representações sociais em torno da questão e as trajetórias históricas percorridas pelo proteção social da infância e adolescência.

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1.1 Linhas de pesquisa correntes sobre o tema do estudo

Transcrição:

16 INTRODUÇÃO Esta tese origina-se dos trabalhos, estudos e pesquisas nas áreas da infância e adolescência, da prática docente e do comprometimento com as questões sociais que possibilitaram que o olhar sobre a produção da subjetividade referente à violência intrafamiliar contra criança e adolescente fosse desenvolvido de forma a perceber a complexidade do processo que envolve estes fatos. O objeto deste estudo é a análise da construção sócio-histórica da violência contra criança e adolescente no seio da familia, e como esta foi engendrada no contexto brasileiro. O objetivo é analisar a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes em suas intercorrências, partindo das categorias negligência, abusos físicos, psicológicos e sexuais, exploração e abandono de modo que se possa compreender o fenômeno em sua concretude. Não buscamos somente retratar brevemente a trajetória histórico-familiar-social da infância e juventude no Brasil destacando, principalmente, o caminho que vem sendo percorrido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, como também criar condições para a percepção da realidade da forma mais abrangente possível. Mais do que dar visibilidade a estas questões objetivamos compreender a violência intrafamiliar em sua plenitude e, mais do que tudo, destacar seu impacto avassalador nas crianças e adolescentes tanto em termos objetivos quanto subjetivos. A violência intrafamiliar está implicada e transversalizada por outras questões, como as políticas sociais, as práticas e a proteção social. Os órgãos de atendimentos a criança e adolescente são destacados como relevantes neste processo e, especificamente, o Conselho Tutelar, por considerarmos que é uma das grandes inovações do Estatuto, e por ter sido o espaço prioritário de nossa pesquisa de campo. Procuramos trabalhar nosso objeto de estudo desdobrando-o esquematicamente em três aspectos principais. O primeiro deles refere-se à violência e vulnerabilidade social e à violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, identificando como se processam estes fenômenos em nossa sociedade. Desse modo foram resgatadas as concepções que fundamentam as

17 representações sociais em torno da questão e as trajetórias históricas percorridas pelo proteção social da infância e adolescência. O segundo aspecto diz respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Conselho Tutelar e às ações e práticas de proteção social que fundamentam as intervenções junto à infância e adolescência vitimizadas pela violência. As políticas sociais e a proteção social são fatores indissociáveis enquanto fundamento para as análises que buscamos desenvolver. O último aspecto, de certa forma, complementa os anteriores: trata da identificação dos atendimentos no Conselho Tutelar, enquanto órgão centralizador de denúncia e notificações, acerca de crianças e adolescentes vítimas da violência intrafamiliar, bem como da representação em torno da família, que se torna alvo de interferências externas, uma vez que os possíveis abusos não se restringem ao interior da casa. O abuso intrafamiliar está circundado por estruturas sociais, políticas, econômicas e ideológicas, que exercem influências nem sempre imediatas e perceptíveis. A reflexão sobre o contexto histórico e a trajetória da proteção social levou-nos a considerar as práticas, as inter-relações e as articulações existentes entre os mesmos. A violência intrafamiliar que atinge crianças e adolescentes há que ser analisada sob vários ângulos, como a origem sócio-econômica dessas crianças; o relacionamento da criança e do adolescente junto à família e/ou ao seu grupo de pertencimento; e o processo de construção de sua identidade. Pode-se seguir arrolando inúmeras variáveis possíveis de serem estudadas, mas o objetivo foi enfocar a violência intrafamiliar e as representações sociais contidas neste contexto, enfatizando o caráter relacional de produção e construção das relações travadas no interior das famílias, com a preocupação de não criminalizá-las. Nesta tese, tendo a ser enfática na necessidade de compromisso social e coletivo com a questão e em defesa da criança e do adolescente. Neste sentido, também procuramos privilegiar o processo das inter-relações e do intercâmbio entre as ações de proteção social, avaliando como estão se desenvolvendo as práticas, as políticas sociais e a legislação pertinente, engendradas em torno da criança e do adolescente. Gonçalves (2003) chama atenção para o risco das ações de intervenção junto à família, à criança e ao adolescente tornarem-se ações de controle e interferência:

