Os campos expandidos do teatro¹

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Transcrição:

Os campos expandidos do teatro¹ Silvia Fernandes Universidade de São Paulo, Brasil Marta Isaacsson Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil A migração do teatro para além dos paradigmas tradicionais é uma constante na cena contemporânea, em que proliferam experiências híbridas, descentradas, cujo traço dominante é furtar-se a padrões de criação e leitura convencionais. Seja quando se expande para além dos limites do que se considera uma manifestação teatral, seja quando invade a vida e dela se apropria por mecanismos de anexação do real, parece evidente que o campo de ação do teatro de hoje é amplo e informe. O fenômeno não é novo. Desde as vanguardas históricas do princípio do século vinte o lugar de ocorrência do teatro e o conceito que lhe dá visibilidade sofreram profundas alterações. Mas sem dúvida o deslocamento mais radical manifestou-se a partir dos anos 1960, quando artistas vindos preferencialmente das artes visuais e da música, como Alan Kaprow, Joseph Beuys ou John Cage, criam gêneros teatrais híbridos como o happening e a performance. No período, os eventos de Cage e Merce Cunningham, o movimento Fluxus, as experiências radicais de Beuys e os environments imersivos surgem como formas artísticas que usam a teatralidade material do espaço e a corporeidade real do performer para projetar um campo expandido de corpos, objetos, encenações visuais, escultóricas e sonoras de difícil identificação. Esses experimentos inéditos não podem ser tratados simplesmente como teatro, cinema, música, artes visuais ou dança, pois o que se apresenta é o reino do tudo junto, como diria Roger Shattuck a respeito da vanguarda parisiense na belle époque (Shattuck, 1968). 1 Registramos nossos agradecimentos a Ciane Fernandes, José Da Costa e Stepham Baumgärtel, convidados especiais na composição da comissão editorial do dossiê e cujas atuações foram definitivas para o sucesso da iniciativa.

ii ISSN 2357-9978 Uma das primeiras ensaístas a analisar essa arte híbrida foi Rosalind Krauss no artigo já canônico A escultura no campo ampliado. Ao comentar os modos diferenciais da escultura no final dos anos 1970, Krauss enfatiza a ruptura com a especificidade artística do modernismo e a gestação de um campo novo de atuação dos criadores, marcado por ausência de fronteiras e multiplicidade de relações entre arte, ciência e novas tecnologias (2008, p. 87-93). Em texto deste dossiê, Gabriela Lírio nota que, em período posterior, essas criações sem território fixo, cujo pressuposto comum é o campo não específico de manifestação, proliferaram a ponto de ganharem nomeações diferenciais, como escultura expandida, filme expandido e literatura expandida. Visitando as ideias de Krauss, Couchot e Garramuño, a pesquisadora identifica o campo ampliado como expressão contrária à especificidade das artes, como uma rede de tensão e de novas relações entre os elementos expressivos. Ela sustenta tratar-se de um lugar híbrido, um espaço de convivência de diferentes formas artísticas e de interação tecnológica, que interroga a percepção do espectador de maneira inusitada. Diante dessa cena que expande ou amplia seu território original, encerra sua reflexão levantando importante questão acerca da necessidade de se repensar os processos formativos das artes cênicas, o caráter imprescindível e, ao mesmo tempo, as dificuldades de implementação de laboratórios interdisciplinares de experimentação no âmbito das instituições de ensino. Em relação à teoria teatral, a tentativa de abarcar o campo informe dessas experimentações passaram pela ênfase nos conceitos de teatralidade, performatividade e pós-dramático, que pareciam aptos a dar conta de experiências ampliadas para muito além da encenação de um texto dramático representado por atores. Quando Josette Féral defende a ideia de teatralidade como um ato consciente do performer e do espectador, cujo olhar abre a clivagem necessária à ocorrência do teatro, não deixa dúvidas a respeito da amplitude de experimentos que pretende abarcar, a ponto de incluir nesse espectro cenas de teatro invisível em metrôs, recortes de atividades cotidianas em cafés e até mesmo eventos ao ar livre onde é difícil distinguir a paisagem do teatro (Féral, 2002, p. 3-12). Erika Fischer-Lichte segue a mesma trilha ao sublinhar o desvio performativo que o teatro sofreu por volta dos anos sessenta, quando a construção da cena a partir de genealogias plásticas e corporais é uma constante, com distanciamento progressi- ARJ Brasil V. 3, n. 1 p. i-ix jan. / jun. 2016 FERNANDES; ISAACSSON Os Campos Expandidos

