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Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA REPRESSÃO POLÍTICA E OS PRESÍDIOS DA DITADURA: PRESÍDIO TIRADENTES E PRESÍDIO CARANDIRU Casa de correção, depósito de escravos, cadeia pública e cárcere político, o Presídio Tiradentes foi inaugurado em 1852, foi fechado e demolido em 1973, restando hoje apenas o arco de pedra de seu portal. Ainda durante o período da ditadura, observamos uma geografia da repressão, tendo em vista a localização do DEOPS, do Batalhão Brigadeiro Tobias e do Presídio Carandiru inaugurado em 1920 e tendo parte de sua construção demolida em 2002. Fazendo uma breve análise histórica sobre o espaço carcerário encontramos dois conceitos fundamentais, a saber: disciplinarização e repressão. A partir do século XIX com a consolidação do sistema capitalista, as sociedades passam por profundas transformações quanto a sua organicidade gerando, portanto uma sociedade disciplinar que abarca todas as esferas da vida, seja na produção material, seja no padrão comportamental. Portanto, quem não se adequa a esse modus operandi passa a ser punido. A rede carcerária, em suas formas concentradas ou disseminadas (...), foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador 1. Michel Foucault - Vigiar e Punir. Ao retomarmos a constituição do sistema prisional verificamos que havia um projeto disciplinar para os cidadãos pertencentes às camadas empobrecidas, muitos dos que eram presos se enquadravam no estigma de vadios e arruaceiros. Com o início dos regimes ditatoriais a ideia de disciplina vem atrelada a repressão política, pois as ideologias contrárias as politicas de estado não tinham espaço e já não cabia apenas uma disciplinarização do modo de pensar e agir no mundo, mas uma repressão efetiva para que fossem extintas. Para compreendermos as lutas daqueles que não se calaram contra aos governos opressores vivenciados no Brasil, tanto no Estado Novo quanto no Golpe de 1964, resgatamos a memória e a história do primeiro cárcere construído em São Paulo, o Presídio Tiradentes, bem como do Presídio Carandiru. Cenário do massacre de 111 presos empreendido pela força policial. PRESÍDIO TIRADENTES O Presídio Tiradentes esteve localizado na Avenida Tiradentes na altura do número 451, restando, atualmente, apenas o seu pórtico, conhecido como Arco do Presídio, o qual foi tombado como patrimônio histórico em 1985 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT.

Histórico da Construção do Presídio Tiradentes Na província de São Paulo, a época Imperial, a concepção do espaço carcerário foi se estabelecendo lentamente e locais paliativos foram utilizados para o aprisionamento dos infratores. A falta de um sistema carcerário estava diretamente relacionada à escassez de verbas e de profissionais que pudessem realizar tal projeto. Nesse sentido, a Casa de Correção de São Paulo, após um longo percurso quanto a sua construção, surge em resposta a crescente demanda de infratores viabilizando, assim, a aplicação do código criminal a todos aqueles que ousavam descumpri-lo. Portanto, a disciplina, a correção e a repressão são conceitos inerentes à constituição do Presídio Tiradentes como veremos ao longo de sua história. Conhecida inicialmente como a Cadeia da Luz, a Casa de Correção de São Paulo, foi criada em 1825, sendo inaugurada somente em 6 de maio de 1852. Sua estrutura foi pensada para atender duas demandas específicas, a saber: como depósito de escravos os quais eram postos no calabouço, e a casa de correção, propriamente dita, para onde iam todos aqueles que em certa medida não se adequavam as regras dessa sociedade, seja pela prática de delitos, seja por sua condição social, e deste modo as penas eram cumpridas através do trabalho. Figura 1. Gravura reproduzida - MENEZEZ, Raimundo de. Espetacular evasão da Cadeia da Luz em 1884 Localizava-se no largo do Seminário (atual Avenida Tiradentes), que começava na Rua do Comércio da Luz e no baixo muro do Jardim do mesmo nome, prolongando-se até as porteiras da Inglêsa desembocando nas Ruas Alegre e Constituição (atual Brigadeiro Tobias e Florêncio de Abreu). i Durante a sua construção o presídio passou por inúmeras depredações e