18 "...a falta de parâmetros seguros para iniciar um processo de intervenção na dinâmica da família, e a ausência de indicadores sobre a eficácia dessa intervenção, terminam por justificar o que quer se faça em nome do bemestar da criança. Tais programas colocam para a família o risco de ser invadida por ações que não se sabe porque começaram, não têm garantias de eficácia e não se sabe como e por que parar. A verdade transitória e a discordância dominante neste terreno não impedem, contudo, que leis continuem a ser promulgadas, que famílias sejam separadas, e que se viva hoje sob a égide de uma intervenção que pode ser tão prejudicial e violenta quanto o ato que a gerou. Crianças de tenra idade são acusadas de assédio sexual em razão de um beijo na face de um amigo. Famílias sofrem o efeito devastador da suspeita de incesto cometido pela figura paterna. Exageros gerados por um saber incipiente, mas que ainda assim promove efeitos sociais concretos." (GONÇALVES, 2003: 138) Um olhar diferenciado sobre a construção da violência intrafamiliar vem ao encontro da proposta do próprio Estatuto, que a par da garantia de proteção integral, inclui a família, a comunidade e a sociedade em geral no processo de resgate do direito à cidadania para a infância e juventude. Neste sentido, o contexto da pesquisa desenvolvida, ao escolher como cenário o Conselho Tutelar, reafirma a importância da participação da sociedade civil organizada. Nesse órgão consolidam-se as ações propostas no ECA, uma vez que sua atribuição precípua é a de zelar pelos direitos da criança e do adolescente. O Conselho Tutelar concretiza com agilidade a proteção social, na medida em que representa a ação municipal capaz de incidir sobre casos individuais. Devido à centralidade do Conselho Tutelar para a questão em pauta, o mesmo foi escolhido como cenário da nossa pesquisa de campo. Procuramos identificar como vêm ocorrendo os atendimentos prestados, particularmente no que se refere a crianças e adolescentes vítimas da violência intrafamiliar. Enfatizamos, porém, o caráter relacional de produção e construção das relações travadas no interior institucional, processo construído historicamente, com representações, interpretações, contextualizações e recepções reificadas pela estrutura social. Porém, consideramos que esta compreensão deve ser vista da forma mais global possível, afastando suas formas deterministas de análise, pois as diversas configurações inerentes a estas produções apresentam em seu interior contraditoriedades que compõem um quadro bastante amplo de análise. O desvelamento das práticas sociais constitui uma das formas de materializar os vários processos de intervenção no cotidiano institucional. A reflexão sobre estas ações possibilita novas construções nas práticas

19 institucionais e contribui para o fortalecimento das conquistas sociais em termos de políticas sociais voltadas à infância e à juventude. A possibilidade de contribuir, em nível acadêmico, com a discussão da violência intrafamiliar é um compromisso ético-político de construção e produção do conhecimento. Segundo Foucault (1999), para se conhecer a constituição de determinado contexto é preciso analisar as condições de formação e modificação das relações do sujeito que conhece, para com o objeto conhecido, analisar os modos de subjetivação e objetivação em que se colocaram o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido, assegurando que novos domínios de saber são construídos pelas práticas sociais. A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes em nossa sociedade exige, para sua análise e para seu enfrentamento, um constante comprometimento ético, o envolvimento com a questão dos direitos humanos e sociais da criança e do adolescente. Exige que seja "vista para além dos sentidos que as representações já cristalizaram, única forma de realizar uma descrição dos objetos livre dos fantasmas da linguagem, sempre tendo em conta que todo objeto é correlato a uma prática, e, portanto, nunca se deixa traduzir em ideologias ou grandes noções" (GONÇALVES, 2003). A violência intrafamiliar contra criança e adolescente foi abordada não como um fenômeno isolado, mas de forma contextualizada, com ênfase em algumas questões que consideramos primordiais para a compreensão do tema, tais como: a trajetória histórica das políticas e práticas de proteção social; a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a implementação do I Conselho Tutelar de Niterói e da Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói, a discussão da família na contemporaneidade e as concepções de violência social e intrafamiliar, bem como as diversas tipologias de abuso. Para tratarmos destas questões, nosso trabalho se distribui em três capítulos. No capítulo 1 apresentamos um quadro da realidade de violação dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros, percebidos pela violência intrafamiliar e de forma mais geral pelo contexto de desigualdade sócio-econômica que caracteriza a questão social no Brasil hoje, como fatores principais de geração das situações de violência e de vulnerabilidade social. A violência social e a vulnerabilidade que

20 são imputadas principalmente as camadas mais pobres da sociedade repercutem de forma mais perversa para a infância e juventude, como é demonstrado pelos índices e indicadores sociais apresentados. A realidade vivida por grandes segmentos da população infanto-juvenil vincula-se ao conjunto de condições estruturais e conjunturais que compõe as bases concretas das garantias de seus direitos, nem sempre assegurados. Procuramos, também, buscar uma aproximação teórica sobre alguns dos principais conceitos inerentes à violação dos direitos da criança e do adolescente e que compõem o núcleo central deste estudo. São eles: a violência intrafamiliar contra criança e adolescente, suas intercorrências e suas manifestações como o abuso sexual e exploração; o abuso fisico; o abuso psicológico; a negligência; o abandono. Destacam-se também nesta conceituação os processos de vitimização e de vitimação; a solidariedade; a resiliência; a denúncias e a notificação. As questões referentes ao protagonismo da família, seus diversos arranjos e a relação cada vez mais complexa entre o público e o privado enquanto agentes de proteção social são vistas neste capítulo, que abarca a análise das políticas sociais e sua implicação e entrelaçamento nas diferentes dimensões da sociedade civil, em suas estratégias e práticas, com destaque para as alternativas oriundas das redes sociais. No capítulo 2 procurei fazer um apanhado histórico das políticas e das práticas no que diz respeito à infância no Brasil, mais especificamente as que dizem respeito ao enfrentamento da violência intrafamiliar. Alguns dos importantes marcos históricos do século XX, como os tratados, as convenções, as declarações, os relatórios e as pesquisas, foram ressaltados como forma também de contextualizar estas políticas e práticas de proteção social à criança e adolescente. Assim quando apresentamos um panorama representativo do contexto de violência, das práticas e das políticas de proteção social no Brasil, podemos perceber a lógica historicamente construída entre diversos elementos que se encontram implicados neste processo. Desta forma pode-se observar o entrelaçamento entre os sujeitos, as estratégias, as práticas concretas e as políticas para a infância e adolescência. Ao resgatar algumas das trajetórias das políticas e práticas de proteção social voltadas para crianças e adolescentes no Brasil, desde o período colonial, procuramos retratar tal trajetória apresentando-a em suas múltiplas configurações, que a definem e redefinem como um todo complexo e contraditório, considerando que tais

21 conformações podem estar de acordo com representações que fundamentam os diversos conceitos de infância, de violência e de proteção social em cada contexto. Em termos gerais, a mudança societária, que implicou na construção desta nova legislação, caracterizou-se como um contexto ímpar em nossa sociedade, que origina um Estatuto que altera substancialmente os paradigmas adotados até então, consolidando as propostas de normativas internacionais no que tange os direitos da criança. Assim, ao discutirmos o Estatuto da Criança e do Adolescente, procuramos não nos fixar no debate que se centra em sua afirmação ou em sua negação, mas apresentá-lo como resultante de um processo histórico que fundamenta novos paradigmas sem, contudo, esquecer que a legislação por si só não altera o ordenamento social, e que as mudanças paradigmáticas exigem outras tantas transformações societárias. A criação de Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e de Conselhos Tutelares em todos os municípios foi a forma de garantir a viabilidade de implantação do ECA e a participação da população através de representação do movimento social organizado. Abusos intrafamiliares contra crianças e adolescentes nem sempre são denunciados e notificados; e o Estatuto ainda não está totalmente implementado. Isso não quer dizer que esses fatos não ocorram. O terceiro capítulo trata também deste aspecto, procurando situar o contexto territorial do município de Niterói e de seu I Conselho Tutelar. A correlação de forças entre distintas representações e papéis assumido em relação a criança e adolescente têm-se configurado em diversas matizes, seja pelo caráter contraditório seja por sua complexidade, assim como pelo entrelaçamento das dimensões pública e privada da realidade social. As condições objetivas para que determinadas estratégias e práticas aconteçam são objeto de nossa investigação e fazem-se presentes em muitos dos relatos apresentados neste capítulo, que mereceram um tratamento especial. Um Banco de Dados foi especialmente elaborado para possibilitar a análise quantitativa e qualitativa da pesquisa de campo detalhada na metodologia explicitada neste capítulo. Ao identificar empiricamente as condições presentes nas situações abusivas, de acordo com o contexto em que ocorrem, foi possível tratar destes fatos de forma mais realista. A partir do conhecimento desta realidade, implicada por suas dimensões prática, discursiva, simbólica, objetiva e subjetiva, pode se construir embasamentos para um conhecimento crítico.

22 Neste sentido, nossa expectativa é de que esta produção acadêmica possa contribuir para o contínuo fortalecimento da sociedade civil organizada e a consolidação dos direitos das crianças e adolescentes.