ENTRE O CANDONGUEIRO E O CANECÃO: OS ESPAÇOS DO SAMBA NA INDÚSTRIA DA CULTURA



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Felipe da Costa Trotta Doutorando em Comunicação ECO UFRJ felipe.trotta@terra.com.br Resumo: No mundo moderno, experiências musicais podem ser divididas em dois grandes grupos: as mediadas, que ocorrem através da reprodução de áudio e dos meios de comunicação, e as que ocorrem em eventos sociais, que poderíamos chamar de experiências musicais sociais. Na prática do samba, as experiências músicas sociais ocorrem fundamentalmente em dois tipos de eventos: as rodas de samba e os shows. Este trabalho irá discutir as nuances de cada uma dessas experiências, tendo como exemplo as rodas de samba do bar Candongueiro e os shows de sambistas no Canecão. Os dois espaços abrigam eventos sócio-musicais pertencentes a um complexo sistema de circulação de músicas na sociedade que, ao lado das instâncias mediadoras, formam o que podemos chamar de indústria da cultura. Palavras-chave: música popular, samba, indústria cultural Abstract: In the modern world, musical experience could be divided into two groups: those mediated, which happen through the audio reproduction devices and the means of communication, and those that take place in social events, that might be called social musical experiences. In samba practice, social musical experiences are lived in two main kinds of events: the samba wheel and the show..this paper will discuss the characteristics of each one of these experiences focusing the samba wheel at a public house called Candongueiro and the sambists shows at Canecão theatre. Both places shelter socio-musical events belonging to a complex system of music circulation in society, which, beside with mediated musical experiences, are part of what can be called industry of culture. Key words: popular music, samba, cultural industry

A indústria da cultura No mundo do samba, é comum ouvirmos que o gênero se posiciona à margem ou que é excluído da indústria da cultura. Esta afirmação se apóia em uma noção que classifica essa indústria como uma entidade monolítica formada por grandes empresas internacionais que atuam na área do entretenimento. De acordo com esta interpretação, os bens culturais disponibilizados por essas empresas seriam agentes de uma homogeneização alienante do gosto das massas, fazendo parte de uma engrenagem política e cultural cujo objetivo seria a formação de uma audiência a-crítica e despolitizada. Essa visão maniqueísta do processo de difusão de bens culturais através de empresas especializadas já foi bastante criticada por diversos autores, que procuraram, de formas variadas, demonstrar que a chamada indústria cultural é formada por um conjunto heterogêneo de empresas e pessoas que criam e distribuem produtos variados para grandes públicos 1. Nesse sentido, podemos entendê-la como um conjunto amplo de empresas, que engloba não só as grandes fábricas de discos e redes de comunicações, mas todo o complexo de empresas médias e pequenas que atuam de alguma forma no mercado de bens culturais. No caso da música, são gravadoras pequenas e grandes, casas de espetáculos, bares, emissoras de rádio AM e FM, públicas e privadas, canais de televisão, lojas de discos e todo um imenso conjunto extremamente variado de instâncias que fazem com que as músicas circulem em nossa sociedade e cheguem em nossos ouvidos. Essas empresas são concorrentes entre si e buscam a todo instante fornecer produtos culturais capazes de atingir o maior número possível de pessoas, dentro de sua estratégia de mercado. Grande parte de nossas experiências musicais cotidianas é atravessada de alguma forma por setores dessa indústria, pois é principalmente através dessas instâncias que temos acesso aos repertórios musicais disponíveis e com os quais interagimos. Através dessas experiências, utilizamos simbolicamente os elementos das músicas que ouvimos, formando nossas identidades e gostos. Duas formas de experiência musical: mediada e social De fato, a maior parte das músicas que circulam pelo mundo se tornam efetivamente experiências musicais a partir da mediação de veículos como o rádio, a televisão, os aparelhos reprodutores de áudio e, mais recentemente, a internet. A mediação exercida por esses meios se manifesta sobretudo nas políticas que norteiam as escolhas estéticas dos materiais a serem veiculados e disponibilizados para consumo. A operação de seleção representa uma legitimação conferida por essas empresas para aquelas músicas e autores eleitos para serem por elas distribuídos. Como toda escolha, essa seleção significa na prática uma restrição à circulação de outros produtos musicais não selecionados, o que envolve necessariamente um julgamento de valor emitido subliminarmente em favor dos produtos disponibilizados nos catálogos das gravadoras e nas programações de casas de espetáculos, rádios e emissoras de televisão. Sob esse ponto de vista, a indústria da cultura que atua no mercado de música pode ser definida como um conjunto de instâncias empresarias que realizam a seleção dos produtos musicais comercializados em 1 Refiro-me aqui especialmente aos trabalhos de Umberto Eco (1976), Paulo Puterman (1994), Everardo Rocha (1995) e José Osvaldo Lasmar (1998). http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 2