reformas permanecendo a Penitenciária e a Cadeia no estado improvisado de 1877 até o final da monarquia e, pelo menos, por mais trinta anos durante todo o período republicano ii. As condições de encarceramento eram as piores possíveis apontando todo descaso com a vida, tanto do ponto de vista arquitetônico, com celas em tamanho reduzido e insalubres, quanto às insuficientes condições de higiene e alimentação proporcionadas aos presos. A precariedade da construção e as más condições de encarceramento eram uma marca que o Presídio carregaria até a sua extinção em 1973, quando da sua demolição para o andamento das obras do metrô. Figura 2. Planta da Casa de correção de São Paulo. Relatório da comissão Inspetora da Penitenciária de 12 de novembro de 1885. In Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo Presidente da Província João Alfredo Corrêa de Oliveira no dia 15 de fevereiro de 1886. São Paulo: Typographia a vapor Jorge Seckler & C. 1886, planta n. 1. O responsável pela construção foi Daniel Pedro Muller. Para o projeto da Casa de Correção em São Paulo se utilizou da planta de William Powers, vicediretor da prisão de Auburn (NY), contudo em proporções menores. Entre os anos de 1830/40 a burocratização e a falta de recursos financeiros embargaram a concretização de inúmeros projetos na província de São Paulo. Somente em 1850, com a expansão cafeeira e a capitação de recursos materiais, foi possível a finalização de parte do projeto do presídio. Flávia Maíra de Araújo Gonçalves Cadeia e Correção: Sistema prisional e população carcerária na cidade de São Paulo

Sistema Prisional no Início do Século XX A discussão na esfera pública quanto à deficiência do sistema prisional datam do início do século XX. Paulo Egídio em seu ensaio: Estudos de Sociologia Criminal teoriza sobre o problema da criminalidade e o associa a questões de ordem social. Tendo assumido um papel importante no senado de São Paulo, propôs alterações no Código Penal, bem como a criação de novas instituições relacionadas à prisão, já que o sistema vigente encarcerava tanto os criminosos como os menores abandonados e os excluídos socialmente. Para ele a reforma penitenciária compreendia o estabelecimento de uma rede de instituições racional e praticante concebida para prevenção de delitos, para a sua supressão, para a correção dos delinquentes e para a prevenção da reincidência iii. Para tanto, seria necessário uma reforma na instituição vigente. Propôs, portanto, a criação de uma comissão que se encarregaria de verificar as condições e necessidades da principal penitenciária de São Paulo, o Tiradentes. Figura 3. Presídio Tiradentes. O Estado de São Paulo de 14 maio de 1911. O parecer desta comissão, mediante as condições de higiene e da constituição da construção, apontou que uma condenação ali cumprida era uma pena de morte atenuada. Frente os dados levantados pela comissão o Tiradentes estava integralmente condenado, e nesse sentido a proposta de Paulo Egídio para uma nova Penitenciaria do Estado, viria se concretizar em 1911 quando se inicia as obras da nova Penitenciária do Estado Instituto de Regeneração - Carandiru, e sua inauguração se dá em abril de 1920, visando atender as exigências do código penal republicano de 1890. O Instituto de Regeneração cumpriu o seu papel, sendo considerado modelo nas Américas, recebia visitas de inúmeros estudantes de direito, personalidades das mais diversas nacionalidades, chegando a ser considerado um dos cartões postais da cidade de São Paulo. Ainda assim, o presídio Tiradentes continuou a funcionar encarcerando novos infratores. Figura 4. Foto aérea do Carandiru. http://www.sap.sp.gov.br Na década de 30, com o Estado Novo as feições do Presídio Tiradentes se reconfiguraram, os que lutaram contra os regimes ditatoriais que se instalaram no país acabavam por cumprir suas sentenças naquele espaço. Assumindo, portanto a vocação de presídio político, o qual recebeu em um pavilhão especial todos os indiciados na Lei de Segurança Nacional. Esta característica se seguiria até a queda do Regime em 1945. Neste período passaram por lá José Maria Crispim e Monteiro Lobato homenageados posteriormente por outros presos políticos que lá estiveram desde 1968, nomeando a cela em que passaram em décadas anteriores iv. Perseguição Política O século XX é marcadamente um período de grandes mudanças e transformações no interior de suas estruturas, seja no campo da política e ideologias, seja no âmbito das relações internacionais; algumas dessas transformações culminaram em experiências catastróficas como as duas grandes guerras e os regimes ditatoriais, os quais se instalaram tanto na Europa quanto nos países periféricos. Deste modo, não poderia ter sido diferente o caso do Brasil, no qual as conjunturas

