TEORIA VALOR-TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE: uma



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Autor: Rafael Ribeiro De Almeida Orientadora: Carla Regina Mota Alonso Diéguez TEORIA VALOR-TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE: uma análise do setor de serviços. O presente projeto tem como finalidade a discussão da teoria valortrabalho de Marx na contemporaneidade e suas implicações. Sua teoria contém, como categoria central, o trabalho. O entendimento de trabalho segundo a perspectiva marxista contempla tanto o trabalho enquanto categoria ontológica (de onde advém todo o valor de uso), o universal intercâmbio entre o homem e a natureza, quanto o trabalho como reificação capitalista, cuja produção é de valor de troca. Sendo assim, nosso foco principal é referente ao segundo significado 1 : o trabalho entendido dentro e a mercê das relações capitalistas de produção, o trabalho como categoria que define a posição dos indivíduos diante das forças produtivas, a compra e venda da força de trabalho. Uma vez que numa sociedade mercadorizada as pessoas e suas respectivas relações só existem, reciprocamente, na função de representantes de mercadorias e, portanto, de donos de mercadorias, nos parece necessário, em geral, uma apresentação dessas relações mediadas e carimbadas pelas mercadorias, com a pretensão de expor a troca, então, como um processo social (desdobrando a partir daí a questão da centralidade do trabalho). Como: a própria mercadorização das nossas relações, por si só, expressam de forma emblemática a centralidade do trabalho as pessoas só têm acesso às mercadorias somente, e tão somente, se estiverem inseridas no mundo do trabalho. Vejamos a questão das mercadorias mais de perto. Como diz David Harvey (2013, p. 34), Marx declara que seu objetivo é desvendar as regras de operação de um modo de produção capitalista. Para tanto, Marx inicia sua análise d O Capital examinando um conceito fundador: a 1 Podemos direcionar qual nosso foco principal, mas não nosso foco exclusivo, já que trabalho concreto (valor de uso) e trabalho abstrato (valor de troca) estão em íntima e mútua relação. 1

mercadoria esse é seu ponto de partida 2. A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em imensa acumulação de mercadorias (MARX, 2011, p. 57). Imediatamente, Marx estabelece seu aspecto dual, a começar pelo valor de uso. Ela, mercadoria, é algo que satisfaz uma necessidade, carência ou desejo humano. Ela se apresenta de forma diversificada (em forma, peso e medida) na sociedade, a depender do processo histórico e fatos sociais (pode ser quilos de farinha, pares de meias, quilowatts de eletricidade, metros de tecido etc. 3, o homem por meio do processo histórico vai descobrindo e determinando socialmente a utilidade das coisas, por exemplo, aparelhos eletrônicos não têm valor de uso para pastores nômades). No entanto, em vista de encontrar um caminho para trabalhar a mercadoria em geral, Marx diz que a utilidade de uma coisa pode ser expressa como um valor de uso esse é o seu primeiro aspecto. O valor de uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela (MARX, 2011, p. 58). Porém, o objeto a ser analisado por Marx, a saber, o modo de produção capitalista, constitui também o suporte do valor de troca. Na forma de sociedade que vamos estudar, os valores de uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor de troca (MARX, 2011, p. 58). Sendo assim, o autor nos apresenta o caráter duplo do conceito de mercadoria: valor de uso e valor de troca (todavia, elas não existem ao mesmo tempo em uma mercadoria para um único indivíduo; se há valor de uso para o usuário, necessariamente não existirá valor de troca para ele e vice-versa 4 ). Uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor de troca. É o que sucede quando sua utilidade para o ser humano não decorre do trabalho 2 E o capítulo dedicado a ela d O Capital (o primeiro capítulo) é onde Marx lança mão de seus conceitos fundamentais da exploração capitalista. 3 Estes são exemplos de David Harvey. 26. 4 Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso (MARX, 2011, p. 59). 2

