A Norma Penal em Branco e a Abolitio Criminis.



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Transcrição:

A Norma Penal em Branco e a Abolitio Criminis. Gabriel Habib(*) 1. Introdução e conceito. 2. Classificação da norma penal em branco. 3. Norma penal em branco e abolitio criminis. 4. Conclusão. 1. Introdução e conceito. As normas penais em branco (Blankettstrafgesetz) surgiram na Alemanha na época imperial, para que leis nacionais, naquela época, pudessem ser complementadas pelas províncias lá existentes. A denominação norma penal em branco deve ser creditada a Binding, que dizia que a lei penal em branco é um corpo errante em busca de sua alma. Entretanto, tal denominação não era pacífica na dogmática alemã, sendo repudiada por alguns autores, a exemplo de Mezger, que as denominava tipos em branco, a nosso ver, com razão, conforme se demonstrará. Com efeito, já é sabido de todos que há diversas diferenças entre as noções de lei e norma, tornando-os institutos absolutamente inconfundíveis. Isso porque em todo lugar em que haja uma coletividade convivendo, deve haver normas de conduta que são de criação exclusiva do legislador. Entretanto, após a elaboração das mesmas, o legislador precisa de um veículo para levá-las até a coletividade, dando à mesma a maior publicidade possível para que seja de todos conhecida. Esse veículo é a lei. Dessa forma, a lei nada mais é do que o instrumento formal do qual o legislador se utiliza para levar as normas de conduta por ele criadas até a coletividade. Em outras palavras, a lei é o veículo formal da norma. 1

Norma, portanto, é o conteúdo de lei. Norma é aquilo que se retira da lei; é o modelo de conduta previsto na lei. Em outras palavras, é o como as pessoas devem agir. Note-se que de um mesmo dispositivo legal podem ser retiradas diversas normas. Basta pensar, por exemplo, no tipo legal do crime de furto. Dispõe o art. 155 do Código Penal: Subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel. Vejamos, então, quantas e quais normas podem ser retiradas desse único dispositivo. Primeira norma: subtrair significa retirar sem o consentimento do proprietário ou possuidor da coisa. Assim, se o proprietário ou possuidor da coisa consentir na subtração não se poderá falar na prática de crime de furto. Segunda norma: a coisa deve ser alheia, isto é, deve pertencer a alguém, o que significa afirmar que a coisa perdida (res desperdita) e a coisa de ninguém (res nullius) não podem ser objetos do crime de furto, uma vez que não pertencem a alguém, não sendo, portanto, alheias. Terceira norma: o agente deve subtrair para si ou para outrem. Isso significa que o agente deve subtrair a coisa alheia móvel com intenção de assenhoramento definitivo, com a intenção de se tornar proprietário da mesma, o que a doutrina denomina de animus rem sibi habendi. Assim, chega-se a conclusão de que não existe crime de furto de uso, de modo que se, por exemplo, Pedro subtrai o automóvel de Antonio para ir à sua casa buscar um documento que esqueceu e depois o devolve sem que Antonio perceba, não se fala em crime de furto, configurando somente um ilícito civil que irá gerar o dever de indenizar as perdas causadas, como o combustível consumido. Quarta norma: a coisa subtraída deve ser móvel, possibilitando o seu deslocamento por parte do agente. Com isso a norma quer dizer que não é possível furto de coisa imóvel. Isso resolve aquela antiga discussão, a nosso ver, sem a menor lógica, se avião e navio poderiam ser objetos de furto. A discussão é completamente vazia de conteúdo e despropositada. Com efeito, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: avião e navio se movem? Podem ser deslocados de um local para outro? Se a resposta for (e só pode ser mesmo!) positiva, está resolvida a questão. São móveis e podem, portanto, 2

perfeitamente ser objetos do crime de furto. Pensar diferente é desconhecer que avião voa e navio navega de um lugar para outro. Vimos, portanto, que de um mesmo dispositivo legal, o art. 155 do Código Penal, podem ser retiradas várias normas, ficando destacada, de forma clara a todas as luzes, a distinção entre lei e norma. Por todo o exposto, na lei penal em branco, preferimos a nomenclatura tipo penal em branco, uma vez não é a norma que é em branco, mas sim o dispositivo legal, que no Direito Penal é denominado tipo penal. Portanto, do ponto de vista dogmático, pensamos ser mais técnico utilizar a expressão tipos penais em branco, como prefere Mezger. A norma penal em branco é aquela que não é completa, exaustiva em si mesma, precisando, portanto, ser complementada por outra norma de natureza penal ou extrapenal para que se dê a plena compreensão dos elementos do tipo legal de crime. Em outras palavras, olhando para o tipo penal, não se consegue compreender o significado e o alcance elementos descritos no seu preceito primário. Registre-se que a norma penal em branco não é um esquecimento do legislador em regular a matéria de forma exaustiva no preceito primário do tipo penal. Na verdade, o legislador o faz de forma propositada. E o faz porque existem matérias que estão sempre em constante mutação, merecendo uma rápida regulamentação estatal, porque são influenciados por fatores que variam no tempo, não podendo aguardar todas as demoradas fases do processo legislativo. São exemplos dessas matérias: o combate ao tráfico de drogas (na medida em que de tempos em tempos descobre-se uma droga nova que tenta ingressar no país), para ser consumida, fazendo os jovens se perderem na vida; a ordem tributária; o meio ambiente e a regulamentação de remédios e demais substâncias químicas que são comercializadas. Dessa forma, o legislador se utiliza de procedimento denominado reenvio à outra norma, que é justamente o complemento da norma penal em 3

branco, possuindo a função de complementar o preceito primário do tipo legal de crime, para que lhe seja dada perfeita aplicabilidade. 2. Classificação da norma penal em branco. A norma penal em branco se classifica em: - Norma penal em branco homogênea ou em sentido amplo ou de complementação homóloga ou imprópria (esta última nomenclatura foi cunhada por Mezger); - Norma penal em branco heterogênea ou em sentido estrito ou de complementação heteróloga ou própria (esta última nomenclatura foi cunhada por Mezger). A diferença entre as duas espécies de norma penal em branco reside na fonte de produção, tanto da norma em branco, quanto do seu complemento. No Direito Penal Brasileiro, a única fonte de produção do Direito Penal é a União Federal, que por meio do seu órgão legislativo Congresso Nacional, tem atribuição para criar as normas do Direito Penal, na forma do art. 22, I da Constituição da República de 1988, no exercício de sua competência privativa. Assim, quando a norma penal em branco e o seu complemento derivarem da mesma fonte de produção, isto é, Congresso Nacional, haverá uma homogeneidade de fontes de produção. Nessa hipótese diz-se que a norma penal em branco é homogênea. Entretanto, de forma diversa, quando a norma penal em branco e o seu complemento não derivarem da mesma fonte de produção, isto é, quando a norma penal em branco derivar do Congresso Nacional e o complemento derivar de outro órgão que não o Congresso Nacional, haverá uma heterogeneidade de fontes de produção. Nessa hipótese diz-se que a norma penal em branco é heterogênea. Na primeira espécie, tem-se a norma penal em branco homogênea ou em sentido amplo ou de complementação homóloga ou 4

imprópria, que é aquela em que o complemento do seu preceito primário se encontra em outro ato normativo derivado da mesma fonte de produção legislativa do tipo legal a ser complementado, ou seja, o Congresso Nacional. Segundo Zaffaroni e Nilo Batista, in Direito Penal Brasileiro, a norma penal em branco homogênea divide-se ainda em: norma penal em branco homogênea de complementação homóloga homovitelina e em norma penal em branco homogênea de complementação homóloga heterovitelina Fala-se em norma penal em branco homogênea de complementação homóloga homovitelina, quando o complemento estiver na mesma lei em que se encontra o tipo penal em branco, a exemplo do delito de corrupção ativa, previsto no art. 333 do Código Penal. Para se chegar ao significado do que seja funcionário público descrito no art. mencionado, devese recorrer ao art. 327, também do Código Penal. De outro giro, fala-se em norma penal em branco homogênea de complementação homóloga heterovitelina, quando o complemento estiver em lei diversa daquela em que se encontra o tipo penal em branco, a exemplo do art. 235 do Código Penal que, embora mencione como elemento a expressão casamento, não descreve o seu conceito, que deve, na verdade, ser buscado no art. 1.511 Código Civil, que apesar de derivar também do Congresso Nacional, é outra lei. Outro exemplo está no art. 236 do Código Penal, por não dizer o que seja erro essencial, devendo o seu complemento ser buscado art. 1.557 do Código Civil. Na segunda espécie, tem-se a norma penal em branco heterogênea ou em sentido estrito ou de complementação heteróloga ou própria, que é aquela em que o complemento do seu preceito primário se encontra em outro ato normativo derivado de fonte legislativa diversa da fonte de produção do tipo legal em branco. Exemplo de norma penal em branco heterogênea está no art. 269 do Código Penal, que devemos recorrer à portaria 993/GM de 04/09/2000 do Ministério da Saúde, Órgão do Poder Executivo, que traz o rol das doenças de notificação compulsória: cólera, dengue, difteria, febre tifóide, febre amarela, 5

hanseníase, HIV, etc. Outro exemplo reside no art. 33 da lei de drogas (lei 11.343/2006), que devemos recorrer ao ato normativo emitido pelo Ministério da Saúde, Órgão do Poder Executivo. 3. Norma penal em branco e abolitio criminis. Como visto alhures, a norma penal em branco é aquela que não é completa, exaustiva em si mesma, precisando, portanto, ser complementada por outra norma penal ou extrapenal para que se dê a plena compreensão dos elementos do tipo legal de crime. Questão relevante versa sobre a ocorrência de abolitio criminis na hipótese de o complemento da lei penal em branco heterogênea ser revogado posteriormente. Basta pensar na seguinte hipótese: o cloreto de etila, também conhecido como lança perfume, figura como droga, substância que possa causar dependência física ou psíquica, na Portaria 344/98 da ANVISA, órgão pertencente ao Ministério da Saúde. Caso haja a retirada de tal substância da mencionada lista de drogas, qual a sua consequência para fins penais? Ocorrerá ou não a abolitio criminis? Essa questão é disputada por duas correntes em doutrina. Para parte da doutrina 1, nessa hipótese, a revogação apenas do complemento da norma penal em branco não teria o condão de gerar a abolitio criminis. A abolitio criminis somente ocorreria na hipótese de revogação do tipo penal em branco. Para outra parte da doutrina, com a qual concordamos, a revogação do complemento da norma penal em branco heterogênea acarreta a abolitio criminis, ao argumento de que o complemento é elemento do tipo penal, integrando, portanto, tipo legal de crime. Logo, uma vez revogado o 1 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. I. 24ª ed. Atlas. 2007, p.53. MESTIERI, João. Manual de Direito Penal Parte Geral. Vol I. Ed. Forense. 1999. P. 75. 6

complemento, o delito desaparece do ordenamento jurídico, passando aquele fato, agora, a ser penalmente irrelevante 2. No sentido da segunda corrente doutrinária, manifestou-se o STF, na ordem de habeas corpus nº 94.397, publicada no Informativo de Jurisprudência número 578: Abolitio Criminis e Cloreto de Etila - 1 A Turma deferiu habeas corpus para declarar extinta a punibilidade de denunciado pela suposta prática do delito de tráfico ilícito de substância entorpecente (Lei 6.368/76, art. 12) em razão de ter sido flagrado, em 18.2.98, comercializando frascos de cloreto de etila (lança-perfume). Tratava-se de writ em que se discutia a ocorrência, ou não, de abolitio criminis quanto ao cloreto de etila ante a edição de resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA que, 8 dias após o haver excluído da lista de substâncias entorpecentes, novamente o incluíra em tal listagem. Inicialmente, assinalou-se que o Brasil adota o sistema de enumeração legal das substâncias entorpecentes para a complementação do tipo penal em branco relativo ao tráfico de entorpecentes. Acrescentou-se que o art. 36 da Lei 6.368/76 (vigente à época dos fatos) determinava fossem consideradas entorpecentes, ou capazes de determinar dependência física ou psíquica, as substâncias que assim tivessem sido especificadas em lei ou ato do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia do Ministério da Saúde sucedida pela ANVISA. Consignou-se que o problema surgira com a Resolução ANVISA RDC 104, de 7.12.2000, que retirara o cloreto de etila da Lista F2 lista das substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil, da Portaria SVS/MS 344, de 12.5.98 para incluí-lo na Lista D2 lista de insumos utilizados como precursores para fabricação e síntese de entorpecentes e/ou psicotrópicos. Ocorre que aquela primeira resolução fora editada pelo diretor-presidente da ANVISA, ad referendum da diretoria colegiada (Decreto 3.029/99, art. 13, IV), não sendo tal ato referendado, o que ensejara a reedição da Resolução 104, cujo novo texto inserira o cloreto de etila na lista de substâncias psicotrópicas (15.12.2000). HC 94397/BA, rel. Min. Cezar Peluso, 9.3.2010. (HC-94397) Abolitio Criminis e Cloreto de Etila - 2 Aduziu-se que o fato de a primeira versão da Resolução ANVISA RDC 104 não ter sido posteriormente 2 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Ed. Lumen Juris. 2006. P. 51. 7

referendada pelo órgão colegiado não lhe afastaria a vigência entre sua publicação no Diário Oficial da União - DOU e a realização da sessão plenária, uma vez que não se cuidaria de ato administrativo complexo, e sim de ato simples, mas com caráter precário, decorrente da vontade de um único órgão Diretoria da ANVISA, representado, excepcionalmente, por seu diretorpresidente. Salientou-se que o propósito da norma regimental do citado órgão seria assegurar ao diretorpresidente a vigência imediata do ato, nas hipóteses em que aguardar a reunião do órgão colegiado lhes pudesse fulminar a utilidade. Por conseguinte, assentou-se que, sendo formalmente válida, a resolução editada pelo diretor-presidente produzira efeitos até a republicação, com texto absolutamente diverso. Repeliu-se a fundamentação da decisão impugnada no sentido de que faltaria ao ato praticado pelo diretor-presidente o requisito de urgência, dado que a mera leitura do preâmbulo da resolução confirmaria a presença desse pressuposto e que a primeira edição da resolução não fora objeto de impugnação judicial, não tendo sua legalidade diretamente questionada. Assim, diante da repercussão do ato administrativo na tipicidade penal e, em homenagem ao princípio da legalidade penal, considerou-se que a manutenção do ato seria menos prejudicial ao interesse público do que a sua invalidação. Rejeitou-se, também, a ocorrência de erro material, corrigido pela nova edição da resolução, a qual significara, para efeitos do art. 12 da Lei 6.368/76, conferir novo sentido à expressão substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, elemento da norma penal incriminadora. Concluiu-se que atribuir eficácia retroativa à nova redação da Resolução ANVISA RDC 104 que tornou a definir o cloreto de etila como substância psicotrópica representaria flagrante violação ao art. 5º, XL, da CF. Em suma, assentou-se que, a partir de 7.12.2000 até 15.12.2000, o consumo, o porte ou o tráfico da aludida substância já não seriam alcançados pela Lei de Drogas e, tendo em conta a disposição da lei constitucional mais benéfica, que se deveria julgar extinta a punibilidade dos agentes que praticaram quaisquer daquelas condutas antes de 7.12.2000. HC 94397/BA, rel. Min. Cezar Peluso, 9.3.2010. (HC- 94397) 4. Conclusão. Conforme dito acima, somos obrigados a concordar com o a posição doutrinária adotada pelo STF. 8

Com efeito, o que dá a adequação típica ao tipo penal em branco é justamente o seu complemento, sem o qual, a conduta é penalmente irrelevante. Basta pensar que, caso o cloreto de etila não estivesse na lista de drogas, a conduta de levar tal substância de um local para o outro ou simplesmente consumi-la, seria fato penalmente irrelevante. Logo, se para dar tipicidade formal à conduta do agente, o complemento do tipo penal em branco é fundamental, também será fundamental para excluir a tipicidade formal da conduta do agente, tornando-a penalmente irrelevante. Em face do exposto, a revogação do complemento da lei penal em branco heterogênea gera a abolitio criminis. *Gabriel Habib é Defensor Público Federal no Rio de Janeiro. Pós graduado pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professor e Coordenador do CURSO FORUM / RJ. Professor e Coordenador do Curso IDEIA/RJ. Professor do Curso CEJUS Centro de Estudos Jurídicos de Salvador/BA. Professor da EMERJ Escola da Magistratura do Rio de Janeiro. Professor de FESUDEPERJ Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Professor do Curso Supremo/MG. Professor do Curso CEJUSF/RJ. Professor da pós graduação da Universidade Estácio de Sá. Professor do Curso Jurídico/PR. Professor do Curso CEJJUF/MG. Autor do livro Leis Penais Especiais para Concursos, Tomos I e II. Editora JusPodivm. 9