iii vo das raízes dramáticas e da representação ficcional, que até então constituíam o núcleo do teatro (2008, p. 36). Quanto à Hans-Thies Lehmann, é suficientemente conhecida a ampla cartografia do teatro pós-dramático que esboça no polêmico livro homônimo, na busca difícil de organizar vetores de leitura dos processos multifacetados da cena contemporânea, que invadem territórios miscigenados de artes plásticas, música, dança, cinema, vídeo, performance e novas mídias, além de recusar a ascendência do drama para sua constituição e seu sentido (Lehmann, 2007). Em texto deste dossiê, Ricardo Fabbrini retoma o teatro de dramaturgia visual de Lehmann para associá-lo ao campo expandido do teatro, que a seu ver incorpora diversas mídias no intuito de produzir diferentes regimes de imagem. Em diálogo estreito com Gilles Deleuze, Fabbrini recorre à noção de imagem-individuação para mostrar que esse teatro é o lugar por excelência do drama da percepção, espaço em que a forma afeta a sensação e força o pensamento do espectador. A confluência de linguagens, luzes e corpos, que para Deleuze é uma comunidade das artes, para Fabbrini é uma forma compósita capaz de produzir imagens críticas dos ardis da representação e do simulacro das mídias de massa, devolvendo ao olho a possibilidade de ver. Possibilidade de ver aquilo que nos olha, como nota Romeo Castellucci ao criar o espetáculo O conceito de rosto no filho de Deus, presente neste dossiê em entrevista concedida pelo artista a Leonel Carneiro e Eli Borges. Ao se referir à gênese do espetáculo, recorda sua estranheza ao olhar o Cristo retratado por Antonello de Mesina e perceber que ele parecia atravessar a tela para atingi-lo com um olhar que o desnudava. Imediatamente, pensei em reproduzir o retrato em tecido, em uma escala gigantesca, lembra Castelluci, ao relatar o instante de concepção da imagem do rosto que, no espetáculo, salta do ponto de fuga central do palco para lançar sobre o espectador um olhar que ele não consegue evitar. Ampliando o olhar sobre os campos expandidos do teatro, os analistas reunidos neste dossiê partem de pontos de vista diferenciais, recorrendo a vários dispositivos de leitura. Ainda que as abordagens sejam plurais, como é desejável, talvez se possa indicar como constante dos textos a concepção do teatro contemporâneo como uma arte atravessada por toda sorte de interferências e matérias, como observa Christophe Bident em seu artigo. Recorrendo a três exemplos artísticos, as criações site-specific do Teatro da Vertigem, as vídeo-performances do grupo Ber-

iv ISSN 2357-9978 lin e os espetáculos multimídia do diretor Guy Cassiers, o pesquisador caracteriza o teatro atravessado por dois movimentos. O centrífugo, resultante da realização da performance em espaços urbanos distintos do teatro, experiências em que o mundo é declarado teatro em decorrência do jogo dos corpos e da linguagem diante de um público. O centrípeto, que resulta da apropriação de novos dispositivos tecnológicos no âmbito das salas de espetáculo e permite tornar nebulosa a distinção realidade e ficção. Esses movimentos, alerta Bident, são aparentemente opostos, pois tanto espetáculos em lugares públicos abertos podem fazer uso de tecnologia, quanto instalações com materiais site-specific são criadas no interior de salas de teatro. Além disso, destaca que esses dois movimentos convergem na ruptura com a representação, no atravessamento de questões sociais e políticas, na interrogação da história, no cruzamento presente-passado, na requalificação do real como objeto perceptível e no caráter relativo daquilo que pode ser considerado realidade ou ficção. Procedendo desse modo, esse teatro atravessado libera, segundo Bident, a circulação infinita de perspectivas, mencionada por Viveiros de Castro, e opera em sintonia com a política do mestre ignorante referido por Jacques Rancière. Interceptando alguns temas tratados por Bident, Marvin Carlson constata que o teatro atual se expande rumo à realidade. Em seu texto, parte do pressuposto de que a tensão entre real e ilusão sempre foi o núcleo fundador da experiência teatral, já que a vida real e o corpo vivo do ator são a matéria preferencial de construção da ficção. Mas observa que é apenas nos anos finais do século XX e no princípio do XXI que o real no teatro passa a ser enfatizado de um modo inédito, pois diversos criadores decidem centrar seus experimentos na vida, no espaço e no performer reais, em detrimento da ficção. O que Lehmann diagnosticou como irrupção do real no teatro, Carlson vê como a maior guinada que o campo prático e fenomenológico do teatro sofreu nas últimas décadas, ao voltar as costas para a mimese e problematizar a negociação entre o real e o mimético. O historiador faz uma retrospectiva da origem dessas práticas, desde o realismo histórico de Nicolai Evreinoff, passando pelo teatro documentário de Erwin Piscator e do American Living Newspaper e pelas experiências de Rolh Hochhuth e Peter Weiss na Alemanha para chegar aos dramas documentários de Moisés Kaufman e Emily Mann e ao teatro de testemunho de Barney Simon e Anna Devare Smith. No entanto, não ARJ Brasil V. 3, n. 1 p. i-ix jan. / jun. 2016 FERNANDES; ISAACSSON Os Campos Expandidos

v deixa de apontar outra vertente da tendência, ao referir as experiências da body art, os happenings de Allan Kaprow e as performances radicais de Bruce Naumann e Chris Burden, compostas exclusivamente de ações da vida real. Para Carlson, ações físicas violentas como as de Burden, reais e não simuladas, fazem parte do projeto do teatro experimental de romper as barreiras entre palco e vida, público e privado. O mote serve de introdução à análise do coletivo alemão Rimini Protokoll, que desenvolve seus trabalhos com especialistas do cotidiano, a quem cabe trazer para a cena a própria experiência profissional. O autor associa essa invasão de pessoas reais no palco a inúmeras experiências de uso direto da realidade social que borram os limites entre teatro e realidade, como é o caso das criações site specific ou do Disabled Theatre do coreógrafo francês Jerôme Bel, que criou vários trabalhos com portadores de deficiência. A conclusão de Carlson é que as experimentações teatrais mais significativas do século XXI são uma contínua negociação entre o teatro e a realidade, que não apenas refletem, mas incorporam. O artigo de Renato Ferracini e Bruna Martins Reis explora um campo de trabalho semelhante ao de Jerôme Bel. Trata-se de uma reflexão projetada na fronteira entre dança e clínica, práticas que os autores consideram provocadoras de experiências propícias à reinvenção de si e de novos modos de existência. A proposta do texto é pensar a dança no contexto de dois serviços de Saúde Mental destinados à reabilitação psicossocial de portadores de transtornos mentais graves. As práticas experimentadas no encontro entre corpos e na pesquisa de estados de presença foram disparadoras de processos de subjetivação capazes de criar algo semelhante aos dispositivos de vida referidos por Nicolas Bourriaud, que possibilitam a recriação de si. Também na fronteira entre arte e vida situa-se o trabalho do artista catalão Roger Bernat, entrevistado por Júlia Guimarães para este dossiê. Um dos artistas mais importantes da cena contemporânea espanhola, é conhecido por envolver não atores em suas criações e pela invenção de inusitados dispositivos de participação do espectador. Como nota a entrevistadora, ainda que suas criações sejam consideradas performances ou happenings, Bernat faz questão de afirmar que o que faz é teatro, pois cria espaços destinados a reunir pessoas se reúnem para repensar suas relações coletivas. Outros textos do dossiê focalizam diversas experiências que atravessam o território expandido do teatro contemporâneo. O encontro de procedimentos orientados