(MARX, 2011, p. 62). Por exemplo: o ar, terra, pastos naturais, a madeira que cresce de forma espontânea na selva etc. Além disso, uma coisa pode ser valor de uso e produto do trabalho sem necessariamente ser mercadoria. Quem, com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor de uso, mas não mercadoria (MARX, 2011, p. 63). Para criar mercadoria é preciso não apenas criar valor de uso, mas valor de uso para outrem isto é, valor de uso social. Aquele que produz um objeto para a própria satisfação, não é mercadoria, mas sim tão somente um produto. Porém, aquele que produz um objeto finalizando a necessidade da sociedade, necessidade social, produz mercadoria 5 (MARX, 2010). O proprietário não enxerga valor de uso em sua mercadoria, ao contrário, o único valor de uso que ele identifica é o fato de sua mercadoria ser depositária de valor, assim, meio de troca só há valor de uso para outros. Todas as mercadorias são não-valores de uso, para os proprietários, e valores de uso, para os não-proprietários só há valor de troca quando não há nãovalor de uso. No sistema de circulação das mercadorias, Marx nos convida a observar o processo de mudança ou o processo de metamorfose das mercadorias, por meio da qual acontece a circulação social das coisas (coisas no sentido de mercadorias). Por exemplo, um tecelão tem vinte metros de linha e decide vender por uma quantia de dois e, posteriormente, com esse mesmo dinheiro que recebeu dos vinte metros de linha o tecelão resolve comprar uma bíblia; esse processo de metamorfose da mercadoria se traduz em: M D M (venda, a troca da mercadoria por dinheiro; compra, a troca do dinheiro por mercadoria; e unidade de ambas as transações, a compra e venda). O movimento M-D-M é diferente do movimento M-M, mercadoria por mercadoria, ou escambo; agora, todas as trocas são mediadas pelo dinheiro. (HARVEY, 2013, p. 69.) Para o tecelão, todo o processo possibilita-lhe apenas trocar o produto do seu trabalho por produto do trabalho alheio, ou seja, trocar produtos. 5 O trabalho nesse caso deve se integrar com a soma total de trabalho gasto pela sociedade, deve estar subordinado à divisão do trabalho dentro da sociedade: daí porque trabalho social (MARX, 2010). 3

Interessante notar o ciclo de conexões e relações sociais que há por de trás do que Marx chama de metamorfose da mercadoria, isto é, movimento pelo qual ela faz na circulação. A circulação rompe com as limitações de tempo, de lugar e individuais, impostas pela troca de produtos (...) (MARX, 2011, p. 143), pois não são apenas duas pessoas particulares que estão trocando, mas sim tratase de um processo social. *** TRABALHO CONCRETO E TRABALHO ABSTRATO Como a mercadoria contém um duplo caráter (valor de uso e valor de troca), o trabalho categoria central na teoria marxista que a produz, tem igual e necessariamente um duplo aspecto: trabalho concreto e trabalho abstrato 6. Fui quem primeiro analisou e pôs em evidência essa natureza dupla do trabalho contido na mercadoria. Para compreender a economia política, é essencial conhecer essa questão, que, por isso, deve ser estudada mais de perto (MARX, 2011, p. 63). O trabalho enquanto categoria ontológica (de onde advém todo o valor de uso) é o que Marx trata como trabalho concreto. Chamamos simplesmente de trabalho útil aquele cuja utilidade se panteia no valor de uso do seu produto ou cujo produto é um valor de uso (MARX, 2011, p. 63). É o trabalho em sua forma geral universal intercâmbio entre o homem e a natureza, condição necessária e eterna da existência humana independente da forma da sociedade. Contudo, o trabalho enquanto reificação capitalista, cuja produção é de valor de troca, o trabalho entendido dentro e a mercê das relações capitalistas de produção, o trabalho como categoria que define a posição dos indivíduos diante das forças produtivas, a compra e venda da força de trabalho, é o trabalho abstrato. 6 Se tirarmos/colocarmos de lado o valor de uso de uma mercadoria, só lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do trabalho (MARX, 2011, p. 60). Mas, então, o produto do trabalho já terá passado por uma transformação: pondo de lado o valor de uso do produto, desaparece seu caráter de utilidade, por conseguinte, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados. Some, assim, as diferentes formas de trabalho concreto, reduzindo-se a uma única forma de trabalho, trabalho humano abstrato. 4

Aparentemente o ato da troca das mercadorias aparece como algo acidental, diz Marx, mas esse próprio ato pressupõe e exige que todas as mercadorias possuam algo em comum, que as torna comparáveis e comensuráveis, os valores de troca devem ser reduzíveis a uma coisa comum (MARX, 2011, p. 59): é que são produtos do trabalho humano. A única propriedade em comum às mercadorias é a de serem produtos do trabalho. Como tal, elas incorporam valor, definido pelo tempo de trabalho, mas não o tempo efetivamente despendido no trabalho trabalho concreto, pois, nesse caso, uma mercadoria seria tanto mais valiosa quanto mais tempo durasse o tempo de sua produção. As mercadorias são reduzíveis, isto sim, a trabalho humano igual, dispêndio de idêntica força de trabalho, isto é, trabalho humano abstrato, trabalho socialmente necessário o valor, portanto, é tempo de trabalho em média necessário ou socialmente necessário objetivado na mercadoria. Quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho requerido para produzir uma mercadoria, e, quanto menor a quantidade de trabalho que nela se cristaliza, tanto menor seu valor. Inversamente, quanto menor a produtividade do trabalho, tanto maior o tempo de trabalho necessário para produzir um artigo e tanto maior seu valo. A grandeza do valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que nela se aplica (MARX, 2011, p. 62, grifo nosso). (...) quando se mede o tempo de trabalho aplicado na produção de um valor de uso, só se considera o tempo de trabalho socialmente necessário. Isto envolve muitas coisas. A força de trabalho deve funcionar em condições normais. Se o instrumento de trabalho socialmente dominante na fiação [exemplo de Marx] é a máquina de fiar, não se deve por nas mãos do trabalhador uma roda de fiar. O trabalhador deve receber algodão de qualidade normal, e não refugo que se parte a todo instante. Em ambos os casos, gastaria ele mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um quilo de fio, e esse tempo excedente não geraria valor nem dinheiro. A normalidade dos fatores materiais do trabalho não depende do trabalhador, mas do capitalista. Outra condição é a normalidade da própria força de trabalho. Deve possuir o grau médio de habilidade, destreza e rapidez reinantes na especialidade em que se aplica. Mas nosso capitalista comprou no mercado força de trabalho de qualidade normal. Essa força tem de ser gasta conforme a quantidade média de esforço estabelecida pelo costume, de acordo com o grau de intensidade socialmente usual. O capitalista está cuidadosamente atento a isto, e zela também por que não se passe o tempo sem trabalho (MARX, 2011, p. 229). 5

Continuando o raciocínio, para produzir uma mercadoria é necessário investir nela uma determinada quantidade de trabalho, mais do que isso, não qualquer trabalho, mas trabalho social (MARX, 2010). O que diretamente determina a grandeza do valor é o tempo de trabalho socialmente necessário (que é sinônimo de trabalho abstrato): no fim do processo de trabalho humano chega-se a uma coisa, a mercadoria, que, por sua vez, coagula ou cristaliza valor, sendo assim, medimos o valor de uma mercadoria pela substância de trabalho socialmente necessário contido nela 7. O valor de uma mercadoria está para o valor de outra mercadoria, assim como sua quantidade de trabalho socialmente necessário fixado está para a quantidade de trabalho socialmente fixado de outra mercadoria (MARX, 2010). Quando consideramos as mercadorias como valores, estamos considerando-as somente sob o aspecto de trabalho social realizado, fixado, ou, se assim quiserem, cristalizado. Consideradas desse modo, só podem ser diferenciadas umas das outras enquanto representarem quantidades maiores ou menores de trabalho; assim, por exemplo, um lenço de seda pode incorporar uma quantidade maior de trabalho do que um tijolo. Mas como são medidas as quantidades de trabalho? Pelo tempo que dura o trabalho, computado este em horas, em dias etc 8 (MARX, 2010, p. 100). Dessa forma, K. Marx ultrapassa a análise dos economistas políticos clássicos, segundo os quais o valor (nesse caso, lê-se preço) da mercadoria é determinado pela relação entre oferta e procura. Para K. Marx, preço não é outra coisa senão a expressão monetária do valor das mercadorias: 7 De acordo com Harvey (2013, p. 42), (...) o valor como tempo de trabalho socialmente necessário é algo historicamente específico ao modo de produção capitalista. Isto é, a generalização do trabalho humano como mercadoria é especifico ao capitalismo, ao passo que, o valor, enquanto conceito de analise, também é especifica a sociedade capitalista. 8 Embora os valores das mercadorias sejam determinados pela quantidade de trabalho socialmente necessário, não significa, de modo algum, que diversas mercadorias fabricadas em 12 horas, por exemplo, tenham os mesmos preços. O número de mercadorias fabricadas por uma determinada quantidade de trabalho depende das forças produtivas empregadas no trabalho e não sua extensão ou duração. Com determinada força produtiva de fiação (adaptamos o exemplo de Marx) é possível, numa jornada de 12 horas, produzir um valor de 6. Com um grau menor de força produtiva empregado na fiação, nas mesmas 12 horas, produz-se valor 2, por exemplo. Essa diferença de preço é resultado da diferença das forças produtivas empregados no trabalho. O preço do fio é determinado pelo montante total de trabalho aplicado nela. K. Marx (2012, p. 125) diz: É apenas a expressão da lei geral de que o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho nela aplicada e de que essa quantidade de trabalho aplicada depende exclusivamente da força produtiva de trabalho empregado, variando, por conseguinte, ao variar a produtividade do trabalho. 6

