Mary Jane Spink Organizadora. PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS NO COTIDIANO Aproximações teóricas e metodológicas



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Transcrição:

Mary Jane Spink Organizadora PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS NO COTIDIANO Aproximações teóricas e metodológicas Rio de Janeiro 2013

Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.bvce.org Copyright 2013, Mary Jane Spink. Copyright 2013 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 2004, Editora Cortez. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-7982-068-7 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema Rio de Janeiro RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: bvce@centroedelstein.org.br

SOBRE OS SENTIDOS Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer; ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições. José Saramago Todos os nomes I

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...IV CAPÍTULO I Práticas Discursivas e Produção de Sentido: Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezza... 1 CAPÍTULO II Produção de Sentido no Cotidiano: Mary Jane P. Spink e Benedito Medrado... 22 CAPÍTULO III A Pesquisa como Prática Discursiva: Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon... 42 CAPÍTULO IV Rigor e Visibilidade: Mary Jane P. Spink e Helena Lima... 71 CAPÍTULO V Análise de Documentos de Domínio Público Peter Spink... 100 CAPÍTULO VI Garimpando Sentidos em Bases de Dados Lia Yara Lima Mirim... 127 CAPÍTULO VII Entrevista: uma Prática Discursiva Odette de Godoy Pinheiro... 156 CAPÍTULO VIII Por Que Jogar Conversa Fora? Vera Mincoff Menegon... 188 II

CAPÍTULO IX Textos em Cena: Benedito Medrado... 215 CAPÍTULO X Imagens em Diálogo: Carlos André F. Passarelli... 242 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 252 AUTORES... 263 III

APRESENTAÇÃO Esta coletânea é fruto de uma longa trajetória. De empreitada típica dos fazeres intelectuais, pautada pela interface entre leituras e pesquisas e tornada visível em texto e fala, assumiu, progressivamente, um caráter coletivo. Não se trata de uma proposta coletiva em sua origem, mas de um coletivismo resultante do próprio desenvolvimento teórico. Pensar, afinal, é uma prática social e como tal, perpassada por dialogia. Em retrospecto, seria possível propor que o caráter coletivo desta obra definiu-se a partir de várias etapas. Primeiramente, é claro, uma forma específica de pesquisar em Psicologia Social foi se definindo para mim a partir de leituras e de pesquisas. Não por acaso, esses interesses tinham na Saúde Pública o seu foco. Não por acaso, portanto, a perspectiva coletiva se fazia presente. Mas para que as ideias extrapolassem esse âmbito mais intimista foi preciso que fizessem sentido também para outros. Esses outros foram inicialmente os vários orientandos de Mestrado e Doutorado para quem as ideias encontravam ecos. Esses eram ainda fóruns acanhados: diálogos travados em momentos de orientação; leituras compartilhadas ideias testadas, quando muito, nos encontros no Núcleo de Pesquisa em Psicologia Social e Saúde, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Emergiu dessas discussões a demanda de uma apresentação mais sistemática dessas ideias, gerando, a partir de 1996, as propostas de seminários avançados e as inúmeras participações em congressos, já em formas coletivas: mesas, papers e painéis em coautoria. Ampliavam-se as oportunidades para levar as ideias a passear e fazê-las conversar com outros autores, outros referenciais. Coletivizava-se paulatinamente a proposta através da disponibilidade de falar sobre e de escutar as dúvidas, as críticas, os encontros e desencontros. Sendo muitos os colaboradores, expandia-se a proposta. Mas crescia também a dificuldade de socializá-la. Eram poucos os textos escritos por IV

