Réplica. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (319 p.) Wlamyra R.

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Réplica O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (319 p.) Wlamyra R. de Albuquerque Réplica Wlamyra Albuquerque 1 A cena é simples: diante de um tabuleiro de xadrez o observador busca aprender a lógica do jogo. Fixa-se no deslocamento das peças, na arrumação do traçado. Depois de algum tempo de grande concentração, sente-se plenamente ciente das regras e finalidades das jogadas e resume o que vê: a questão é o movimento que opõe as peças brancas e pretas. Contentando-se com a sua conclusão binária, o observador deixa escapar as minúcias, as expressões dos jogadores, a sutileza dos sinais, o movimento das mãos, as razões dos recuos e ofensivas, as distinções hierárquicas que distam o rei do peão. Desapontado, julga estar diante de um quadrado recortado, simétrico, bicolor e simples. É o que me ocorre depois de ler a resenha de meu livro, O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, assinada pelo professor Henrique Espada Lima, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ao longo de boa parte do seu texto, o autor esmiúça o objeto e o encadeamento narrativo de cada capítulo. Leitor engajado, busca seguir, página a página, a lógica do jogo, mas deixa escapar seu ziguezague. Daí concluir, frustrado, que o livro acaba por não atender à altura as expectativas, que ele mesmo cria, por uma análise que aborde esse quadro [a centralidade da experiência dos afrodescendentes, o racismo e a desigualdade] em sua autên- Nº 7, Ano 5, 2011 288

tica complexidade 2. A razão do desapontamento do resenhista fica então definida pela ausência no livro de uma análise que alcance a indecifrável autêntica complexidade 3. Depois de versar ao longo de dez parágrafos sobre as especificidades de O jogo da dissimulação, e avaliar que, de fato, o livro mapeia de modo inteligente alguns dos pontos fulcrais que estavam em jogo no contexto do fim da escravidão e seus imediatos desdobramentos, o autor declara que lhes foram reveladas as armadilhas em que se arrisca cair esse debate, quer seja; o de analisar-se um quadro altamente complexo, multifacetado e ambíguo, a partir de um conjunto de parâmetros simplificado e, muitas vezes, arbitrário 4. Mais quais seriam essas armadilhas? Onde e por que encubro com simplicidade a desejada e enigmática autêntica complexidade? Na pesquisa histórica, como num jogo, as armadilhas são tão inevitáveis quanto fascinantes. É instigante no nosso ofício reconhecê-las enquanto reviramos maços de documentos com os olhos presos a fragmentos que nos desafiam a inventar estratégias e recursos narrativos, capazes de compor uma história bem enredada. E, embora o resenhista não tenha produzido qualquer reflexão sobre fontes, bibliografia ou referências teóricas e metodológicas, disponho aqui de uma contente simplicidade para esboçar como enredei meu livro. Diante das armadilhas, seguindo o jogo O objeto do livro é a racialização das relações sociais no contexto emancipacionista e da abolição, tal como está dito na introdução 5. O argumento que alinha todos os capítulos é que, enquanto corria o processo emancipacionista, os políticos, os abolicionistas, a imprensa, a polícia e mesmo os cativos, libertos e negros nascidos livres manipulavam e mobilizavam formas de diferenciação e de pertencimento pautados em critérios sociorraciais. O que persigo, a partir da análise de quatro episódios cronologicamente dispostos, é como essas expressões de diferenciações e de pertencimento ganhavam evidência. Nem mais nem menos. Daí a importância do conceito de racialização, tomado de empréstimo de certa historiografia norte-americana 6. Ok, a historiografia norte-americana é uma armadilha. Quem entre nós não olha com desconfiança as categorias de análises fundadas nas interpretações de uma sociedade que teve o fim da escravidão marcado por uma guerra civil e pelo estabelecimento de fronteiras raciais tão explícitas, nada dissimuladas, estabelecidas em lei? Mas essa não é uma armadilha tão 289