o preço é a designação monetária do trabalho corporificado na mercadoria (MARX, 2011, p. 128). Supomos que tenha despendido no produto o tempo de trabalho que, em média, é socialmente necessário. O preço da mercadoria é apenas a denominação sem dinheiro da quantidade de trabalho social nela incorporado (MARX, 2011, p. 134). Vejamos mais de perto. Um objeto qualquer, por exemplo, um caderno, tem como valor (considerando a sua determinação da qual apresentamos) a quantidade de 5. Contudo, às vezes, dependendo do período, esse caderno no mercado passa a ter como preço (expressão monetária do valor) a quantidade de 6 ou 7: o que isso significa? As oscilações dos preços de mercado que podem exceder o valor real da mercadoria, é o caso do nosso exemplo dependem das variações das relações entre oferta e procura. O que K. Marx coloca como fundamental não é o aprofundamento desse assunto, mas, isto sim, sua observação segundo a qual a oferta e procura tende a se equilibrar, por conseguinte, o preço das mercadorias volta a corresponder ao seu preço natural, isto é, seu valor determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário encerrado na confecção da mercadoria. Se analisarmos as variações entre oferta e procura em um longo período, argumenta K. Marx, concluiremos que as altas e baixas dos preços do mercado acabam por se compensar e se neutralizar de tal maneira que, em média, as mercadorias são vendidas por seus preços naturais/originais. É um grande equívoco, segundo nosso autor, supor que o lucro não em casos individuais, mas o lucro constante advém do alto preço das mercadorias, de suas vendas com um preço superior ao seu valor. O que é imprescindível entender é que, a explicação da natureza geral dos lucros deve necessariamente passar pelo fato de que as mercadorias são vendidas, em média, pelo seu valor real, e que os lucros são resultados de seus valores, isto é, quantidade de trabalho socialmente necessário incorporado nas mercadorias (MARX, 2010). *** MAIS VALIA 7

O dinheiro é a primeira forma em que o capital se mostra. Todo capital novo, para começar, entra em cena, surge no mercado de mercadorias (...), sob a forma dinheiro, que, através de determinados processos, tem de transformar-se em capital (MARX, 2011, p. 177). A forma simples de circulação de mercadorias é M D M. Paralelo a ela, encontramos uma segunda: D M D, conversão de dinheiro em mercadoria e reconversão desta em dinheiro: o dinheiro que circula nesse movimento transforma-se em capital, altera-se em capital, sua finalidade é ser capital. A única característica que há em comum entre ambos os processos (M D M e D M D) é que, nestes dois circuitos os elementos materiais que se confrontam são os mesmos, qual seja, mercadoria e dinheiro, em outras palavras, são os mesmos atores econômicos, comprador e vendedor. Entretanto, o que distingue os dois movimentos é a sucessão inversa de ambas as fases opostas de circulação: a circulação mais simples das mercadorias começa com a venda (M D) e termina com a compra (D M), ao passo que a circulação do dinheiro como capital começa com a compra (D M) e termina com a venda (D M). No primeiro caso, é a mercadoria e, no segundo, o dinheiro, o ponto de partida e a meta final do movimento (MARX, 2011, p. 179). Na circulação D M D ambos os extremos são idênticos na forma econômica: são dinheiro. Porém, não há nenhuma diferença qualitativa entre esses extremos, trocar 100 libras esterlinas por algodão e, depois, o mesmo algodão por 100 libras esterlinas, fazendo um rodeio para permutar dinheiro por dinheiro, uma coisa por si mesma, afigura-se uma operação sem finalidade e sem sentido. 180, 181. O conteúdo desse processo só pode encontrar diferença na forma quantitativa, é o caso segundo o qual se retira mais dinheiro da circulação do que se lançou nela no início. O algodão comprado a 100 libras esterlinas será vendido, por exemplo, a 100 + 10 libras, 110 libras esterlinas, portanto. 81. Tudo isso para chegar à seguinte conclusão: a forma completa desse processo é D M D, sendo que D = D + D, isto é, capital, isto é, dinheiro originalmente adiantado mais um acréscimo (acréscimo = D = 8