nós. As reflexões estavam confinadas às teses e dissertações sempre de difícil circulação ou às apresentações orais em congressos de circulação ainda mais difícil. Tornava-se urgente, assim, uma apresentação mais sistemática das reflexões que fazíamos; surgiu dessa premência a proposta de elaboração de uma coletânea de textos que refletissem o que propúnhamos. Não um projeto acabado pois eles nunca o são. Mas como uma oportunidade para ampliar o debate. Sendo muitos os autores e novas as ideias, a própria elaboração do livro suscitou um rico debate. Não só entre os autores; muitas outras pessoas contribuíram, às vezes sem nem ao menos terem consciência da imensa contribuição que fizeram. Por exemplo, Pedrinho Guareschi, em seminário recente,1 inadvertidamente forneceu um conceito que se tornou central para nossos esforços de desfamiliarização das perspectivas essencialistas. Referiase ele à sociabilidade intrínseca do conceito de pessoa, elaborado no âmbito da Teologia, fornecendo uma pista valiosa para redefinir subjetividade (e o conceito de indivíduo aí abrigado) a partir da perspectiva construcionista. Mesmo sem compartilhar dos pressupostos que embasam nossa proposta, Pedrinho é uma voz que se faz presente neste livro. Também Rogério Costa, professor da PUC-SP cujas virtudes filosóficas tantas vezes nos iluminaram, teve um papel ativo para além do que ele possa estar ciente. Os debates, aí sim propiciando contribuições deliberadas, travaram-se em dois momentos. No início desse ano fomos convidados para discutir nossas ideias no 4 o Encontro Científico do Centro de Investigação Sobre Desenvolvimento e Educação Infantil CINDEDI. 2 Foi uma experiência muito rica. Não se tratava de fazer uma palestra, ou um seminário, mas de fornecer alguns textos por nós considerados básicos que foram lidos e discutidos anteriormente pelo grupo. Travou-se nesse contexto um rico debate visando problematizar conceitos e esclarecer dúvidas. Foi uma primeira oportunidade de testagem de conceitos e do inter-relacionamento 1 Simpósio Internacional sobre Representações Sociais Questões Epistemológicas; Natal, Rio Grande do Norte, 22 a 25 de novembro de 1998. 2 Realizado no período de 2 a 5 de fevereiro de 1999 na FFCL da USP em Ribeirão Preto. V

desses em um ambiente receptivo e disposto a dialogar com o referencial em desenvolvimento. Foram muitas as pessoas presentes e muitas as contribuições; impossível, portanto, dar nomes às muitas vozes que se fizeram ouvir. Mas impossível também deixar de mencionar duas colegas Maria Clotilde Rossetti Ferreira e Ana Maria Almeida Carvalho pelo carinho com que acolheram nossos posicionamentos teóricos; de mencionar o nome de Carmem Craidy, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela importante sugestão de leitura de um texto de Fernand Braudel; de agradecer a Ana Paula Soares da Silva e os membros do Grupo de Trabalho de Entrevista, que leram nossos textos com tanta atenção e conduziram o debate com tanta propriedade. Um segundo momento de debate ocorreu já na fase de elaboração dos capítulos desta coletânea. Tendo em vista a riqueza da experiência junto ao CINDEDI, achamos que seria interessante apresentar esses capítulos ao Núcleo de Pesquisa em Psicologia Social e Saúde de modo a usufruir das experiências que os membros do Núcleo já tinham no manuseio dos conceitos-chave que serão aqui discutidos. Como participam do Núcleo, direta ou indiretamente, alunos e pesquisadores de outras instituições, comunicamos a eles essa proposta. Ficamos encantados com a receptividade. Muitos compareceram às reuniões do Núcleo especificamente para a discussão dos quatro capítulos iniciais. Muitos não puderam comparecer, mas se fizeram ouvir enviando seus comentários por correio. Foram discussões preciosas. Uma experiência inesquecível de trocas pautadas pelo respeito mútuo até mesmo quando os pressupostos não podiam ser compartilhados. Agradecemos muito especialmente as contribuições dos colegas que enfrentaram algumas horas de estrada para estarem presentes nessas discussões: Marisa Japur, professora da FFCL da USP de Ribeirão Preto; Ana Paula Silva, doutoranda; Emerson Fernando Rasera (o Mera), mestrando nessa mesma Instituição; e Daniel Gonzalo Eslava, doutorando na Faculdade de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto. Reconhecemos também as contribuições de colegas da Faculdade de Saúde Pública da USP: Oswaldo VI