internacionais influiriam diretamente na nossa política e sociedade. Sendo assim, buscou-se a defesa da democracia sob a égide da perseguição ao comunismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) surge em 1922 e com ele a Aliança Nacional Libertadora (ALN), que combatia a influência do fascismo no Brasil e reivindicava a suspensão da dívida externa do país, a nacionalização das empresas estrangeiras, a reforma agrária e a proteção aos pequenos e médios proprietários, a garantia de amplas liberdades democráticas e a constituição de um governo popular v. Frente ao teor revolucionário destas reivindicações tanto o PCB como a ALN foram postos na ilegalidade na Era Vargas com base na Lei de Segurança Nacional promulgada em abril de 1935, que definia e punia os crimes contra o Estado e a ideologia vigente. Esta lei surge como medida de controle popular e suporte para a repressão e perseguição a todos aqueles que se enquadravam em atividades supostamente subversivas, como por exemplo, o caso Monteiro Lobato. O escritor de literatura infantil não era ligado a uma ideologia de esquerda, contudo por ter discordado e expresso suas opiniões em relação à política adotada por Vargas quanto à exploração do petróleo, em um jornal, acabou sendo investigado pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) e foi acusado de desmoralizar o Conselho do Petróleo bem como de injuria ao presidente Vargas. Esse episódio ficou conhecido como o escândalo do petróleo e lhe rendeu um período de detenção no Presídio Tiradentes. Ficha de Monteiro Lobato nos arquivos do Deops Arquivo do Estado Lei de Segurança Nacional Podemos, portanto apreender que a menor discordância ou questionamento quanto à política adotada pelo governo seria motivo para o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Deste modo, a perseguição política, o encarceramento, as torturas e punições tornaram-se prática recorrente tanto na Era Vargas quanto no golpe de 1964. Elevando-se significativamente a população carcerária, tal efeito se deu, sobretudo frente à especialização da polícia política que objetivava conter e reprimir as mobilizações populares e organizações políticas. Como consequência as prisões ficaram ainda mais precárias devido a quantidade de novos presos. O cárcere tornou-se o local de exclusão, por excelência, dos inimigos políticos e sociais do regime vi. Com o golpe militar em 1964 a Lei de Segurança Nacional (LSN) juntamente com o Serviço Nacional de Informações (SNI) -, criado em junho do mesmo ano, forneciam e produziam informações que atendiam aos interesses da ditadura e de seus aliados, elevando o grau de recrudescimento da repressão política. O inimigo a ser combatido encontrava-se no meio do povo. Estudantes, intelectuais, artistas e militantes políticos foram o principal foco de perseguição e para tanto foi implantado em escala nacional o Destacamento de Operações e Informações Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) o qual visou não só a perseguição, mas o aprisionamento e a eliminação de todos os opositores do regime. Esse período da nossa história aponta para a violação integral dos direitos da pessoa humana, os fins justificaram os meios frente a defesa de um Estado de exceção, que se instalou no país com a derrubada de um governo eleito democraticamente. Da Tortura ao Cárcere no Tiradentes Os regimes políticos totalitários instalados em diversos lugares do mundo propiciaram o desenvolvimento de métodos científicos de tortura, os quais foram disseminados em larga escala entre diversos países. O intuito desses métodos era o de se obter confissões e delações, mas não somente isso, utilizou-se esse instrumento como forma de intimidação e opressão das populações,