mais-valia). A esse acréscimo ou o excedente sobre o valor primitivo chamo de mais-valia (valor excedente) (MARX, 2011, p. 181). O valor originalmente antecipado não só se mantém na circulação, mas nela altera a própria magnitude, acrescenta uma mais-valia, valoriza-se. E este movimento transforma-o em capital (MARX, 2011, p.181). Aqui, finalmente, está a definição de capital. Para Marx, o capital não é uma coisa, mas um processo mais especificamente, um processo de circulação de valores (HARVEY, 2013, p. 92). (...) é valor em processo, dinheiro em processo. E isso é muito diferente de capital como estoque fixo de recursos ou fator de produção (Mas é Marx, e não os economistas, que é criticado por suas formulações supostamente estáticas e estruturais!). (...) Capital é processo, e ponto final (HARVEY, 2013, p. 96). Como representante consciente desse processo, o possuidor do dinheiro torna-se o capitalista: sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é donde sai e para onde volta o dinheiro. 183. Sua finalidade é a expansão do valor que encontra como ponto de partida e ponto final o dinheiro. Entretanto, segundo Marx, é impossível explicar por meio da circulação a formação de valor excedente (mais-valia). Se se trocam equivalentes, não se produz valor excedente (mais-valia), e, se se trocam não-equivalentes, também não surge nenhum valor excedente. A circulação ou a troca de mercadorias não criam nenhum valor. 193, 194. A transformação só pode acontecer, conclui Marx, com a mercadoria comprada no primeiro ato D M, mas não em seu valor, e sim a partir do valor de uso como tal, de seu consumo. Para extrair valor do consumo de uma mercadoria, o detentor de dinheiro deve ter a felicidade de descobrir, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possua a propriedade peculiar de ser fonte de valor, de modo que consumi-la seja realmente encarnar trabalho, criar valor (criar valor maior que o que ela tem) (MARX, 2011, p. 197). Essa mercadoria especial é: a capacidade humana de trabalho a força de trabalho Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser 9

humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie (MARX, 2011, p. 197). A força de trabalho só se torna realidade com seu exercício, só se põe em ação no trabalho. Através da sua ação, o trabalho, despende-se determinada quantidade de músculos, de nervos, de cérebro, etc., (...) (MARX, 2011, p. 201). O processo de consumo da força de trabalho é, ao mesmo tempo, o processo de produção de mercadoria e de valor excedente (mais-valia) (MARX, 2011, p. 206). A força humana de trabalho é por vezes entendida como tendo um dote especial e místico, por causa de sua capacidade de produzir mais que consome. Na realidade é a capacidade de criar trabalho excedente (não havendo nada de misterioso nisso), a saber, é o prolongamento do tempo de trabalho para além do ponto em que ele se reproduziu, para além do ponto que ela, força de trabalho, poderia ter parado, uma vez que já trabalhou o suficiente para sua subsistência para a sua manutenção biológica (BRAVERMAN, 1980, p. 58). Em síntese, durante uma parte de sua jornada o trabalhador cria um valor correspondente ao seu salário (é como se ele autopagasse), denominado valor necessário (o trabalho que ele gastou para gerar esse valor é chamado por Marx de trabalho necessário). No entanto, mesmo depois de gerar o valor necessário (para sua subsistência) a jornada de trabalho não termina, ele, trabalhador, portanto, continua a gerar mais valores: é a criação do valor excedente apropriado pelo capitalista (o trabalho gasto para gerar esse valor, excedente, é o sobretrabalho, o trabalho não pago que gera esse valor excedente, em uma palavra, a mais-valia). Para introduzir o conceito de mais-valia, K. Marx, antes, chama a atenção para um ponto decisivo que serve como ponto de partida. O valor da força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessário para a sua produção e multiplicação, entretanto, o uso dessa força de trabalho é limitado somente pela força e energia física do trabalhador. Valor da força de trabalho e uso da força de trabalho são coisas diferentes, assim como são coisas distintas a quantidade de ração consumida por um cavalo e o tempo que ele aguenta carregar o cavaleiro (adaptamos o exemplo de Marx). A quantidade de trabalho limita o valor da força de trabalho, contudo isso é 10