vi ISSN 2357-9978 à criação da dança realizada em espaços abertos, ambientes externos, motiva a investigação empírica e a reflexão de Paula Kramer, que partilha em detalhe o processo de criação da performance Body, trees & things (2012). Inspirada no pensamento da cientista política Jane Bennett, a pesquisadora parte da não oposição entre humano e não-humano, sujeito e objeto, atribuindo às coisas, aos objetos e aos materiais algo de vivaz. Assim, aposta na potência da exposição física do bailarino ao mundo exterior e no relacionamento com as diferentes categorias de objetos que o compõem. O processo de criação da pesquisadora, em última instância, se apoia sobre o pressuposto de que materiais não humanos afetam e ressoam no(a) dançarino(a) humano(a) e, através de confederações intermateriais, a dança aparece. A exploração de materiais não humanos reaparece no texto de Felisberto Sabino da Costa e Ipojucan Pereira, que comentam o espetáculo Stifters Dinge, do encenador alemão Heiner Goebbels, performance sem atores em que artefatos mecânicos, elementos naturais, luzes e vozes sem corpo são os protagonistas. Os autores lembram que a arte da paisagem é uma das inspirações da proposta, cuja poética se funda nas relações perceptivas do espectador com a cena, apoiando-se no que Goebbels chama de estética da ausência. A análise da estética radical de Goebbels é aprofundada em resenha de Stephan Baumgärtel do livro Aesthetics of Absence: Texts on Theatre (Goebbels, 2015), coletânea de textos do renomado compositor e encenador. Em leitura apurada da obra, Baumgärtel destaca os princípios estéticos assumidos pelo artista, tais como o desejo de romper com as convenções formais tanto do teatro moderno como também das manifestações performativas contemporâneas; as peculiaridades do processo de criação de Goebbels, onde a construção de lacunas desestabilizadoras de sentido tem papel determinante na composição da obra e, também, o caráter ético e político adquirido pelas criações em virtude da ausência de um centro semântico organizador de todos os elementos cênicos, uma vez que essa ausência impede a instauração de um processo normativo de recepção. Baumgärtel não só apresenta com propriedade aspectos importantes da poética de Goebbels, despertando o interesse para a leitura da obra analisada, mas realiza ainda uma interessante reflexão comparativa entre a realidade cultural e artística alemã e a brasileira, discutindo as possibilidades e interesses de desenvolvimento no Brasil de poéticas da ausência. O emprego da tecnologia digital aparece, frequentemente, como modo operatório ARJ Brasil V. 3, n. 1 p. i-ix jan. / jun. 2016 FERNANDES; ISAACSSON Os Campos Expandidos