Tanaka, professor do Departamento de Saúde Materno Infantil; Sônia Andrade e Cristina Melo, doutorandas nesse mesmo Departamento. E, ainda, os alunos do Mestrado e Doutorado da PUC-SP, membros atuais ou futuros do Núcleo. Agradecemos ainda os comentários de colegas que se fizeram presentes por vias eletrônicas, como Jacqueline Machado Brigagão, que da lonjura do Kentucky enviou tantas contribuições preciosas; e Marcos Reigota, que em suas perambulações globais encontrou tempo para nos enviar por correio (nada eletrônico) suas ponderações. Restou-nos, assim, o problema da autoria. O que vem a ser autoria quando tantas vozes se fazem presentes? Quando fazemos interlocução com tantos autores? Quem somos, o que fizemos? Talvez tudo o que podemos fazer é concordar com Dom Toríbio de Cáceres y Virtudes, personagem do conto de Gabriel Garcia Marquez, Do amor e outros demônios. Conversavam ele e o marquês de Casalduero, quando foram surpreendidos pelas badaladas das cinco. É horrível disse o bispo. cada hora me ressoa nas entranhas como um tremor de terra. A frase surpreendeu o marquês, pois era o mesmo que ele pensara quando soaram as quatro. Ao bispo aquilo pareceu uma coincidência natural. As ideias não são de ninguém disse. Com o indicador, desenhou no ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: Andam voando por aí, como os anjos. Quiçá, como herdeiros de Bakhtin, não poderia ser de outra forma!! Mas vivendo em outras épocas, coloca-se, sim, a necessidade de contabilizar esforços. Trata-se de reconhecer as contribuições e o tempo despendido e de aceitar a responsabilidade pelas ideias formuladas no conjunto dos textos desta coletânea. Acatar a natureza coletiva das ideias não elimina a responsabilidade de cada um por fazê-las circular. Assumo eu, portanto, a responsabilidade pela organização desta coletânea. Deixo público meu reconhecimento pelo empenho e investimento de dois dos VII

meus colaboradores mais próximos Benedito Medrado e Vera Menegon. Agradeço, ainda, a cuidadosa revisão dos textos feita por Teresa Cecília de Oliveira Ramos, Maria Helena de Carvalho e Rita de Cássia Q. Gorgati. De resto, as autorias definem as características do próprio livro. A primeira parte, mais coletiva e foco dos debates travados, compreende quatro capítulos escritos em coautoria. O primeiro, intitulado Práticas discursivas e produção de sentido: a perspectiva da Psicologia Social, foi escrito em coautoria com Rose Mary Frezza e visa fornecer o contexto histórico da perspectiva teórica endossada na coletânea como um todo. Situa a perspectiva construcionista e a forma de trabalhar com linguagem no âmbito da Psicologia Social. O segundo capítulo, Produção de sentido no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para a análise das práticas discursivas, foi escrito em coautoria com Benedito Medrado e tem por objetivo discutir os pressupostos e definir os conceitos que vêm fornecendo subsídios para a compreensão da produção de sentidos no cotidiano a partir da análise das práticas discursivas. O terceiro capítulo, A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos, escrito em coautoria com Vera Mincoff Menegon, volta-se à discussão metodológica. Tem como objetivo problematizar o conceito instituído de pesquisa científica e apresentar a posição construcionista, buscando ressignificar, nesse processo, o conceito de rigor. O capítulo quatro, Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação, escrito em coautoria com Helena Lima, retoma a problemática do rigor à luz dos processos de interpretação. Fazendo uma ponte com os capítulos seguintes da coletânea, introduz algumas das técnicas que vêm sendo utilizadas por nós para dar visibilidade ao processo de interpretação. Os capítulos seguintes, fruto de reflexões e pesquisas realizadas pelo grupo, têm, como não poderia deixar de ser, autoria única. Buscam, em seu conjunto, abordar a diversidade de formas de coletar informações para dar subsídios à compreensão dos processos de produção de sentido a partir das práticas discursivas. Constituem por vezes exemplos de uso das técnicas apresentadas no capítulo quatro, sem ser esse entretanto seu objetivo VIII