fundamental, de modo algum limita a quantidade de trabalho que ela, força de trabalho, possa executar (MARX, 2010). Outro exemplo didático de K. Marx é o do tecelão (que adaptamos). Suponhamos que um tecelão, em 6 horas de trabalho, execute atividades o suficiente que lhe garanta uma quantia de 3 e o seu salário é 3 é exatamente a quantia de 3. Ou seja, podemos concluir, em 6 horas de trabalho o tecelão já trabalhou o suficiente para pagar seu salário. No entanto, isso nada impede que ele, tecelão, coagido pelo capitalista, trabalhe mais 8, 10 horas: o capitalista comprou temporariamente sua força de trabalho, por um dia, um mês, enfim, portanto, pode fazer o tecelão trabalhar 12 horas, ou seja, além das 6 horas suficientes para recompor seu salário é o que K. Marx chamou de sobretrabalho, que se traduzirá em mais-valia e em sobreproduto (MARX, 2012, p. 114). É daí que advém o lucro capitalista: desembolsando uma quantia de 3 na força de trabalho do assalariado, o capitalista recebe como resultado final um valor de 6 (segundo nosso exemplo). Este tipo de troca entre o capital e o trabalho é que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema de trabalho assalariado e tem de conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista (MARX, 2012, p. 115). E aqui entramos num ponto fundamental. Algo que se torna extremamente importante para compreender o processo de exploração pelo qual K. Marx desenvolveu é o esclarecimento e distinção de dois termos: trabalho e força de trabalho. O trabalhador não vende seu trabalho. Ele vende, isto sim, sua força de trabalho o trabalho surge de sua ação. São coisas diferentes. Se o valor da força de trabalho de um operário reside (por exemplo) numa quantia de 3, o que corresponde a 6 horas de trabalho, ele, porém, forçosamente é colocado para trabalhar 12 horas: o operário considerará essa quantia de 3 como o pagamento de suas 12 horas de trabalho a confusão dos termos abre espaço para esse equívoco. Aparentemente o trabalho todo aparece como pago, Essa falsa aparência distingue o trabalho assalariado das outras formas históricas do trabalho. Dentro do sistema de trabalho assalariado, até o trabalho não pago parece trabalho pago (MARX, 2012, p. 116). 11

Apenas o trabalho humano, com sua força de trabalho, produz a maisvalia. O tempo de trabalho do assalariado é o único pelo qual advém a maisvalia um instrumento automatizado não tem a capacidade de gerar sobretrabalho (as 20 horas que uma máquina funciona, será pago, exatamente às 20 horas, pelo capitalista). O capitalista, aquele pelo qual o lucro desse trabalho excedente necessariamente se destina, em vistas de expandir mais excedente e, portanto, maior lucro expressão empírica da mais-valia, vai sempre empreender todos os meios para aumentar a produção da força de trabalho, seja pelo prolongamento da jornada de trabalho ou pela intensificação de demanda na ação do trabalho numa palavra, sempre diminuindo as porosidades do trabalho. Para descrever o contexto da Revolução Industrial Inglesa (séculos XVIII e XIX), Marx (2011) utiliza uma linguagem metafórica: porosidade. Trabalho poroso constitui aquele cuja atividade é intercalada por momentos de trabalho, onde produz valor, e de não-trabalho, onde não produz valor este último Marx chama de porosidade do trabalho (DAL ROSSO, 2008, p. 47). O trabalhador, por sua vez, deseja aumentar essa porosidade da sua jornada, seja por conta do desgaste ou cansaço, já o capitalista, ao contrário, deseja eliminar (completamente) as porosidades do trabalho, a fim de lucrar mais. Deste modo, o empregador com a finalidade de aumentar seus ganhos, eleva o ritmo do trabalho diminuindo os poros da jornada. Concluindo, a categoria de intensidade pode ser articulada com o alongamento da jornada de trabalho ou com as transformações tecnológicas do trabalho que conduzem a uma intensificação maior. Em suma, a categoria pode ser articulada com as duas formas de extrair mais-valia: absoluta e relativa (na verdade, distintas formas de intensificação para aumentar a produção de valor). Mais-valia absoluta: para aumentar a produção de valor, o capitalista precisa aumentar o número de horas de trabalho em seu limite máximo. A mais-valia absoluta, ou grandeza extensiva do trabalho, portanto, é esse 12