vii de promover a expansão do território do teatro. Neste sentido, a pesquisadora polonesa Izabella Pluta analisa o cruzamento do teatro com a robótica. Traça o percurso de colaboração entre o diretor e o dramaturgo japonês Oriza Hirata e o engenheiro de robótica Hiroshi Ishiguro, uma parceria dentro do projeto Android-HumanTheatre. A proposta consiste em fazer atuar no palco, em interação com atores, robôs de extraordinária aparência humana, resultado do desenvolvimento, entre outros dispositivos tecnológicos, de pele artificial perfeitamente semelhante àquela do homem e de captores que asseguram ao androide a possibilidade de micro movimentos da face. Em seu estudo sobre o emprego do modelo de robô Geminoide F nos espetáculos Sayonara, As três irmãs versão Android e Metamorfoses versão Android, Pluta identifica as especificidades do diálogo estabelecido entre artistas e cientistas no curso do processo de criação em um território que reúne arte e ciência. Ela destaca, ainda, os questionamentos postos ao teatro por essas criações, notadamente, no que se refere ao paradigma da presença do ator. Considerando estar a realização da performance dentro do campo expandido do teatro, Annette Arlander prefere problematizar a própria performance, interrogando-se sobre a possibilidade de sua expansão. Ela se propõe pensar como as artes performativas, para as quais o presente, o aqui e agora, constitui aspecto determinante de sua concretização, podem contribuir com o futuro. Ou seja, colocar-se para além do presente. A pesquisadora encontra, então, no pensamento da filósofa australiana, Elisabeth Grosz, para quem existe arte no mundo natural, os fundamentos para o desenvolvimento de um método de trabalho que denomina performando a paisagem, video-performances produzidas no contato com as forças da terra, promotoras das transformações da natureza. O dossiê inclui ainda dois ensaios dedicados a espetáculos que se apresentaram na III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT/2016), obras pulsantes de uma cena contaminada por diferentes linguagens, expressão de territórios mestiços. Marta Isaacsson, depois de lembrar aspectos relevantes da trajetória artística do renomado ator e encenador Josse de Pauw, apresenta uma de suas últimas criações, An Old Monk, espetáculo concebido e realizado em parceria com o compositor e jazzista Kris Defoort. Inspirado no músico americano Thelonius Monk, o trabalho se coloca como uma experiência sensível de renovação do teatro musical, por meio do diálogo improvisado entre música, palavra meio cantada, meio falada e a dança.

viii ISSN 2357-9978 Matteo Bonfitto também comenta um espetáculo apresentado na MIT, Still Life, do coreógrafo Dimitris Papaioannou. A partir de estímulos como uma nuvem/ cosmos pairando sobre a cena, uma pedra-parede penetrada pelos performers, sutis partituras corporais, tempos de silêncio e sons de objetos, o ensaísta faz uma prospecção dos potentes efeitos sensoriais que atuam sobre o espectador. Bonfitto aproxima a experiência de um exercício meditativo pautado em padrão musical, que constrói, paulatinamente, uma qualidade de atenção específica. O autor também se refere à exploração da ampla gama de materialidades em cena, no trânsito entre os corpos dos performers, a pedra/parede, a nuvem-bolha e as sonoridades estranhadas que escapam ao já conhecido da representação para recuar à condição de matéria que antecede a significação. Comparar Still Life a um exercício meditativo é suficiente para mostrar a amplitude dos experimentos que a cena contemporânea é capaz de oferecer ao espectador. Entre eles pode-se incluir o processo criativo, os elementos discursivos que acompanham as apresentações e até mesmo a documentação iconográfica e sonora produzida a partir do evento. É o que defende Catalão em seu artigo sobre teatro virtual, em que recorre à crítica genética e às teorias da recepção para fundamentar sua conclusão. Apoiado em Mathias Langoff, afirma que a experiência do espectador é a segunda aparição do teatro. ARJ Brasil V. 3, n. 1 p. i-ix jan. / jun. 2016 FERNANDES; ISAACSSON Os Campos Expandidos

ix Referências FÉRAL, Josette. Theatricality: on the specificity of theatrical language. Substance 98-99, v.31, n.2 e 3, 2002, p. 3-12. FISCHER-LICHTE, Érika. The transformative power of performance. New York: Routledge, 2008. GOEBBELS, Heiner. Aesthetics of Absence: Texts on Theatre. New York: Routledge, 2015. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios n. 17, 2008, p. 87-93. LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo, CosacNaify, 2007. SHATTUCK, Roger. The banquet years: the origins of the avant-garde in France 1885 to World War I. New York: Random House, 1968.