explícito. Focalizam as diferentes maneiras em que a construção dialógica do sentido se faz presente no cotidiano. Assim, o capítulo cinco, intitulado Análise de documentos de domínio público, de autoria de Peter Spink, explora as possibilidades de trabalhar os documentos de domínio público (relatórios, arquivos, jornais etc.) como processos sócio-históricos de construção de saberes e fazeres. Chama a atenção para as importantes contribuições que os historiadores podem trazer para a Psicologia Social, seja pela forma de análise e identificação do material ou pelo tratamento que dão à temática do tempo. Mas pontua também a especificidade do tratamento que a Psicologia Social dá a esses documentos visto que eles refletem práticas discursivas que, para além do que está impresso em suas páginas, são parte do processo de construção da esfera pública. O capítulo seis, Garimpando sentidos nas bases de dados, de autoria de Lia Yara Lima Mirim, tem por objetivo discutir a utilização da literatura científica como recurso metodológico em pesquisa. Para isso, inicia com uma discussão sobre a ciência como linguagem social que tem formas peculiares de apresentação e circulação de discursos. Focaliza então a crescente importância das bases de dados como acesso à literatura científica e fornece um exemplo de uso de uma base específica (o Medline) utilizada em pesquisa sobre a construção social do sentido do teste HIV. O capítulo sete, Entrevista: uma prática discursiva, de Odette de Godoy Pinheiro, discute os aspectos teórico-metodológicos relacionados à (inter)ação dos interlocutores na situação de entrevista. Busca ainda exemplificar os procedimentos de análise e interpretação de dados relacionados à entrevista, entendida como prática discursiva, a partir de pesquisa focalizada na entrevista inicial de um Serviço de Saúde Mental da rede básica. O capítulo oito, intitulado Por que jogar conversa fora? Pesquisando no cotidiano, de Vera Mincoff Menegon, propõe que as conversas podem ser algo mais do que um mero hábito corriqueiro do cotidiano. Posiciona assim as conversas como modalidades privilegiadas para o estudo da IX

produção de sentido. Traz, dessa forma, algumas reflexões sobre as peculiaridades e a importância das conversas nas interações sociais de nosso cotidiano, baseando-se na pesquisa que realizou com conversas cujo assunto em pauta era a menopausa. No capítulo nove, Textos em cena: a mídia como prática discursiva, Benedito Medrado focaliza conceitos e processos que são centrais aos estudos em mídia. Discute a reconfiguração entre as dimensões do público e privado proporcionada pela mídia a partir de seu poder de dar visibilidade aos fenômenos sociais e de construir novas dinâmicas interacionais. De modo a ilustrar alguns processos que caracterizam a produção midiática, apresenta algumas experiências de pesquisa com jornais e comerciais de televisão. O capítulo dez, Imagens em diálogos: filmes que marcaram nossas vidas, de autoria de Carlos André F. Passarelli, busca discutir os pressupostos do processo de recepção de sons e imagens em movimento que constitui o campo de análise de filmes. Para tanto, apresenta os elementos que compõem a linguagem cinematográfica, buscando entendêlos a partir da perspectiva teórica dos estudos de linguagem de Bakhtin. Com base nos conceitos de dialogia, enunciação e gêneros discursivos busca compreender que imagens podem se formar no campo da Psicologia Social a partir das que são projetadas na tela do cinema. São todos eles trabalhos estimulantes. Propostas de análise que buscam entender os fenômenos do cotidiano a partir de um olhar pautado pela dialogia dos processos sociais implícita nas práticas discursivas que permeiam nosso dia-a-dia. São olhares novos. Ou talvez apenas novas configurações de velhos olhares. Mary Jane Paris Spink São Paulo, 15 de junho de 1999 X

CAPÍTULO I PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDO: O A perspectiva da psicologia social Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezza objetivo deste capítulo é fornecer o contexto histórico necessário para a compreensão da proposta teórico-metodológica do estudo da produção de sentido no cotidiano, que será apresentada nos capítulos que compõem esta coletânea. A contextualização a ser feita aqui busca situar, no âmbito da Psicologia Social, o estudo da produção de sentido a partir da análise das práticas discursivas. Busca, ainda, situar a produção de sentido como forma de conhecimento que se afilia à perspectiva construcionista e situar as práticas discursivas dentre as várias correntes voltadas ao estudo da linguagem. Faz-se necessário esclarecer que o objetivo é nos posicionarmos no debate contemporâneo. Não pretendemos, assim, fazer uma análise histórica da Psicologia Social, do construcionismo ou das correntes filosóficas que privilegiam a linguagem. Consideramos necessário, entretanto, esclarecer quais afiliações pautam nossa proposta. Do ponto de vista da Psicologia Social, buscaremos situar brevemente a genealogia da temática produção de sentido, aspecto que será explorado na primeira parte deste capítulo. Concebendo o sentido como uma construção dialógica, buscaremos, na segunda parte do capítulo, explicitar os fundamentos epistemológicos desta proposta a partir de uma breve apresentação da perspectiva construcionista em Psicologia Social. Finalmente, entendendo ser necessário também situar a noção de linguagem que embasa a proposta de trabalho com práticas discursivas, abordaremos essa temática na terceira parte do capítulo. Embora focando o estudo da produção de sentido na Psicologia Social, consideramos que a proposta teórico-metodológica em construção é 1

necessariamente interdisciplinar. Buscando responder à pergunta: como damos sentido ao mundo em que vivemos?, tornou-se imprescindível estabelecer uma interface com a História e com a Antropologia como resultado da necessária reflexão sobre o contingente e o universal, e também com a Filosofia (e mais especificamente com a Epistemologia), a partir da reflexão sobre as formas possíveis de concretizar uma proposta metodológica. Essas interfaces serão expostas e discutidas ao longo dos capítulos seguintes. 1. Psicologia Social e a compreensão do sentido na vida cotidiana A expressão dar sentido ao mundo nem sempre fez parte do projeto da Psicologia Social, ou pelo menos da ortodoxia da disciplina. Falava-se em percepção, em atitudes, em cognição, em interação, e até mesmo na força do grupo em direção à conformidade, uma espécie de tendência central operando socialmente em direção a média. No afã de definir conceitos e mecanismos universais passíveis de demonstração empírica de cunho experimental, o interesse pela compreensão dos sentidos na vida cotidiana era, no mínimo, visto como suspeito. Até os anos setenta, vivia-se o sonho da Psicologia Científica, pensando ciência como um fazer pautado pela demonstração e generalização dos resultados. Ernest Hilgard, 1 em influente obra publicada nos anos cinquenta, reiterava o discurso corrente na época, afirmando que a Psicologia, tal como outras ciências, busca compreender, predizer e controlar o comportamento de homens e outros animais. Para concretizar o projeto científico, apoiavase sobretudo no método, traduzido em sua prática, a partir da hegemonia do método científico:... um procedimento regular, explícito e passível de ser repetido para conseguir-se alguma coisa, na definição fornecida por Mario 1 Hilgard, E. (1953), Introduction to Psychology. London: Methuen. 2

Bunge. 2 Emerge, desse contexto, a influente vertente da Psicologia Experimental 3 com suas ressonâncias na Psicologia Social Experimental. 4 Com raras exceções, falava-se pouco em bases filosóficas. 5 É isso é o que aponta Rom Harré, 6 em recente reavaliação da Psicologia Social contemporânea, quando afirma, de forma maliciosa, que os psicólogos são avessos à metafísica, visto que a ciência moderna define-se sobretudo pela contraposição à metafísica. Harré, ao usar o termo metafísica, faz um jogo de palavras; emprega-o no sentido de reflexão crítica sobre a natureza do mundo a ser investigado. Diz ele: ao contrário dos físicos, poucos psicólogos, com exceção de figuras notáveis como Jerome Bruner (...), Michael Billig (...) e John Shotter (...), engajam-se em investigações filosóficas de sua prática ou no exame crítico das bases metafísicas implícitas de suas teorias (1993:24). Eram essas as forças hegemônicas que empurravam os psicólogos sociais para o laboratório, abandonando as raízes mais sociais dos fundadores da disciplina (entre eles George Mead e Kurt Lewin) e fortalecendo a perspectiva individualista em Psicologia Social. 7 O estudo das atitudes é um excelente exemplo desse movimento de progressiva individualização dos conceitos centrais da disciplina. Exploradas inicialmente por sociólogos e psicólogos, na tradição inaugurada em 1918 2 Bunge, M. (1980), Epistemologia. São Paulo: T.A. Queiroz, p. 19. 3 Veja-se, por exemplo: Woodworth, R. & Schlosberg, H. (1938). Experimental Psychology. London: Methuen (revisado em 1954); Osgood, C. (1953). Method and Theory in Experimental Psychology. New York: Oxford University Press (já na sétima edição em 1962). 4 Em livro publicado em 1966, Robert Zajonc afirmava: A Psicologia Social não é um tipo ou uma escola da Psicologia. É decididamente um ramo da Psicologia, e reconhece integralmente as leis da Psicologia Geral e Experimental. Zajonc, R. (1966). Social Psychology: an Experimental Approach. Califórnia: Wadsworth, p. 2. 5 Por exemplo, Piaget, J. (1970). L'Épistémologie Génétique. Paris: Presses Universitaires de France (traduzido para o português pela Editora Vozes). 6 Psicólogo e filósofo que contribuiu para as obras iniciais de psicologia crítica. 7 A esse respeito, ver Farr, R. (1996). The Roots of Modern Social Psychology. Oxford: Blackwell (traduzido para o português pela Editora Vozes, 1998). 3

pelo estudo de William Thomas e Florian Znaniecki 8 sobre camponeses poloneses emigrados para os Estados Unidos, passaram primeiramente por uma purgação nominal, deixando de ser denominadas de atitudes sociais para adotar apenas a qualificação de atitudes. 9 Passaram, a seguir, a ser estudadas preferencialmente por meio de escalas e situações experimentais em laboratório, abandonando, em larga medida, os estudos de campo. No final dos anos cinquenta e na década de sessenta, esboçava-se uma reação ao paradigma dominante de fazer ciência em Psicologia Social, impulsionada inicialmente em duas direções: a valorização da observação dos comportamentos em situações naturais e o estudo de comportamentos em seu ambiente natural. A valorização da observação minuciosa dos comportamentos pode ser exemplificada com o fortalecimento do ensino da Etologia nos cursos de graduação 10 e com as pesquisas sobre comportamento infantil da Psicologia do Desenvolvimento. 11 Já a perspectiva naturalista do estudo de comportamentos em seu ambiente natural tem na obra de Edwin Willems e Harold Rauch 12 um marco importante. Inevitavelmente, sair do laboratório implicava acatar a visão do outro, o que levou a uma revalorização do estudo dos processos sociais inspirada, por exemplo, no trabalho de Erving Goffman 13 sobre dramaturgia 8 Thomas, W. & Znaniecki, F. (1958). The Polish Peasant in Europe and America. New York: Dover Publ. 9 Estamos nos referindo, aqui, ao artigo de G. W. Allport sobre atitudes, publicado em C. A. Murchinson (org.) (1935). Handbook of Social Psychology. Worcester, Mass.: Clark University Press. 10 O fortalecimento do ensino de Etologia foi impulsionado pelo trabalho de Lorenz e Tinbergen, entre outros. Por exemplo, Lorenz, K. (1966). On Aggression. London: Methuen. 11 Nesse contexto destaca-se John Bolwby como precursor. Ver Ferreira, M.C.R. (1986). Mães e Crianças separação e reencontro. São Paulo: Edicon. 12 Willems, E. P. & Rauch, H. L. (1969). Naturalistic Viewpoints in Psychological Research. New York: Holt. 13 Os trabalhos de Goffman marcam uma distinção na produção do conhecimento em Psicologia Social, fazendo parte de uma vertente denominada Psicologia Social Sociológica que se constituiu em contraposição à Psicologia Social Experimental. Dentre eles destacamos: The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor, 1959 (traduzido para o português pela Editora Vozes), e Stigma. New Jersey, USA: Prentice Hall, 1963 (traduzido pela Editora Zahar) 4