alongamento das horas de trabalho (no dia ou semana). Entretanto, seja por legislações ou direitos trabalhistas (ou outros fatores), nem sempre é possível ao capitalista uma máxima elevação da jornada de trabalho do trabalhador. Mais-Valia relativa: logo, deixando de lado o caminho do alongamento de horas no trabalho, o capitalista passa a investir em equipamentos modernos para aumentar sua produção. Em termos genéricos, o método de produção da mais-valia relativa consiste em capacitar o trabalhador, com o acréscimo da produtividade do trabalho, a produzir mais, com o mesmo dispêndio do trabalho no mesmo tempo (MARX, 2011, p. 467). Nisso versa a extração da mais-valia relativa, ou grandeza intensiva do trabalho: os equipamentos mais tecnológicos operam mais rapidamente e exigem que o trabalhador também aumente a velocidade de seu trabalho e adapta-se às ordenações da máquina, fazendo assim um aumento da produção do valor (o trabalho fica mais denso/intensificado sem aumentar a jornada). 13 *** CONCLUSÃO Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, E ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (...) Neste ponto encontramos a relação dialética entre o homem e a natureza: ao transformar o seu redor, o homem transforma a si mesmo. Isso implica que a natureza humana não é algo dado, mas está em constante evolução, o que nos leva diretamente à discussão central do presente trabalho: a centralidade do trabalho: o homem faz sua essência, segundo nossa interpretação da perspectiva de Marx, através do trabalho; uma vez que ele,

trabalho, não existe, como diz parte da literatura europeia da sociologia do trabalho, como fica a relação entre o homem e sua essência? Nos parece claro que o trabalho nada mais é que a condição universal de possibilidade da existência humana. (...) Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana (MARX, 2011, p. 211) Ou seja, na direção oposta de determinada literatura eurocêntrica da sociologia do trabalho, existe uma implicação mútua entre trabalho concreto e trabalho abstrato: não são dois tipos excludentes e opostos de trabalho. (...) o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. (MARX, 2011, p. 211, 212) O trabalho é condição universal do homem, independentemente do modo de produção de dada sociedade: posso descrever com todos os detalhes físicos alguém que esteja cavando um buraco, inclusive sua relação com o trabalho realizado no passado e incorporado na pá, no entanto, apenas com base nessa descrição, não posso saber se essa pessoa é um aristocrata excêntrico, que cava buracos apenas pelo exercício, ou se é um camponês, um escravo, um assalariado ou um condenado. Ou seja, o trabalho sempre existiu, resta considerar como o modo de produção capitalista faz uso singular dessa capacidade e potência universal humana (MARX, 2011, p. 120 e 121). Eis a centralidade do trabalho: o processo de trabalho (...) é atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais (MARX, 2011, p.218). Quanto à crise da centralidade do trabalho abstrato, a questão exige mais cuidado. Mas, como podemos pensar na não existência do trabalho 14

levando em conta que, segundo a própria OIT, 22% dos trabalhadores do mundo inteiro laboram mais de 48 horas semanais, enquanto outra significativa proporção encontra-se estruturalmente subempregada, sofrendo a desvantagem de jornadas mais curtas (trabalho em tempo parcial)? Como pensar no fim do trabalho na sociedade moderna levando em conta que, no mundo inteiro, um em cada cinco trabalhadores laboram mais de 48 horas por semana? (em outras palavras, 614,2 milhões de trabalhadores em todo o mundo laboram mais de 48 horas por semana). Lembrando que apenas os trabalhadores formais estão contidos no contingente de 22% do mundo que labora mais de 48 horas semanal ou seja, embora o número seja grande, ainda não foram contemplados os trabalhadores autônomos e de domicílios. O que se pode concluir de tal literatura que teoriza acerca do fim do trabalho é que, além de conter um caráter abstrato (isto é, não faz coro com a realidade um em cada cinco trabalhadores laboram mais de 48 horas por semana!), também se encontra em total eurocentrismo, já que levam em conta, senão completamente, mas principalmente a Europa. O limite de 40 horas semanais está presente em todos os países da Europa Central e Oriental e também em quase metade dos países africanos (apenas três têm limites acima de 45 horas). Porém, em contrapartida, a America Latina, por exemplo, permanece numa situação à parte desse quadro: a maioria dos países dessa região tem jornada semanal de 48 horas. Ademais, se somarmos todos os países centrais do capitalismo atual, ou seja, os paises europeus, com alguns países ditos periféricos, bem como o Brasil, numa palavra, se somarmos os principais países do Ocidente, ainda sim não chegariamos ao número total de proletários existentes no Oriente/Ásia (por exemplo, a China). Em Zimbábue, outro exemplo, 40,6% dos trabalhadores assalariados trabalham mais de 48 horas por semana. As longas jornadas de trabalho são especialmente comuns na região asiática, sobretudo nos países denominados Tigres do Leste Asiático e os Dragões do Sudeste. Na Etiópia, por exemplo, 41,2% dos trabalhadores laboram mais de 48 horas por semana, na Indonésia o número chega a 51,2%, na República da Coreia, 49,5%, no Paquistão, 44,4% (em 2003) e na Tailândia o número chega a 46,6% (em 200). Segundo a própria OIT, em países em desenvolvimento como a China não se passa um 15

dia sem que ouça reclamações sobre extensas jornadas de trabalho, cujos dizeres são manifestos nas expressões pressão de tempo, penúria de tempo e até karoshi (morte por excesso de trabalho). Como pode uma teoria do fim do trabalho e fim do assalariamento não encontrar a mera abstração como resultado, sendo que: o que os estudos da OIT indicam é que o determinante fundamental para a maioria dos trabalhadores cumprirem longas jornadas são os ganhos maiores, principalmente quando o valor do salário por hora é baixo. Por exemplo, nas Filipinas, mais de 90% dos trabalhadores que laboram mais de 48 horas por semana, fazem isso para ganhar mais. Autores como Dominique Medá, Offe, Gorz e Habermas, sustentam a tese segundo a qual o trabalho deixou de ser um vínculo fundamental da coesão social entre as pessoas, isto é, deixou de ser um criador de sociabilidade. O lugar do trabalho na sociedade foi descontruido (para esses autores, a esquerda deveria lutar pela recusa do trabalho, pela superação do trabalho). A desalienação deveria ocorrer fora do trabalho. O elemento da abstracão (desconexão com a realidade) de tal tese aparece novamente. Não é possível levar adiante o argumento segundo o qual o trabalho chegou a seu fim, considerando que a sociabilidade dos indivíduos, por excelência, gira em torno justamente do trabalho. Vide o caso do tempo livre, diz Theodor W. Adorno mais precisamente, do tempo não livre. O tempo livre está em relação direta com o trabalho, ele é precisamente determinado pelo trabalho, ditado por este 9. Mesmo fora da esfera laboral, o indivíduo preenche seu tempo com atividades que o qualifica do trabalho, ou, a mesma coisa com sentido diferente, preenche seu espaço fora da jornada com acontecimentos que o faça esquecer-se de seu trabalho (sentir-se efetivamente livre), dada sua condição de trabalho abstrato. (...) a questão do tempo livre, não significa menos do que (...), essa vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres fora do horário de trabalho. 9 Adorno embasa seu argumento também (talvez principalmente) na Indústria Cultural, no entanto não nos colocaremos essa questão em exame. 16

Tanto assim, que Adorno acha adequado reformular a questão qual é seu tempo livre para, Que ocorre com ele [tempo livre] com o aumento da produtividade no trabalho, mas persistindo as condições de não-liberdade, isto é, sob relacoes de producao em que as pessoas nascem inseridas e que, hoje como antes, lhes prescrevem as regras de sua existência? Que a classe trabalhadora e o quadro atual do mundo do trabalho são outros, não há dúvidas. Aliás, trata-se disso: de uma metamorfose da morfologia do trabalho e não seu fim. ( ) a transformação em nossos instrumentos de trabalho tem consequências para nossas relações sociais, e vice-versa; à medida que nossas relações sociais mudam, nossa tecnologia também tem de mudar; e, à medida que nossa tecnologia muda, também mudam nossas relações sociais. (HARVEY, 2013, p. 118). É dificil propor o fim do trabalho dentro de uma sociedade capitalista. 17