larga escala e utilizados nas experiências musicais mediadas por estes agentes. No entanto, nem todas as experiências musicais são diretamente submetidas a esse tipo de mediação/seleção. A música é acima de tudo uma prática cultural social e sua realização coletiva é de extrema importância para o compartilhamento das sensações e dos pensamentos expressos nos diversos repertórios. Sendo assim, podemos desviar nosso olhar para a direção do que podemos chamar de experiências musicais sociais, isto é, para os eventos sociais nos quais a música atua como agente de união e elemento agregador entre as pessoas. As experiências musicais sociais são momentos onde os repertórios musicais irão ser utilizados e interpretados coletivamente pelos freqüentadores na construção de seus gostos e identidades. É evidente que nesses eventos também há agentes que selecionam as músicas que serão tocadas e cantadas. A seleção é realizada através de uma disputa de poder entre esses agentes que são quase sempre os organizadores e líderes dos eventos. Nesse sentido, a escolha de determinadas peças dos repertórios disponíveis representa também uma legitimação por parte dos líderes dos eventos de músicas e autores. Assim como nas experiências musicais mediadas, o público dos eventos musicais responde a essa seleção e aos critérios de legitimação e consagração, interagindo em diferentes graus de influência com tais critérios. Ao selecionar materiais musicais para integrarem os repertórios desses eventos, os organizadores atuam também como agentes de um poder estético e simbólico, realizando julgamentos de valor com critérios próprios compartilhados (ou não) pelos freqüentadores. Nesse sentido, as experiências musicais sociais são instâncias que promovem a circulação de músicas pela sociedade, exercendo um papel de legitimação perante os repertórios utilizados nesses eventos. Fazem parte, portanto, do conjunto de instâncias que atuam na distribuição e comercialização da música enquanto produto: a indústria da cultura 2. A roda de samba e o grande show De acordo com o musicólogo Franco Fabbri, um gênero musical é um conjunto de eventos musicais (reais ou possíveis) cuja ocorrência é governada por um conjunto definido de regras aceitas socialmente (Fabbri, 1981:52) Cada gênero musical apresenta um conjunto de regras definidas por seus praticantes que condicionam o gênero e fazem com que ele seja reconhecido. Segundo o autor, as regras seguem determinações técnico-formais, sociais, comportamentais, econômicas, ideológicas estéticas e semióticas, atribuídas coletivamente por uma determinada comunidade musical (idem). Nesse sentido, os eventos nos quais as experiências musicais sociais irão ocorrer têm seu funcionamento estreitamente relacionado com as determinações ideológicas e estéticas de cada gênero musical. No universo simbólico e estético do samba, os principais eventos sociais nos quais os repertórios são cantados e compartilhados são as rodas de samba. 2 Segundo Pierre Bourdieu, o sistema de produção e circulação de bens simbólicos pode ser definido a partir das relações entre as diversas instâncias de legitimação que disputam entre si o direito de exercer a consagração de artistas e obras (Bourdieu, 2001:119). No caso do mercado musical, podemos entender que essa disputa se dá entre os vários níveis de mediadores industriais (gravadoras, rádios e televisões) e os produtores dos eventos sócio-musicais comerciais, onde ocorrem as experiências musicais sociais. 3 Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular

Em seu formato clássico, a roda se caracteriza por uma reunião de pessoas em torno de uma mesa de bar ou no quintal da casa de alguém, onde os músicos tocam canções do repertório. As rodas originalmente eram formadas e freqüentadas por parentes, vizinhos e amigos próximos, sendo esses laços familiares extremamente importantes no sentido comunitário desses eventos festivos e caseiros. Boa parte da atmosfera afetiva do samba, de seus valores, símbolos e ritos estão estreitamente associados à estrutura dessas rodas informais, essencialmente amadoras, que não apresentavam uma divisão hierárquica muito demarcada entre cantores e público. Com o passar dos anos, as rodas adotaram uma postura profissional, caracterizada principalmente pela cobrança de ingressos e pela ampliação do universo de freqüentadores, tendência que se consolidou nas últimas décadas 3. Nesta nova roda moderna, os músicos recebem cachê e o repertório tende a privilegiar canções consagradas e conhecidas de um público diversificado, o que envolve necessariamente uma relação mais estreita com as músicas veiculadas pelo rádio, televisão e comercializadas pela indústria fonográfica. Apesar desse movimento de profissionalização, os valores estéticos e simbólicos das rodas amadoras continua sendo importante para a construção da legitimidade de uma roda, lhe garantindo autenticidade e hereditariedade. Sendo assim, o estabelecimento de uma certa informalidade, aliado à reverência a autores e obras consagrados e a uma associação com um determinado passado histórico do gênero se tornaram importantes estratégias mercadológicas de valorização de uma roda de samba 4. A boa roda de samba é aquela que apresenta uma maior gama de elementos identificados com esse passado amador legítimo. Proliferam no Rio e cidades vizinhas dezenas de rodas de samba profissionalizadas. Dentre as mais freqüentadas e concorridas está a promovida pelo bar Candongueiro, em Niterói, que se tornou ponto de referência de um determinado tipo de samba extremamente preocupado com o estabelecimento dessa herança histórica, que ocupa atualmente um espaço periférico na indústria fonográfica. O Candongueiro é na verdade um grande fundo de quintal com telhado e diversas mesas espalhadas. As paredes estão repletas de desenhos de sambistas ligados às Escolas de Samba do Rio, detentores de grande legitimidade perante o público freqüentador. Na roda do Candongueiro 5, realizada quinzenalmente aos sábados, os músicos ficam posicionados em uma grande mesa bem ao centro do espaço e tocam virados uns para os outros, de costas para o público. Apesar da presença de aparelhagem de som um sinal da profissionalização a temporalidade do evento remonta a estrutura ritualística das rodas amadoras, se iniciando às 22 horas e sem hora 3 Carlos Sandroni observa que a passagem as rodas de espaços privados (como a casa da famosa Tia Ciata) para públicos, como os botequins e blocos carnavalescos, ocorrida por volta dos anos 20, permitiu ao samba um aumento em sua capacidade de circulação, processo acompanhado por várias transformações sócio-musicais que favoreceram sua mercantilização (Sandroni, 2001:144-155). 4 Em A Invenção das tradições, o historiador Eric Hobsbawn destaca que as tradições esclarecem de que forma as diferentes sociedades se relacionam com o passado, observando que, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com o passado histórico apropriado (Hobsbawn, 1997:9). 5 As informações sobre a roda de samba do Candongueiro foram obtidas através de diversas observações etnográficas realizadas em períodos diversos entre 1999 e março de 2004. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 4

para terminar, ininterruptamente animado pelos cantores e músicos do Grupo Candongueiro 6. Assim como em todas as rodas de samba, não há iluminação especial nem um repertório pré-definido e a qualidade do evento depende da interação dos freqüentadores através do canto coletivo e da animação da dança. No entanto, a roda de samba não é o único evento do gênero onde se pode vivenciar uma experiência musical social. No mercado das experiências musicais urbanas das noites de sábado, as rodas de samba com as do Candongueiro disputam público com outros eventos musicais como as festas públicas e privadas, boates e sobretudo com os shows de samba. Ao contrário da roda de samba, onde o componente imaginário das rodas amadoras é um elemento importante e continuamente atualizado, um show é uma apresentação musical altamente profissionalizada, caracterizada por uma divisão bem marcada entre palco e platéia, estruturado sob a forma de um espetáculo audiovisual. Na sua forma espetáculo, a experiência musical social exprime valores simbólicos e estéticos através de elementos cuidadosamente articulados: arranjos, iluminação, figurinos, recursos tecnológicos e cênicos dos mais diversos combinados em uma casa apropriada e com cobrança de ingressos na porta. Para Edgar Morin, é através dos espetáculos que os conteúdos imaginários da cultura de massas se manifestam com maior nitidez, registrando-se principalmente no lazer moderno (Morin, 1975:65). A forma show é uma manifestação espetacularizada de experiência musical social, centrado principalmente numa separação hierárquica bem definida entre público e o artista. O sucesso do espetáculo depende de uma boa coordenação dos diversos elementos durante o evento, estruturados de modo a estabelecer essa atmosfera afetiva mítica em torno da figura do artista. Depende também da capacidade comercial do artista e de seu grau de inserção no mercado musical. Os grandes shows considerados de alta qualidade são aqueles cujos protagonistas acumulam um cacife simbólico grande o suficiente para mobilizar um público amplo a partir de elementos estéticos reconhecidos pelos presentes. Por este motivo, são estreitamente relacionados aos principais lançamentos das maiores gravadoras em atividade no mercado fonográfico e às canções mais tocadas nas rádios e televisões. No Rio de Janeiro, uma das principais casas de shows de grande porte é o Canecão, em Botafogo, zona sul da cidade. O espaço tem uma entrada em separado para os artistas e músicos, que em momento nenhum descem do palco de quase dois metros de altura para o amplo salão da casa, ocupado com centenas de mesas. Os shows no Canecão são apresentados por uma voz em off, acompanhados de um suporte tecnológico de luz e som de alto nível e têm duração média de duas horas. Com cerca de 30 anos de existência e mais de 2000 lugares, o Canecão goza de um excelente prestígio junto ao público sendo normalmente ocupado por artistas com grande projeção midiática, bons vendedores de discos e autores e/ou intérpretes das músicas mais tocadas nas rádios e emissoras brasileiras de televisão. Até o início dos anos 90, poucos sambistas fizeram shows na prestigiada casa de Botafogo. No cenário musical atual, no entanto, o samba aparece muito bem 6 Alejandro Ulloa observa que a duração do evento, associada ao canto responsorial, à dança e à configuração espacial em forma de roda são características do que ele chamou de pagode ideal, um modelo de roda de samba que funciona como referência para esses eventos (Ulloa, 1998:143-144). 5 Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular

representado na programação do Canecão, bem articulado com os lançamentos da indústria fonográfica e com o repertório veiculado pelas rádios e televisões do país 7. Experiências musicais sociais na indústria da cultura Ao considerarmos a indústria da cultura como um conjunto de instâncias que fazem com que as músicas circulem pela sociedade e cheguem aos nossos ouvidos, construindo significados, gostos e identidades, os espaços onde as experiências musicais sociais ocorrem são parte fundamental nesse processo e devem ser entendidos como elos da grande engrenagem industrial do mercado musical. Assim como as rádios, emissoras de televisão e gravadoras, os responsáveis pela programação das casas de show e dos espaços destinados às rodas de samba realizam uma operação de seleção a partir de critérios subjetivos e nunca claramente declarados. É evidente que esta seleção é realizada de diversas formas dependendo do grau de alcance da casa e de sua projeção e capacidade de público. Canecão e Candongueiro têm status e estratégias de atração de público diferenciados, que se relacionam com o universo simbólico e estético aos quais cada uma das casas se filia. Enquanto a roda de samba do Candongueiro se apóia na venda da autenticidade e da herança cultural, reforçando elementos da informalidade das rodas de samba amadoras, o Canecão busca atrair público através da divulgação patrocinada pelas gravadoras, agregando o prestígio e a legitimidade histórica da casa de shows à mítica construída em torno da figura do artista de grande projeção. Apesar dessas diferenças, as duas casas fazem parte de um mesmo sistema de circulação de músicas na sociedade, se configurando como instâncias de legitimação para determinados grupos e práticas sociais. Em ambos os espaços, o gênero samba se afirma como experiência musical utilizada por diversos grupos sociais a partir de sua disponibilização nos variados setores da indústria da cultura. 7 No dia 14 de maio de 2004, a revista Rio Show do Jornal O Globo publicava uma propaganda paga da programação do Canecão e, entre os 4 artistas em destaque figuravam os sambistas Jorge Aragão (dia 21) e Alexandre Pires (de 28 a 30). A atração seguinte (3 de junho) seria da sambista Alcione. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 6

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bourdieu, Pierre. 2001. O Mercado de Bens Simbólicos En A economia das trocas simbólicas. Trad. Sergio Miceli, São Paulo: Ed. Perspectiva, pp. 99-181. Fabbri, Franco. 1981. A Theory of musical genres: two applications En Popular Music Perspectives. D. Horn e P. Tagg (eds.) Götenborg e Exeter: Internacional Association of Popular Music Studies, pp. 52-81. Hobsbawm, Eric. 1997. A invenção das tradições En A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 9-23. Lasmar, José Osvaldo Guimarães. 1998. Aspectos conceituais e metodológicos de uma abordagem econômica da indústria cultural En Economia da Cultura: reflexões sobre indústria cultural no Brasil. Brasília: MinC. Morin, Edgar. 1975. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Trad. Maura Ribeiro Sardinha. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. Puterman, Paulo. 1994. Indústria cultural: a agonia de um conceito. São Paulo: Perspectiva. Rocha, Everardo. 1995. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad. Sandroni, Carlos. 2001. Feitiço decente: transformações no samba 1917-1933. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. Ulloa, Alejandro. 1998. Pagode: a festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas. Rio de Janeiro: Multimais. 7 Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular