O terrível dever é ir até o fim Clarice Lispector
As Horas 11 Quando ela desligou o telefone, ainda fiquei parado esperando que alguma coisa acontecesse. Um silêncio absurdo tomou conta da sala, comecei a andar pela casa procurando uma forma de organizar os pensamentos na cabeça, eu sempre bagunçava tudo. Eu chego em casa às dezenove e trinta, se der, venha, a gente precisa conversar, ela falou antes de desligar a ligação. Teve uma hora que eu tentei dizer que não iria ser bom, que seria melhor a gente não experimentar mais nenhuma forma de aproximação, as coisas andavam de mal a pior, mas não aconteceu, eu mal consegui falar, perto dela as ideias me escapavam, eu tinha perdido uma noite inteira de sono, o raciocínio diminuía com tamanha força, tinha misturado bebida e drogas, ainda estava um pouco desligado de tudo, na
12 As Horas verdade nem sei bem porque quis telefonar para ela. E se eu não fosse, se inventasse uma desculpa, e eu pensei em várias maneiras de não aparecer, fazia frio, ainda era cedo, a música que tocou a noite inteira ainda ecoava nos meus ouvidos, se eu fosse, saberia no que ia dar, brigaríamos, seria mais uma sessão de agressões e bate boca. E chovia ainda, quem sabe a chuva aumenta e fica difícil de ir, às vezes eu quero, outras vezes, não. O tempo vai se arrastando e fico parado olhando para o relógio como se quisesse segurar o movimento dos ponteiros. Se eu aparecer, ela vai me olhar com a mesma cara de reprovação, vai me culpar de tudo que deu errado, vai sentir o cheiro da bebida, vai gritar feito louca, vai dizer que sou um falido, que era melhor que eu não tivesse surgido na sua frente, eu iria reclamar da chuva, do tempo que perdi indo até lá, estaríamos os dois mais uma vez numa interminável obsessão por nos ferirmos, então ela lançaria um cinzeiro, um copo, da outra vez ela quebrou três jarros num só acesso de raiva. E eu derrubei três cadeiras, porque estava completamente bêbado. Só de pensar o tempo escorregando entre os dedos, uma aflição começou a tomar conta de mim, comecei a beber novamente, tentando aliviar a pressão, meus pensamentos sacolejavam na cabeça, eu poderia dormir, mas não conseguiria, até às dezenove e trinta muita coisa haveria de acontecer, quantos cigarros fumaria e quantos copos beberia para esquecer. A chuva não cessava, comecei a calcular o tempo, mas es-
As Horas 13 tava totalmente perdido nas horas, faz um tempão que estava estirado no tapete secando as garrafas sem a menor ideia de como iria sair dali, um esforço sobrenatural para levantar, E no instante seguinte, cair. Eu queria, sim, eu queria, a cabeça rodava, nem o tempo e nem a chuva paravam de seguir o seu fluxo, se pelo menos conseguisse ligar para dizer que hoje não, hoje eu não estou preparado, quem sabe amanhã, mas ela estava me esperando, um medo enorme foi tomando conta de tudo. Em vão tentei levantar, todas as ideias misturadas, muitas loucuras. O que se faz quando não tem mais jeito? Quando nem o tempo, nem as horas, nem ninguém pode nos salvar? Eu te amo Laura! Murmurei um fiapo de voz. Não sei se ela me entenderia, mas era preciso recuar, esquecer, largar. Olhei o relógio na parede, já passavam das vinte e duas e quarenta, não chovia, a bebida tinha acabado, uma dor enorme na cabeça, fiquei parado entre o sofá e mesinha de centro, entre garrafas e guimbas de cigarros, esperando que o fogo consumisse o resto da casa.
POEMA
As Horas 17 Esta coisa é a mais difícil de entender. Não digo que sejamos assim uns tolos, sem a delicadeza que a alma necessita, talvez uma espécie de resistência ao que pode nos mover, talvez. Parecerá óbvio se disser que falo do amor, mas é extremamente difícil falar do amor e ainda conservar uma ingênua vontade de sermos imutáveis. O tempo é imutável. E podemos ainda assim falar do tempo com a destreza de uma criança, que se move além dos seus limites. Poema simplesmente não saberia dizer o que seu nome significava. Não saberia dizer de onde vinha, como tinha chegado à vida e nem onde estavam as saídas. Pareceu-lhe vagamente sonhador ter entrado na vida assim como se tivesse entrado espremida por uma brecha feita só para ela. O fato é que quando abriu os olhos estava viva. E como não consegui-
www.editorapenalux.com.br Composto em Latin Modern e impresso em Pólen Bold 90g/m 2 em São Paulo para Editora Penalux, em Agosto de 2016