corroborando, nesse sentido, a consolidação de governos ditatoriais, nos quais a participação popular inexistia. No Brasil, durante o regime militar (1964 1985) ocorreu à institucionalização de um aparato repressor de supressão dos direitos da pessoa humana, esses organismos desempenharam um importante papel na manutenção de um Estado ilegítimo que perdurou por vinte e um anos. E ainda hoje, podemos dizer que existem os resquícios dessa estrutura desenvolvida no regime ditatorial, pois com a lei da anistia foram também beneficiados os torturadores que até o momento não responderam e tampouco foram punidos por seus crimes de lesa humanidade. Com o Ato Institucional - 5, em 1968, o governo passou a ter plenos poderes colocando fim ao direito do habeas corpus, a presos políticos. Os inimigos políticos perseguidos pelo Estado quando de seu sequestro passavam por interrogatórios violentos quase sempre acompanhados por torturas físicas, morais e psicológicas. As sessões de tortura e interrogatório podiam acontecer a qualquer momento do dia ocasionando um estado de suspensão e apreensão por parte do preso, pois este nunca sabia em que momento retornaria as sevícias, e enquanto estivessem nos porões da ditadura o destino era incerto. Muitos acabaram mortos e desaparecidos, outros como aponta os relatos tiveram a sorte de serem encaminhados ao Presídio Tiradentes, pois a detenção ali remetia certa proteção judicial era, portanto o fim da incomunicabilidade e do sigilo do preso formalizando assim, uma auditoria militar. Antônio Candido frente aos depoimentos de alguns ex-presos políticos condensa no prefácio do livro Tiradentes, um presídio da ditadura, o significado de ser ir para o Tiradentes, lá seria como uma espécie de purgatório entre os limites do céu e do inferno. Contudo, a detenção não significava propriamente o fim das atrocidades praticadas pelo aparato repressivo, ainda assim, o preso político poderia retornar aos interrogatórios seguidos de torturas, tanto no DOI-CODI quanto no DEOPS como aconteceu com diversos militantes, entre eles temos o caso emblemático de Frei Tito, que posteriormente se suicidou, e o da teatróloga Heleny Guariba desaparecida política. Para muitos chegar ao Tiradentes significava um alívio, quase uma vitória por ter sobrevivido às torturas, ao desaparecimento, à morte vii. Por trás das grades A punição não era aplicada somente contra os opositores do regime, dentro deste espaço carcerário encontravam-se os presos comuns - corrós. Segundo os relatos de presos políticos alguns corrós eram retirados de suas celas no meio da madrugada, sendo torturados em um poço existente no meio do presídio, e muitas vezes após a tortura eram levados para lugares ermos, pelo temido Esquadrão da Morte que os eliminavam de modo torpe e cruel. O Esquadrão da Morte era composto por autoridades policiais do próprio Tiradentes, os envolvidos eram o diretor do presídio, bem como o delegado e outros funcionários da instituição, tendo como seu principal mentor o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, conhecido agente da repressão. Portanto, a prática das torturas e do extermínio se estendia a outros campos da sociedade, eliminar os indesejados e os excluídos era parte do projeto deste grupo, podemos subentender que a perseguição não se dava apenas no âmbito político-ideológico, para esses homens as camadas empobrecidas deveriam ser eliminadas e seus direitos subtraídos. As impunidades praticadas por esse grupo não passariam incólumes, a partir da década de 70 o procurador de justiça Hélio Pereira Bicudo inicia um processo de denúncias contra os delitos praticados por esse grupo, em certo sentido começou a delinear-se a luta pelos direitos humanos e a tentativa de punição daqueles que abusavam do poder que lhes fora outorgado. A investigação das mortes praticadas pelo Esquadrão foi possível devido ao trabalho do ex - preso político Guilherme Simões Gomes dentista, que mantinha as fichas de atendimentos dos presos e estas nem sempre correspondiam com os registros internos do presídio, o que viabilizou a instauração do processo contra o grupo. Ainda que os responsáveis não tenham sido punidos, a instauração desse processo foi um importante passo tanto na denúncia dos

abusos cometidos quanto no efetivo resgate dos direitos humanos suplantados pelo regime. A vida no cárcere Aqueles que não se conformaram com o regime instituído ousaram lutar por um ideal, de pátria livre e igualitária para todos os brasileiros, dotados de um forte espírito de solidariedade que foi transposto para além de suas militâncias políticas. A vida na prisão trouxe uma nova percepção do mundo e das lutas iniciadas no espaço sujo e opressivo do cárcere, todos se organizavam, inventavam modos de tornar menos intragável a comida, discutem, se divertem, brigam, se dividem, se reagrupam, mas superam a dissolução que ameaça o preso e, de certo modo, amadurecem em condições anormais viii. Mesmo por detrás daquelas grades havia um espaço para a vida e a luta continuava a ser feita de outro modo, através da solidariedade, onde as diferenças ideológicas eram postas de lado e tanto presos políticos quantos os corrós partilhavam das angustias e anseios existentes no espaço prisional. Em um dos relatos encontrado no livro Tiradentes, um Presídio da Ditadura: Memórias de Presos Políticos, encontramos essa solidariedade em que no meio da noite, quando os presos comuns eram torturados, foram as vozes dos presos políticos que, aos gritos furiosos, exigiram e conseguiram o fim de mais aquele bárbaro suplício ix. Bem como a união dos presos em protestarem, com uma greve de fome, quando alguns companheiros foram levados a outros presídios. Dentro das celas superlotadas impregnadas de sujeira e umidade, e a falta da luz do sol que lhes era concedida somente por duas horas semanais, ainda era possível encontrar um espaço de resistência criador e criativo, muitos que ali passaram expressaram suas vivências através da produção artística, como os artistas plásticos Carlos Takaoka que em 1979 expôs as aquarelas produzidas nos cárcere, e Alípio Freire e Sérgio Ferro os quais ilustraram, com suas pinturas, o livro de memórias daqueles que estiveram presos no Tiradentes, assim como a experiência do teatrólogo Augusto Boal, em Torquemada (peça teatral), que começa a escrevê-la ainda dentro do cárcere levando aos palcos uma realidade ocultada dentro dos porões da ditadura. Essas memórias desvelam uma história pouco conhecida, o que se tentou fazer, por muito tempo, foi descreditar a luta de brasileiros e brasileiras que se indignaram com o estado de barbárie imposto pelo regime ditatorial, o qual se ocupou especialmente de manter as profundas diferenças sociais existentes no país. Homens e mulheres acreditaram na possibilidade de transformação, se levantaram, lutaram mesmo sabendo dos riscos que corriam. Optaram pela esperança de um país justo, independente das opções que tenham escolhido para essa transformação. Pelo Tiradentes entre 1969 a 1973 passaram cerca de trezentos presos políticos, das diversas organizações de esquerda existentes na época. Esses militantes traziam em si a chama de que algo novo poderia ser construído. Retomar suas histórias, suas lutas e seus ideais, é fazer aquilo que Walter Benjamin propôs nas teses sobre o conceito de história, em que o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. Presídio Carandiru Figura 5. Carandiru no início do século XX. http://www.sap.sp.gov.br Como tantos outros presídios no período da repressão, o Carandiru serviu de morada aos que não se calaram perante o regime autoritário que assolava o país durante os anos de 64 a 85. Nele cabeças pensantes que lutaram para que hoje tenhamos o direito de ir e vir cumpriram parte do ritual estipulado no maior presídio da América Latina: passaram pela Divinéia, vestiram o uniforme,

tomaram as vacinas e por várias vezes ouviram as preleções do diretor e foram conduzidos pelos longos corredores do presídio às suas celas com os demais presos. Em 68, quando o 30º congresso da Une era realizado em um sítio em Ibiúna, um grupo de estudantes após uma passagem pelo Tiradentes, completou sua pena no Carandiru. Em seu livro, Tempo de Resistência, Leopoldo Paulino x, relata que o grupo de estudantes saiu na madrugada do Presídio Tiradentes com destino ignorado e quando ainda estava escuro viram-se no pátio do Carandiru, lá recebidos pelo diretor do presídio, Coronel Fernão Guedes, que como fazia com os demais presos, fez uma preleção sobre as regras do presídio, informando que no momento contavam com mais de 5.000 detentos, sendo que para os presos políticos foi reservado um corredor que os comportaria durante o tempo em que lá estivessem. Não seria necessário rasparem o cabelo, porém tomaram as vacinas e vestiram o uniforme do presídio, suas roupas e pertences ficaram mediante recibo, retidos na administração do presídio. Suas celas não foram trancadas de dia, o que possibilitou a conversa com alguns presos comuns que por bom comportamento passavam o dia fora das celas realizando trabalhos burocráticos. Alguns estudantes de direito foram consultados pelos presos comuns devido à situação que levavam sem assistência jurídica e sem julgamento, esquecidos na imensidão do Carandiru, conheceram também o detento mais famoso do local, o italiano Menegheti, que cumpria uma de suas infinitas penas por roubo. No Carandiru, este grupo de presos políticos, teve a quebra da incomunicabilidade, a qual estavam inseridos no Tiradentes e quebraram a greve de fome, única arma que possuíam, estavam sem comer a mais de 72 horas. O grupo permaneceu apenas uma noite e um dia no Carandiru, porém relata com emoção quando às 18 h. o presídio parou num momento de reflexão quando os alto-falantes tocaram a Ave Maria, ele pode sentir pelos gestos e olhos dos detentos aquele momento de reflexão sobre suas e vidas e uma ponta de esperança que brotava de trás das grades. No dia seguinte logo após o almoço, saíram em ônibus da polícia sob forte escolta, sendo encaminhados para prestarem depoimentos no Dops. Em setembro de 1970, por ordem do juiz-auditor da 2ª região militar, Nelson M. Guimarães, 30 presos políticos, após cumprirem parte da pena no Tiradentes, foram transferidos para Casa de Detenção do Carandiru, Maurice Politi xi, no livro Resistência atrás das Grades, faz um panorama sobre esta passagem pelo Carandiru, onde permaneceram no pavilhão 8 por 13 meses. Nesta época, o governo Médici (outubro/69 a maio/73), auxiliado pelo grupo de extermínio chefiado por Sérgio Paranhos Fleury, o Esquadrão da Morte, conseguiu a proeza de eliminar aproximadamente 250 das quase 480 pessoas declaradas mortas e desaparecidas na ditadura, nomeando os anos que passou no poder em anos de chumbo. A repressão e a autonomia dos militares em resolver do seu jeito faziam-se constantes, neste período (maio/70) foram criados os DOI(s)-CODI (Destacamento de Operações e informações ligadas aos Centros de Operações de Defesa Interna). Nesta época o regime militar arruinou o país, de 69 a 73 a dívida externa elevou-se em 286%, chegando a um patamar de 12 bilhões de dólares. Porém enquanto o regime apertava de um lado, de outro a resistência por parte dos opositores realizava autenticas acrobacias a fim estabelecerem a democracia e a tão sonhada liberdade de expressão, de dentro dos presídios havia a união e o consenso entre os presos políticos que viam a cadeia com uma trincheira de luta. Com pouquíssimas exceções como os chamados artistas xii, eles buscavam meios de denunciar as atrocidades a que eram submetidos, além de usarem a única arma que dispunham para chamar a atenção da imprensa para situação: A greve de fome. Os presos políticos desta vez ocuparam uma ala isolada no Carandiru, tal precaução foi tomada por medo da contaminação de ideias subversivas a outros detentos. Após uma aparente estabilidade, no dia 07/06/1972 foi avisado ao grupo de presos políticos que seis deles se preparassem pois iriam fazer uma viagem, o destino não foi avisado o que causou muita aflição ao grupo, pois sairiam dali sem