perigosa, nem fascinante. Para escapar dela, imprimi ao texto a precaução prescrita por Barbara Fields de conferir historicidade ao conceito de raça, descartando-a como uma questão trans-histórica 7. Ou seja, raça não é um conceito atemporal, alheio à dinâmica histórica, aos contextos que lhes conferem significados específicos. O jogo da dissimulação foi construído a partir da análise de muitas fontes: notícias de jornais, relatórios policiais, correspondência particular, atas do Conselho de Estado, leis e resoluções, relatórios de presidentes da província, testamentos, diários, literatura, discursos, poemas... pinçados em pilhas de documentos guardados em diferentes arquivos e bibliotecas. Lidar com documentos de ordens, autores, finalidades e destinos diferentes é arapuca na qual o pesquisador se coloca, graças um tipo comum de voracidade por informação. Pelo menos é o que acontece com historiador habituado com arquivos. Para rastrear o processo de racialização, não vislumbrei outro caminho investigativo senão o de coletar e rearrumar recortes, ordenando com critério situações e personagens. O leitor igualmente criterioso notará sem maiores esforços que os capítulos guardam alguma autonomia entre si, sobretudo por reunir, cada um deles, conjunto mais ou menos singular de corpus documental. Daí, só para citar um exemplo, Nina Rodrigues não esbarra nas páginas do livro com o temido Macaco Beleza da Guarda Negra, embora habitassem o mesmo mundo 8. Não houve encruzilhada documental que favorecesse tal encontro. Também não é preciso que o leitor aguarde o final do livro para se dar conta desse artifício metodológico: sublinho logo na introdução que tentei elaborar um texto como quem monta um mosaico 9. Mesmo quando contei com documentação seriada, lancei mão de algumas precauções no trato das informações. É o caso da análise dos registros policiais do período. São dúzias de maços, às vezes encadernados em livros preenchidos rotineiramente; noutras, folhas soltas, com registro de correspondências entre o chefe de polícia, delegados e subdelegados. Esses registros versam sobre ocorrências em diferentes localidades da província da Bahia, e também instruções por meio das quais se buscava uniformizar procedimentos. Trata-se de documentação que dá pistas sobre a crescente preocupação das autoridades policiais com o crescimento da população de libertos, ao longo da década de 1870 e 1880 e, depois de maio de 1888, com o comportamento dessa população. A polícia baiana, tão habituada à inquietação própria a sociedades escravistas, se viu entre a indecisão, a previdência e o alarde nos dias de festa e conflito, por conta da abolição. Não havia qualquer plano previa- Nº 7, Ano 5, 2011 290

mente engendrado para lidar com a nova situação social. Por isso as idas e vindas de ofícios e telegramas para tentar esclarecer para subdelegados e delegados o que fazer diante do fim da escravidão. Para decidir entre tolerar, negociar e reprimir, a polícia delimitava espaços de liberdade daqueles que ocupavam as ruas, reivindicavam posses, tocavam tambores e sambavam durante a madrugada. A classe dos transgressores e perigosos parecia-lhe, subitamente, alargada. Houve quem desacreditasse desse clima de medo. Se o leitor estiver disposto a compreender o quanto o contexto foi multifacetado pode conhecer, por exemplo, o delegado Francisco Antônio de Castro, que a despeito do temor reinante, julgava ser previsível e mesmo natural que ocorressem abusos da liberdade nos primeiros tempos da abolição 10. O capítulo 2 está pontuado pela sinuosidade das ações policiais concebidas a partir das formas de controle e tolerância herdadas do mundo escravista, mas também da movimentação de ex-senhores e ex-cativos, bem como das incertezas sobre os significados da liberdade. Tal documentação guarda outra armadilha, também previsível e contornável, para quem se guia pela bússola da história social. Incitar o medo nos dias do colapso do escravismo também podia ser artifício de subdelegados dispostos a angariar mais reforços em armas e homens, com o fim de favorecer grupos políticos e ganhar prestígio regional. Diante desse tabuleiro de infindáveis possibilidades preferi me concentrar no que de fato interessava para o argumento do livro, quer seja, se eram consideradas plausíveis as queixas e inseguranças das autoridades policiais e administrativas. Isso quer dizer que não parti para apurar até que ponto todas as denúncias de desordens provocadas pelos emancipados tinham fundamento. Tampouco contabilizei quantos homens e mulheres de cor trezes de maio ou não atentaram contra a vida dos seus ex-senhores brancos ou não. O fundamento que importava para minha tese era o da legitimidade daquele discurso que creditava qualquer exaltação popular ao fim da escravidão, ao desmantelo da ordem sustentada nas relações de subalternidade dadas pelas condições de escravo e senhor. Ao mesmo tempo, prestei atenção ao clima de incerteza, de indefinição sobre o que deveria ser permitido, sobre o quanto de liberdade estava em negociação. E nos negócios, como no jogo, há disputas que, se vistas de fora, por quem as observa sem familiaridade com o que vê, são capturadas apenas como antagonismo bicolor ou birracial, para melhor agradar ao resenhista. Na análise que empreendi, surge uma sociedade bem mais matizada. 291