e de Serge Moscovici 14 sobre o conhecimento do senso comum. Tratava-se, antes de mais nada, de uma virada metodológica, que reagia contra a psicologia de laboratório. Obviamente o impulso metodológico tem implicações para a própria definição do que vem a ser o objeto da Psicologia Social. A partir dos anos sessenta, e especialmente na década de setenta, surgiram importantes reflexões críticas focando tanto a naturalização do fenômeno psicológico (que faz perder de vista o fato de que os conceitos e teorias são produtos culturais, socialmente construídos e legitimados) como a despolitização da disciplina (que faz perder de vista o papel da disciplina, entendida como domínio de saber, na legitimação da ordem social). Dentre as obras importantes para esta reflexão destacamos (no contexto Europeu): The Context of Social Psychology, organizado por Joachim Israel e Henri Tajfel e publicado em 1972; Reconstructing Social Psychology, organizado por Nigel Armistead e publicado em 1974; Radical Perspectives in Psychology, de Nick Heather, publicado em 1976. Essas obras congregam muitos dos autores que, na Europa, definiram as bases para a Psicologia Social Crítica, solo em que se ancoraram os teóricos pós-modernos da Psicologia Social. 15 Um pouco mais tarde, com forte influência na América Latina, foram publicadas as obras de Ignacio Martín Baró (Acción e Ideología, 1983; e Sistema, Grupo y Poder, 1989 e o livro Psicologia Social: o Homem em Movimento, organizado por Silvia Lane e Wanderley Codo, publicado pela primeira vez em 1984. São obras que focalizam, tal como os antecessores europeus, a naturalização e despolitização da Psicologia, mas que adquirem uma conotação singular por serem reflexões feitas a partir do ponto de vista dos dominados. É esse, portanto, o contexto histórico em que se apoia a proposta de estudo da produção de sentido por meio das práticas discursivas. Antes de adentrar a caracterização dos posicionamentos construcionistas e suas 14 La Psychanalise son image et son public. Paris: Presses Universitaires de France, 1961 (traduzido para o português pela Editora Zahar). 15 Ver, por exemplo, Parker, I. (1989). The Crisis in Modern Social Psychology and how to end it. London: Routledge. 5