que seus familiares e advogados ficassem sabendo e poderiam terminar como um presunto xiii. Acordados de madrugada, os presos políticos Frei Fernando, Frei Yves, Frei Betto, Wanderley Caixe, Manuel Porfírio e Maurice Politi foram reunidos no pátio, onde algemados aos pares, foram conduzidos a dois camburões fechados por volta das 5 h. da manhã, tomando destino ignorado, dentre várias voltas por estradas desconhecidas, algemados e apertados na traseira dos camburões, chegaram já por volta das 21 h. no presídio de Presidente Venceslau, bem na divisa do estado. O Massacre de 1992 O Massacre do Carandiru é chamado por alguns de tragédia anunciada, outros o viram como uma forma de conter a violência gerada pelos próprios presos. O fato é que depois do massacre, os órgãos de direitos humanos, empenharam-se ativamente contra as atrocidades cometidas em presídios e a imprensa passou a questionar mais a manipulação de informações por parte do governo. Às vésperas das eleições municipais na cidade de São Paulo, dentro do maior presídio da capital, ocorreu uma luta que de um lado estavam 325 policiais fortemente armados com escudos, metralhadoras, coletes a prova de bala, cavalos e cães treinados, de outro um bando de detentos armados com pedaços de paus. Os PMs dispararam contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente a cabeça e o tórax. Na operação também foram usados cachorros para atacar os detentos feridos. Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares. xiv Alguns dizem que o conflito foi gerado por uma discussão banal entre dois detentos, coisa fácil de resolver, porém tomou proporções imensas, talvez irreparáveis, pois, mesmo com as indenizações ainda pendentes, a vida humana não é reposta. No dia do massacre eu e meu companheiro fomos responsáveis pelo campeonato da quadra. (...) quando foi faltando alguns minutinhos, mais ou menos pras três horas, olhei pra quadra pra ver se tava tudo normal, mas não vi nenhum jogador. (...) Foi nessa hora que começou a sair os jogadores do campo, (...) falando que tinha uma treta aqui pra cima (...). Nisso já chegou os funcionários recolhendo o pessoal que estava no campo. (...). No corredor todo mundo ficou em fila e aí eu notei a gravidade da situação. Os funcionários já estavam todos no portão e na hora que eu entrei no pavilhão já tava o maior barulho (...) Não era a primeira vez que eu tava passando por isso, (...) então eu fui pro meu xadrez, eu e meu companheiro, e que seja o que Deus quiser, daqui a pouco vai acalmar a situação (...) Só que não foi isso que aconteceu. Antes do choque entrar, o comandante do choque gritou: Todo mundo dentro do xadrez, ninguém na galeria que a gente vai subir. Conclusão, isso era mais ou menos três e vinte, três e meia, daqui a pouco começamos a escutar tiro, bomba, de repente abriu a porta do xadrez e o policial entrou eu notei pelo coturno, porque a gente não pode olhar pra cara, então nós, de cabeça pra baixo olhando pro chão ele começou a perguntar onde a gente tinha posto as armas. (...) Não aqui é o setor do de esporte, nosso negócio é esporte, a gente tamos pagando uma dívida pra Justiça, sem treta com ninguém, pode olhar debaixo da cama, que o senhor vai ver só bola, rede, essas coisas. (...) aí ele ficou olhando pra gente uns quatro, cinco segundos (...) aí desengatilhou a arma. Eles tavam em dois, um dentro da cela com a arma engatilhada e na nossa cara e o outro (...) ficou na porta com a porta meio aberta, meio fechada, e falou: Vamos ver se é isso mesmo. Depois saíram fora, entraram no xadrez vizinho (...). Tinha dois no xadrez e um não tava, os dois que estavam lá eles mataram, quer dizer, foram matando, eu jamais imaginava que a polícia ia fazer uma coisa daquelas. Aí passaram pra esse lado e subiram lá em cima, eu escutava tiro (...). Conclusão, quando foi lá pras quatro e quinze mandaram todo mundo descer pro pátio, pelado. (...) Eu desci e aí, me lembro como se fosse hoje (...) tinha uns três corpos caídos com a metade do corpo pra dentro do xadrez e a metade do corpo pra fora, e no outro xadrez mais pra frente, a mesma coisa. (...) quando chegou na curva (...) tinha aquele bolão de cara de shorts do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e eu escutei um deles falando assim os caras do GATE e da ROTA tão aí pra cima matando pra caramba, aí não sei se foi o comandante ou quem foi que falou: Não é pra matar ninguém não! Aí começaram a discutir entre eles e tava um bolo de cara em pé