No livro há uma profusão de expressões para se referir à condição racial. Termos como gente de cor, pessoa de cor, negro, branco, raça emancipada, raça emancipadora, emancipados e trezes de maio proliferam e nem sempre são apresentados como sinônimo. Interpretar os sentidos dessas expressões para diferentes indivíduos e situações me pareceu a melhor maneira de entender o vocabulário da época. Mas, certamente, não dei conta de decifrar todos eles. Não faço uso do termo afrodescendente, justamente porque ele não pertence ao contexto emancipacionista e do pós-abolição. É também por estar ciente das especificidades daquele contexto que adoto racialização como categoria de análise. Racialização traduz raça como noção em construção, a mercê de circunstâncias e propósitos políticos diversos, que podem ser ou não antagônicos. Na perspectiva que proponho, o termo é peça chave 11. Enquanto raça soa como ideia elaborada em circuitos científicos, racializar dizia respeito a concepções postas em movimento no dia a dia das decisões administrativas, das páginas dos jornais, da agenda abolicionista, dos estatutos dos principais clubes carnavalescos da Bahia da época. Racialização e racismo não são apresentados no Jogo de dissimulação como sinônimos. No período que investiguei, a população negra também forjou identidades a partir de um discurso racial. É o que evidencio no último capítulo do livro sobre clubes carnavalescos repletos de gente de cor, brasileira, que, publicamente, se dizia africana. O racismo, entretanto, é a face nociva da racialização. Em diversas sociedades dispersas no tempo e no espaço, racializa-se para referendar ou constituir hierarquias, para assegurar poder e prestígio para determinados indivíduos e grupos. Nesse sentido, o Brasil emancipacionista é o mesmo que tenta preservar a senhorialidade dos antigos proprietários de escravos, recriando distinções entre os brancos e a população de cor. Assim, o que me interessou foi como aquela sociedade convulsionada por graves mudanças políticas e culturais preencheu o conceito de raça com significados próprios, trazidos à baila em diferentes ocasiões. Daí o livro ser dividido em capítulos nos quais personagens e situações diferentes se sucedem. Em 1877, poucos anos depois da Lei do Ventre Livre, para evitar que africanos e negros norte-americanos se instalassem no Brasil, o Conselho de Estado se envolveu em muitas peripécias jurídicas e políticas. A inexistência de legislação discriminatória no país era tão festejada quando ignorada pelos juristas. Para personalidades como Joaquim Nabuco, no Brasil, a escravidão ainda que fundada sobre a diferença das raças, nunca desenvolveu a prevenção de cor, e nisso foi infinitamente mais hábil 12. Nº 7, Ano 5, 2011 292

Era o cambaleante Estado imperial, por meio da sua elite política, a deixar escapar o quanto suas decisões não prescindiam de reflexões sobre a preponderância da raça africana no Brasil. Essa posição não foi unânime, nem dentro nem fora da elite. Um exemplo de dissonância foi John Morgan. Tratava-se do cônsul inglês que se pôs na defesa dos súditos ingleses de cor preta que queriam negociar na Bahia. É verdade que suas ponderações foram de pouca serventia, pois o Conselho de Estado decidiu pela deportação desses comerciantes. Na insistência pela necessidade da deportação, os conselheiros se detiveram na categoria de raça de cor preta, formada por africanos cativos e libertos ou quaisquer negros estrangeiros, mesmo os nascidos livres. Ah, o abolicionismo! Eis o velho tema, sempre renovado. Os abolicionistas ocupam boa parte dos capítulos 2 e 3 por duas razões. Primeiro para reiterar algo já dito por outros autores: havia muitos personagens, propósitos e estratégias políticas em jogo 13. Muita coisa estava na berlinda. A crise da monarquia era evidente, a elite bacharelesca tentava se impor e a imprensa abolicionista se constituía como bom espaço para projeção de novas lideranças. Romantismo à parte, não cabe mais resguardar os abolicionistas de seus próprios interesses políticos, de suas próprias opiniões sobre cidadania e o lugar dos egressos da escravidão. A outra razão para tratar dos abolicionistas diz respeito mais diretamente ao argumento do livro. Se ponho na mesma mesa Rui Barbosa e o visconde de Paraguassu, o amargurado ex-senhor de escravos do Recôncavo baiano, é para evidenciar que ambos, sujeitos politicamente tão afastados, compartilhavam das regras do jogo e do idioma vigente no pós-abolição. Considero, portanto, que as interpretações então em voga sobre o passado escravista e o futuro nacional estavam permeadas por concepções de raça. O leitor da historiografia sobre o tema sabe que não sou pioneira nesta assertiva. Mariza Corrêa, por exemplo, ao se referir à geração de 1870, da qual Rui Barbosa foi expoente, considera que antes de ser pensada em termos de cultura ou em termos econômicos, a nação foi pensada em termos de raça 14. E Sidney Chalhoub, em Cidade febril, concluiu que a política de controle da febre amarela e outras doenças e a formação do ideal de embranquecimento devem ser vistas como partes integrantes desse processo histórico que estava reconstruindo as relações de trabalho no país 15. Pois é, Rui Barbosa também tinha seu correspondente desavisado. É obvio que ele e o visconde missivista nutriam opiniões bem distintas sobre o futuro nacional e o que fazer com a população de cor, e 293