implicações para o trabalho com linguagem, é importante frisar que, como em tantos outros domínios de nossa vida, o novo e o velho convivem, lado a lado, na Psicologia Social. Nem toda a Psicologia Social é uma psicologia crítica; e também a psicologia crítica apresenta-se polissêmica: muitos são os seus sentidos. Nas palavras de Harré: A história da psicologia social nos últimos vinte anos tem sido (...) uma mistura desconcertante de desenvolvimentos e desapontamentos. Ocorreram expansões e aplicações vigorosas do novo paradigma, mas, paralelamente, em vários lugares, algumas das piores características do antigo programa persistiram praticamente inalteradas (1993:24). Há, segundo Harré, duas fontes de conservadorismo na Psicologia Social: uma filosófica e outra cultural. A primeira, como mencionamos anteriormente, decorre da falta de reflexão filosófica entre os psicólogos. A segunda, admite ele, é mais sutil e seus efeitos mais difíceis de identificar sem cair em afirmações tendenciosas. Trata-se da longa hegemonia norteamericana na psicologia acadêmica, a qual tem exercido uma pressão contínua no sentido da incorporação do individualismo e do cientificismo na Psicologia Social e, como consequência, a resistência às inovações. 2. Construcionismo e Psicologia Social A perspectiva construcionista é resultante de três movimentos: na Filosofia, como uma reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, como uma desconstrução da retórica da verdade, e na Política, como busca de empowerment de grupos socialmente marginalizados. Os três movimentos são, obviamente, interdependentes, refletindo um movimento mais amplo de reconfiguração da visão de mundo própria a nossa época. Sendo impossível fazer uma discussão mais ampla no escopo deste trabalho, iremos focalizar o construcionismo a partir da Psicologia Social e da Sociologia do Conhecimento, apoiando-nos, para isso, em quatro autores: Peter Berger e Thomas Luckmann, Kenneth Gergen e Tomás Ibáñez. 6

Esses autores utilizam, preferencialmente, a expressão construção social para falar da ação, e construcionismo para referir-se à abordagem teórica. Há autores que empregam o termo construtivismo, como por exemplo aqueles vinculados às correntes teóricas da terapia familiar sistêmica, herdeiros de Gregory Bateson e Paul Watzlawick, da Escola de Palo Alto, Califórnia. 16 O uso desse termo pode, entretanto, gerar confusões conceituais, uma vez que ele é empregado também pelos autores vinculados à escola piagetiana para referir-se à centralidade da atividade do sujeito no desenvolvimento cognitivo. O termo construtivismo, dessa forma, dá margem à adesão (ainda que não intencional) a uma perspectiva individualista, mesmo quando o indivíduo é concebido como um ser em sociedade; lembramos que, para o construcionismo, a própria noção de indivíduo é uma construção social. 17 Decorre daí nossa opção por essa nomenclatura. 2.1. O construcionismo na perspectiva da Sociologia do Conhecimento Quando falamos em construcionismo, vem à mente o nome de Peter Berger e Thomas Luckmann, e de seu livro, já um clássico, intitulado A Construção Social da Realidade, publicado originalmente em 1966. A Sociologia do Conhecimento tem ancestrais imponentes: Karl Marx, pela reflexão sobre a relação entre a atividade humana e a consciência, presente sobretudo nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos; Friedrich Nietzsche, pelo anti-idealismo ferrenho da Genealogia da Moral e de A Vontade de Potência, e Wilhem Dilthey, pelo historicismo marcante de sua obra. Mas a disciplina propriamente dita tem como fundadores Max Scheler, filósofo alemão que cunhou o termo Sociologia do Conhecimento na década de vinte, e Karl Mannheim, que lhe deu os contornos clássicos, centrados na relação entre ideologia e verdade. Em seus primórdios, a Sociologia do Conhecimento focalizava questões epistemológicas utilizando, como campo empírico, a história das 16 Ver, por exemplo, Watzlawick, P.; Beavin, J. H. & Jackson, D. D. (1968). Pragmatics of Human Communication. London: Faber and Faber. 17 Vide, por exemplo, a excelente análise de Nicholas Rose sobre o tema. Rose, N. (1992). Individualizing Psychology. Em J. Shotter & K. J. Gergen: Texts of Identity. London: Sage. 7