionarão um aprofundamento teórico no estudo da personagem clariceana. O título da obra, A Bela e a Fera, foi dado pelo seu filho Paulo Gurgel Valente. Foi escrita por Clarice Lispector em 1979, O livro é dividido em duas partes: a primeira composta por seis contos e a segunda por A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais foi o último conto escrito pela autora e é o objeto de nossa análise. A narrativa ficionista apresenta poucos personagens: Carla de Sousa e Santos, personagem central, o mendigo não nomeado e José, o chofer. É uma história breve, girando em torno de uma única célula dramática: O encontro de Carla com um mendigo. O narrador em terceira pessoa, observador, descreve e adentra o universo particular de cada personagem, fazendo-se onisciente e onipresente, já que mergulha na psicologia e e relata aspectos sociais que funcionam como liame entre Carla e o mendigo. Em todos os momentos da narrativa, a personagem está envolta num emaranhado de pensamentos, caracterizando o fluxo de consciência, marca do texto de Clarice Lispector. O tempo corresponde à estrutura de um conto: breve, sintético, rápido de informação e por se conter ao que é preciso, ou seja, a história diz o necessário, mesmo quando faz uso de variações de momento, o que caracteriza o flashback. A narrativa representa uma cena que é comumente vivida por qualquer um indivíduo da sociedade atual. A narrativa lispectoriana aponta para o fluxo de consciência, uma vez que o narrador mergulha na narrativa, não havendo continuidade entre tempo e espaço. Assim, podemos dizer que o foco narrativo constitui-se na mente das personagens, sendo o monólogo interior e os múltiplos questionamentos vividos uma marca principal do conto e da prosa lispectoriana. O espaço onde se passa o conto é o Rio de Janeiro, a rua, é o lugar social da personagem, como fica evidenciado no início da narrativa Começa: Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a seu José para vir buscá-la às cinco, não calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só massagem. (LISPECTOR, 1999, p. 95). O Hotel Copacabana Palace fica situado na Avenida Atlântica, em Copacabana, um dos

hotéis mais luxuosos e de grande porte da cidade do Rio de Janeiro. O conto se constrói a partir das diferenças, física e social, entre a personagem Carla e o mendigo, ou melhor, pela oposição entre o perfeito e o grotesco, características das personagens. A introspecção da personagem é marca da escrita de Clarice, pois como bem deixamos claro o narrador se faz onisciente e onipresente, mergulhado na psicologia e na sociologia de Carla de Sousa e Santos, deixando exposto o momento em que ela passa a pensar também como seria a vida daquele homem após o encontro marcante que tivera com ele. Percebemos que o interior das personagens sofre mudanças a partir do drama vivido. No caso da personagem Carla, o mendigo foi o responsável por retirá-la da ordem, da anestesia, da futilidade em que vivia. No conto, a personagem se depara com a própria paradoxal ausência (Almeida, 2004, p. 47), marcando o labirinto da sua própria existência. Observamos no conto marcas narcísicas, onde a personagem denominada de Carla de Sousa e Santos, típica burguesa, que se preocupava apenas em cuidar da beleza e ir para reuniões com outras mulheres da sociedade, passa a se reconhecer como sujeito, motivada por todos os fatos que acontecem ao seu redor a partir do encontro com o mendigo. A narrativa de Clarice, desde o título, estabelece uma ligação entre o conto lispectoriano e o famoso conto de fadas A Bela e a Fera, porém o diferencial do conto de Clarice Lispector é investir numa nova perspectiva sobre as relações amorosas, ao contrário da narrativa maravilhosa, que investe em sua estrutura no clássico final foram felizes para sempre e, além disso, observamos o teor que se coloca em torno das personagens Bela e o príncipe que foi transformado em Fera. Ressaltamos também que o foco no conto clariceano não é o amor, mas focalizar a problemática da imagem, a oposição belo e feio, ambivalentes como eu/outro. No conto de Clarice, o foco é a metáfora da grande ferida utilizada para expressar o drama da personagem Carla de Sousa e Santos. Carla de Sousa e Santos, personagem central da narrativa, tinha, como a própria personagem faz questão de destacar, o de e o e, que expressam idéia de pertencimento e que compõem um nome importante, portanto, um nome a preservar, evocando a tradição da sociedade burguesa, a elite carioca. Era de uma família de tradição, dispunha de uma vida cheia de regalias, como um chofer, por exemplo. Como havia marcado uma hora no salão e ficou desocupada antes do momento previsto, pensou em pegar um táxi, mas imaginou que ele não teria troco, pois ela dispunha apenas de uma nota de quinhentos cruzeiros. É a partir desse momento que a personagem passa a perceber coisas essenciais que antes desse momento na porta de um salão não fazia:

Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era era puro, pensou sem entender. Quando se viu no espelho a pele trigueira pelos banhos de sol faziam ressaltar as flores douradas perto do rosto dos cabelos negros, conteve-se para não exclamar um ah! pois ela era cinqüenta milhões de unidades de gente linda. (LISPECTOR, 1999, p. 95) É a partir do encontro com a outridade que Carla faz descobertas de si, identificando seus semelhantes e diferentes. No fragmento acima, em destaque, a protagonista resolve ficar de pé na rua, momento em que começa sua autopercepção. O mendigo, com sua ferida grande demais, possibilitou à protagonista entrar em contato com as suas feridas internas. No conto em análise, a personagem Carla pertencente à classe média, ex-secretária do marido banqueiro, que através do casamento passa a pertencer a sociedade burguesa. Ao encontrar com o mendigo, lança o olhar para o outro e para si. O encontro epifânico é acompanhado de uma experiência transformadora. Carla não será mais a mesma e nem tão pouco o leitor. Neste ato introspectivo, percebemos que: Sempre era ela com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela. (LISPECTOR, 1999, p. 95), demonstrando um viver não para si mesma, mas para os outros. Ela é caracterizada como um sujeito preocupado em ver o que o outro pensa a respeito dela, preocupar-se com este, enxergar seus defeitos e qualidades, esquecendo da sua própria vida, chegando a pensar que nada era. A tradição da família, agora é vista como tradição de nada, na verdade dos fatos. Diante do espelho, as personagens exercitam um processo de auto(re)conhecimento; no conto A Bela e a Fera ou a ferida grande demais, a personagem busca o belo físico, isso ocorre quando ela percebe que sua pele faz lembrar flores douradas e que seus cabelos são negros. Identificando, além de tudo, que era linda. Nesse momento, a personagem começa a compreender a escuridão em que vivia, fazendo um paradoxo entre o que é e o que vive. Carla utiliza-se de símbolos como flores douradas e cabelos negros: mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. (LISPECTOR, 1999, p. 95). A protagonista a partir do encontro com o mendigo reconhece que Nunca mais seria a mesma pessoa. Não que jamais tivesse visto um mendigo [...] De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria que ela. (LISPECTOR, 1999, p. 103-104). Carla percebe que sua vida era marcada por acontecimentos e relações líquidas, apenas por casualidade do destino, impostas pela condição do marido e pela sociedade, porém é incapaz de mudar sua história por causa da imposição social, pois tinha um nome a zelar, já que era esposa do bancário, preferindo manter a vida que levava do que se arriscar em algo novo, desconhecido,

gerador de dúvidas e incertezas: Seria ela, por acaso, vencedora? Se vencer fosse estar em plena tarde clara na rua, a cara lambuzada de maquilagem e lantejoulas douradas... Isso era vencer? (LISPECTOR, 1999, p. 99). A personagem está ciente da pessoa que é e que não há ninguém como ela, e as constatações são feitas a partir de sua própria análise: Nunca houve em todo o passado do mundo alguém que fosse como ela. E depois, em três milhões de trilhões de ano não haveria uma moça exatamente como ela. (LISPECTOR, 1999, p. 95-96). E todo o reconhecimento da personagem vai se desenvolvendo, marcado pelo momento único o início da percepção : A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão. Pensou: estou casada, tenho três filhos, estou segura. (LISPECTOR, 1999, p. 96). O conto constitui-se como um diálogo com o mito de Narciso, aquele que através da metáfora do espelho, desencadeia inquietação, tornando-o um indivíduo vazio. Nas palavras da personagem, é mencionado que a beleza pode levar a uma espécie de loucura que é a paixão, fato que aconteceu com Narciso, ao ver seu reflexo nas águas de um rio, apaixonando-se por si e morrendo pela impossibilidade de realização daquele amor. O encontro com o mendigo seu duplo lhe depara com a contradição e impossibilidade, uma vez que está diante do seu oposto considerado impossível, pois ela não via formas de reverter a situação do homem, ou seja, uma resolução para sua ferida. Assim, o mendigo pode ser visto como um espelho para a personagem central, já que ele reflete a condição de vida da personagem. A esse respeito, observamos o que Ferreira fala sobre o espelho na obra de Clarice: Em toda a obra clariceana, é muito mais que um objeto civilizado e geométrico, cuja utilidade é o de refletir uma imagem de contornos definidos e limitados [...] O espelho não só reflete uma imagem, ele é um pretexto para o sonho e devaneio brotarem. Há um desdobramento entre o objeto refletido e o ser que o refletiu. (2005, p. 12) Diante do espelho as personagens devaneiam, percebem sua condição de vida, ou melhor, buscam compreender, neste jogo especular com o duplo, aquilo que lhes falta ou o próprio efeito de estranhamento decorrente do ato contemplativo. Através da imagem do mendigo, Carla cria sua própria imagem, ou seja, é através do reflexo que ela procura se auto-reconhecer, o que não acontece com o Narciso ovidiano diante da fonte. A personagem percebe que é fruto do meio em que vive, ou seja, antes de pertencer à sociedade ela tinha uma vida simples, podendo ser comparada à do mendigo, pois não pertencia a grupos sociais distintos, era uma secretária, como bem é lembrado por ela: Antes de casar era de

classe média, secretária do banqueiro com quem se casara e agora agora luz de velas. Estou é brincando de viver, pensou, a vida não é isso. (LISPECTOR, 1999, p.100). A vida é comparada com uma brincadeira pelo fato da personagem enxergar que o modo de viver da gente rica não é vida digna, pois encontrar-se com colegas em salões, em jantares, com o intuito de ostentar luxo e poder parece não ser forma ideal de viver a essência, mas a aparência. Conclusão Em A Bela e a Fera ou a ferida grande demais, a ferida é o meio de sobrevivência de dois personagens do mendigo e Carla. A ferida daquele é física, uma doença que é exposta publicamente sem lhe causar maiores preocupações. É através da observação da cena grotesca da ferida que Carla desperta para sua própria ferida, não física, mas psicológica. É no ato contemplativo para o mendigo que ela percebe, no reflexo, quem ela realmente é. Em outras palavras, a representação do verdadeiro eu de Carla somente é revelado numa imagem deteriorada do corpo. O encontro com o mendigo serve para o despertar da realidade de Carla, mulher rica, que vive em salões de beleza, criando máscaras para sua aceitação na sociedade. Ela é o tipo de Narciso de nossos dias, uma vez que se apresenta estilhaçada, desmascarada, consciente da existência do não-eu. O mendigo, o espelho que permite um ato introspectivo que conduz a personagem a um estado de epifania, é o elemento revelador de sua real verdade, permite o entendimento que separa o mundo da essência do mundo da aparência. Carla revela um certo enclausuramento motivado pelos vários papéis atribuídos a mulher dona de casa, mãe, mulher, amante e também suas inúmeras máscaras necessárias para ser aceita. Através da ação vivida pela personagem, e, sobretudo através de seu ato reflexivo e introspectivo, é possível compreender a crise identitária desta mulher. Referências Bibliográficas 1] ALMEIDA, J. R. de. A Experimentação do Grotesco em Clarice Lispector: ensaios sobre literatura e pintura. São Paulo: Nankin Editorial: EDUSP, 2004. 2] BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Claúdia Martinelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 3] CAVALCANTI, R. O mito de narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix, 1992. 4] FREUD, S. O estranho. Obras completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. 18. p. 12-85. 5]. Luto e melancolia. Obras completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 245-263. 6]. Sobre o narcisismo: uma introdução. Obras completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77-108.

7] HALL, S. A identidade na pós modernidade. 11. edição. Trad. Tomaz T. da Silva e Guacira L. Lovro. Rio de Janeiro: DP & A. 2006. 8] KAHN, D. M. A via crucis do outro: identidade e alteridade em Clarice Lispector. São Paulo: Associação Editorial Humanitista: Fapesp, 2000. 9] LASCH, C. A cultura do narcisismo. Trad. Ernani Pavanell. Rio de Janeiro: Imago, 1983. 10] SÁ, O. A escritura da Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, Lorena: Faculdades Integradas Tereza D Avila, 1979. iautor(es) Marly SILVA, doutora (Profa. Dra. Antonia Marly Moura da Silva) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) Departamento de Letras Vernáculas UERN/Mossoró RN, Brasil marlymouras@uol.com.br ii Flávia MELO, mestranda Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) flavia_melo2@hotmail.com