apenas repito o que já escrevi, mas que o resenhista preferiu ignorar: as preocupações de Rui Barbosa e do visconde de Paraguassu apontavam para direções opostas. [...] E por certo, ao contrário do visconde, a triste política de segregação racial então vigente nos Estados Unidos em nada agradava a [Rui Barbosa] 16. Simplório é julgar ter lido no meu livro que ambos eram igualmente racistas dissimulados. Rui Barbosa, por sinal, ocupa com muita propriedade as páginas do terceiro capítulo, no qual uso como mote a rivalidade entre os monarquistas da Guarda Negra e os republicanos da escola de medicina da Bahia. Em meio à defesa da causa republicana, o famoso jurista protagonizou uma ferrenha campanha contra a Guarda Negra. Visando descredenciá-la para o debate sobre os encaminhamentos da política, Rui lançou mão de vários argumentos. O principal deles era que os emancipados agiam movidos por uma gratidão indevida à princesa Isabel, própria à subserviência escrava que herdaram. Lamento mais uma vez me repetir, mas como não me fiz entender da primeira vez: obviamente republicanos e monarquistas não foram partidos demarcados com tamanha rigidez sociorracial. Havia brancos apoiando a monarquia e gente de cor descontente com a condição de súditos 17. O que exploro no conflito do Taboão como ficou conhecido um dos confrontos entre monarquistas e republicanos na Bahia é como partidarismos políticos são vistos como posicionamentos dados por condições sociorraciais. A guarda se diz negra, os estudantes declaram horror ao suarento capadócio do porto e Rui Barbosa lamenta pelos bárbaros corações iludidos. Assim, eles trazem para o campo das suas divergências o critério racial. Na abordagem que busco, é o que importa. Nesse sentido está fora do meu horizonte um quadro em que brancos e pretos ocupam posições predeterminadas, com interesses e agendas igualmente homogêneas 18. Não tenho a menor dúvida, entretanto, de que os sujeitos históricos agem a partir das experiências dadas por sua condição racial, de gênero, de classe e de tantas outras formas de pertencimento e diferenciação que as sociedades têm reinventado. Por isso, a atenção de Rui à prevenção de ódios raciais no pós-abolição só faz sentido se o percebemos como importante político liberal, branco, com poucas posses, abolicionista pertinente, que viveu em Salvador e no Rio de Janeiro, duas cidades densamente povoadas por gente de cor. Nem malfeitor, nem herói. A sua posição social, racial e política não o impediu de partilhar com Manoel Querino, jornalista mulato, a militância abolicionista e republicana. Tampouco tal partilha encobriu as suas divergências sobre a quem cabia civilizar o país. Ambos se fizeram Nº 7, Ano 5, 2011 294

politicamente sob as barbas do conselheiro Dantas, principal liderança liberal baiana no Segundo Reinado. Viveram os impasses da desarticulação da escravidão e da sociedade imperial e tomaram caminhos próprios depois da abolição. Rui assumiu papel de destaque na política nacional, mesmo quando esteve na oposição. Não tenho dúvidas de que, assim como sua trajetória abolicionista, a competência como jurista e a habilidade política, o lugar sociorracial por ele ocupado contou na sua trajetória na sociedade republicana. Infelizmente, no tempo de Rui (como no nosso) a condição racial, seja ela definida pela cor da pele ou qualquer outro atributo fenotípico e/ou cultural, não era algo acessório. Manoel Querino, embora não tenha se afastado das disputas partidárias, passou a se dedicar a pesquisas sobre a cultura africana na Bahia. Seguindo as investigações de Querino, não pude deixar de prestar atenção à sua interlocução com Nina Rodrigues, o importante médico mulato e maranhense. Pois é, o talentoso jornalista debateu com o talentoso cientista, nem um pouco desavisado, familiarizado sobre o assunto em pauta. Eles estavam às voltas com a mesma questão: a importância das heranças africanas para a sociedade brasileira. Na perseguição sistemática às suas respostas, os dois mulatos esboçaram seus conceitos sobre raça. O de Querino contraria a lógica classificatória que punha a raça branca no topo da pirâmide. A raça por ele exaltada é a africana de origem nagô, com poderes civilizatórios e reinos imponentes, guiados por orixás que ganhavam espaço nas rodas de candomblé e na crônica policial. Por fim, o resenhista supõe ter descoberto a intenção por trás do argumento do livro: sensibilizar politicamente os leitores em relação à denuncia ao racismo. Ora, denunciar o racismo num país onde ainda se teme enfrentá-lo não é tarefa menor, mas em O jogo da dissimulação pretendo e realizo um tanto mais. Por isso, com a simplicidade que me cabe, convido os leitores a lê-lo e tirar as suas próprias conclusões. NOTAS 1 Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora de O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 2 LIMA, Henrique Espada, Resenha de O jogo da dissimulação, Perseu: História, Memória e Política, São Paulo, n. 4, dez. 2009, p. 247-253. 3 Ibidem, p. 253. 4 Ibidem, p. 251. 295

5 ALBUQUERQUE, W., O jogo da dissimulação, op. cit., p. 37-8. 6 As principais referências dessa historiografia foram: SCOTT, Rebecca, Comparing Emancipations a Review Essay, Journal of Social History, n. 20, 1887, p. 565-583; Defining the Boundaries of Freedom in the World of Cane Cuba, Brazil and Louisiana After Emancipation. In American Historical Review, v. 99, n. 1, 1994, p. 70-102; COOPER, Frederick; HOLT, Thomaz; SCOTT, Rebecca, Beyond Slavery: Exploration of Race, Labour and Citizenship in Post Emancipation Societies. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2000; FIELDS, Barbara, Ideology and Race in American History. In Region, Race and Reconstruction. Nova York: Oxford University Press, 1982. 7 ALBUQUERQUE, W., op. cit., p. 35. 8 A Guarda Negra reuniu libertos partidários da ideia do terceiro reinado no Brasil. Sobre a criação e ações da Guarda Negra no Rio de Janeiro ver GOMES, Flávio dos Santos, No meio das águas turvas: racismo e cidadania no alvorecer da República a Guarda Negra na Corte (1888-1889). In Estudos Afro-Asiáticos, n. 21, 1991; SOARES, Carlos Eugênio Líbano, A negregada instituição: os capoeiras na Corte imperial (1850-90). Rio de Janeiro: Acesss, 1999; SCHWARCZ, Lilia M., As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 447-453. 9 Idem, p. 43. 10 Ibidem, p. 107. 11 Para conhecer pesquisas recentes que discutem os conceitos de raça e racialização ver: LARA, Sílvia Hunold, Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; VIANA, Larissa, O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Unicamp, 2007; CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-abolição. Rio de Janeiro: FGV, 2007; e MATTOS, Hebe Maria, Racialização e cidadania no Império do Brasil, In CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia Maria (orgs.), Repensando o Brasil dos oitocentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 12 ALBUQUERQUE, W., op. cit., p. 73. 13 Ver, entre outros: MACHADO, Maria Helena, O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Uerj, 1994; AZEVEDO, Elciene, Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Unicamp, 1999; AZEVEDO, Célia Maria Marinho de, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada. São Paulo: Annablume, 2003. Nº 7, Ano 5, 2011 296

14 CORREA, Mariza, As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Universidade de São Francisco, 2001, p. 41. 15 CHALHOUB, Sidney, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 96. 16 ALBUQUERQUE, W., op. cit., p. 193. 17 Ibidem, p. 147. 18 LIMA, H. E., Resenha, op. cit., p. 251. 297