sem saber pra onde vai, né? Aí gritaram: É pra todo mundo ficar no chão deitado, não é pra ficar escutando as ideias! Aí caiu todo mundo um em cima do outro. E depois de dois minutos foi todo mundo pro pátio aquele corredor, os guardas com cachorro de um lado, um espacinho mínimo -, passamos tudo correndo e ficou todo mundo sentado no pátio, de fila em fila sentado com a cabeça no meio das pernas. E pra cima aquele barulhão, e deu seis horas, deu sete horas, e a situação pra cima continuava feia e quando foi lá pras nove e meia, mais os menos, silenciou, porque a polícia tava dando o couro em nóis. Aí deu pra gente olhar meio do rabo dos zóio e a gente viu que era corregedor, era todo mundo engravatado, saindo da carceragem e entrando no corredor da enfermaria. Aí que parou. Mas das três e meia até às nove horas, acho que só na guerra pra ver uma coisa daquelas. xv (Bissiliat, 2003:153). Ao todo foram 111 mortos, número divulgado somente no dia seguinte faltando 15 min. para fecharem as urnas. Tal medida foi tomada por medo do número de mortos ser prejudicial ao candidato a prefeito Aloysio Nunes, indicado pelo governador da época Luiz Antônio Fleury Filho. O número inicial seria 4 mortos, após a saída do número oficial, familiares dos detentos ficaram desesperados sem saber se seus parentes estavam vivos ou mortos, aglomeraram-se na porta do presídio, porém, mesmo com o desespero e o empenho a lista com os nomes oficial dos mortos só foi publicada no dia 08 de outubro. Conforme um levantamento feito pela Comissão de Direito Humanos, o perfil mostrou que 80% das vítimas do massacre não havia sido julgada, somente 9 presos tinham recebido pena acima de 20 anos, quase metade dos mortos, 51 detentos tinha menos de 25 anos, 35 deles tinha entre 29 e 30 anos, 92,66% dos presos foram detidos por assalto, 8% por homicídio. xvi A Polícia Militar afirmou que os detentos tinham armas e apresentou dezenas de armas brancas e 13 armas de fogo. O informe balístico informa que todas as armas apresentam em suas superfícies sinais de oxidação normalmente encontrados em condições de armazenagem em ambientes inadequados. Essas informações levam a creditar que as armas foram plantadas. A tese de que houve confronto armado entre policias militares e detentos não é sustentada pelas provas dos autos do processo. A legitima defesa alegada pela cúpula da Polícia Militar não tem fundamento nos fatos. O laudo do Instituto de Criminalística concluiu: Em todas as celas examinadas, as trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando sua arma para os fundos ou laterais (...) Não se observou quaisquer vestígios que pudessem denotar disparos de armas de fogo realizados de dentro para fora das celas, indicando confronto entre as vítimas-alvo e os atiradores postados na parte anterior da cela. O relatório de criminalística termina com a afirmação de que não fora possível elaborar conclusões mais profundas porque (...) o local dava nítidas demonstrações de que fora violado, tornando-o inidôneo para a perícia. xvii A Desativação Devido a grande repercussão e pressão internacional, em 1996, criou-se no Brasil, o Programa Nacional de Direitos Humanos xviii, dentre os planos do programa estava o da Desativação da Casa de Detenção. Incrementar a desativação da Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), e de outros estabelecimentos penitenciários que contrariem as normas mínimas penitenciárias internacionais. Em 1998, com opiniões divergentes sobre a desativação ou não, iniciou-se o processo com a transferência de detentos para outros presídios, porém, a morosidade no Brasil é uma constante e só em setembro de 2002, o processo de transferência foi concluído. 14 de setembro de 2002: última noite na Casa de Detenção, Carlos Rita, um funcionário com mais de 30 anos de trabalho na Casa, sentia em seu interior um aperto, porém tinha consciência que seria para o bem, da população, pois como ele próprio afirma: (...) não há mais razão de existir, de forma nenhuma. Você não recupera ninguém aqui, (...) e não ia recuperar se continuasse. (Bissiliat, 2003:240). Nessa última noite restavam apenas 73 sentenciados na detenção, o funcionário relata também a falta de estrutura e a impossibilidade de reeducar uma população carcerária tão grande, lembrando que em determinadas épocas o Carandiru chegou a ter 8.000 detentos, como nos demais presídios brasileiros uma