DA LIBERDADE PARA PRISÃO: A MULHER E A SEXUALIDADE NO CONTO MAS VAI CHOVER (1993) DE CLARICE LISPECTOR



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25 a 28 de Outubro de 2011 ISBN 978-85-8084-055-1 DA LIBERDADE PARA PRISÃO: A MULHER E A SEXUALIDADE NO CONTO MAS VAI CHOVER (1993) DE CLARICE LISPECTOR Karine Passeri 1 RESUMO: Em 1970, surgiu a crítica feminista, a qual consoante com o movimento feminista propunha uma reinterpretação da literatura de autoria feminina. Neste contexto, a mulher passa a ser analisada não isoladamente, mas em relação à cultura e à ideologia dominante, promovendo a desconstrução da dominação masculina e subordinação feminina, fatos que caracterizam a história da humanidade há séculos. Na linha da literatura de autoria feminina, a obra de Clarice Lispector foi um divisor de águas, pois trouxe à tona, por meio da literatura, a realidade da mulher que vive a submissão cotidianamente. Baseado neste contexto, nosso objetivo é analisar, a partir de um estudo bibliográfico, como a mulher e a sexualidade é representada no conto clariceano Mas vai chover (1993), cuja protagonista, Maria Angélica de Andrade, uma idosa viúva e rica, paga para ter um relacionamento amoroso com Alexandre, um jovem entregador de produtos farmacêuticos. Além disso, faremos uma analogia entre a história de Maria Angélica e o contexto social em que as mulheres vivem nos dias atuais. Como resultado, esperamos demonstrar como é que Maria Angélica, uma mulher inicialmente independente, termine subjugada, submissa ao poder do marido e socialmente deslocada por ser uma mulher que busca saciar seus desejos sexuais. PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; Literatura; Mulher; Sexualidade. 1 INTRODUÇÃO No decorrer da história da humanidade, a voz da mulher foi, muitas vezes, silenciada. Ela não tinha os mesmos direitos do homem, pois era considerada inferior ao sexo masculino. A submissão, marginalização e humilhação passaram a fazer parte da vida das mulheres, e mesmo atualmente, na era pós-patriarcal, segundo Muraro (2003, p.69), ainda há registros de mulheres que são discriminadas devido aos resquícios da ideologia machista que ainda existe no século XXI. Concordamos com Rocha (2011) que a literatura colaborou para o movimento feminista, pois a temática da invisibilidade da mulher era representada na literatura de autoria feminina. Assim, a crítica feminista começou a revisitar obras e autoras que tratassem da representação da mulher. O objetivo deste trabalho é adotar um ponto de vista crítico e analisar um texto literário juntamente com os aspectos culturais e ideológicos da sociedade, nas palavras de Zolin (2005, p. 276) a intenção é promover a visibilidade da mulher como produtora de um discurso que se quer novo, um discurso dissonante em relação àquele arraigado milenarmente na consciência e no inconsciente 1 Graduada em Letras pelo Centro Universitário de Maringá CESUMAR, Maringá - Paraná. karinepasseri@hotmail.com

coletivos, inserindo-a na historiografia literária. Dessa forma, a ideologia dominante (masculina) passou a ser alvo de críticas, pois em uma cultura machista, a mulher deve ser subordinada ao homem, e é isso que a crítica feminista almeja desconstruir e, então, construir uma nova ideologia baseada na igualdade de valores. Zolin (2005, p. 275) explica que a partir da década de 70, quando originou a crítica feminista, [...] muitos historiadores literários começaram a resgatar e a reinterpretar a produção literária de autoria feminina, numa atitude de historicização que se constituiu como resistência a ideologia que historicamente vinha regulando o saber sobre a literatura. Trata-se de promover a desestabilização de paradigmas estabelecidos e saberes instituídos [...]. Fundamentada nos estudos feministas, Elaine Showalter (1985 apud Zolin, 2005, p.278) traça um panorama da história da literatura de autoria feminina. Para a crítica, há três fases: a primeira, a feminina, na qual os valores patriarcalistas são reduplicados; na segunda, a feminista, há uma ruptura com a sociedade patriarcal e tem início a crítica a dominação masculina e, na fase fêmea, a última, há uma tentativa de autodescoberta, busca de uma identidade. Considerando a teoria crítica feminista e as divisões históricas da literatura de autoria feminina, adotamos como corpus desta pesquisa o conto Mas vai chover (1993) de Clarice Lispector, pois, ele se encaixa na fase feminista, em que os valores patriarcais são questionados; porque a obra de Lispector é um marco na literatura brasileira, como diz Zolin (2005 p.278) De modo geral, a obra clariceana estrutura-se em torno das relações de gênero que trazem à tona as diferenças sociais cristalizadas entre os sexos, as quais cerceiam quaisquer possibilidades de a mulher atingir sua plenitude existencial ; e, por último, porque a narrativa curta em questão nos revela, nas entrelinhas, a discriminação que uma mulher sofre por simplesmente querer viver um relacionamento amoroso e por dizer seus desejos sexuais. Com base em toda essa contextualização, realizar-se-á uma pesquisa de cunho bibliográfico e analítico com o objetivo de discutir o fato de uma mulher autônoma perder a liberdade e ser aprisionada pelos valores patriarcais que consideram a mulher inferior e, portanto subordinada aos homens. 2 MATERIAL E MÉTODOS A pesquisa realizada tem caráter bibliográfico. Desse modo, selecionamos textos e artigos teóricos de pesquisadores(as) como Lúcia Osana Zolin, Rose Marie Muraro, Pierre Bourdieu, Elaine Showalter entre outros. Em seguida, definimos o corpus do trabalho, o conto Mas vai chover (1993) de Clarice Lispector pelo fato da escritora ter um papel relevante para a literatura de autoria feminina brasileira e porque esse texto literário expõe os obstáculos que uma mulher tem de superar em uma sociedade patriarcalista. Com aporte teórico e objeto de análise definido, passamos as leituras e observação de todo material. Em seguida, lemos diversas vezes o conto, extraímos os principais dados e as informações nas entrelinhas para então relacionar isso com a crítica feminista. Após todo esse estudo, escrevemos o que fora identificado no decorrer da pesquisa. Por fim, os principais materiais utilizados para este trabalho foram livros, artigos e periódicos científicos. 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO Lispector (1993), em seu conto Mas vai chover (1993) nos apresenta, por meio de um narrador onisciente neutro, a história de Maria Angélica de Andrade, uma mulher com sessenta anos, rica, viúva, livre que morava sozinha em um apartamento.

No início da narrativa, Maria Angélica tem as características de uma mulher sujeito. Por enquanto, ela não é submissa a dominação masculina. Porém, ela destrói sua autonomia quando se relaciona com Alexandre, um entregador de produtos farmacêuticos de dezenove anos, pois mesmo ele não sendo o provedor financeiro, ela o coloca em uma posição superior: [...] ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. [...] Observou que ele tinha umas poucas espinhas no rosto. Mas isso não lhe alterava a beleza e a masculinidade: os hormônios lá ferviam. [...] Aquele, sim, era um homem [...] (LISPECTOR, 1993, p.75/76). Sob pressão de Maria Angélica, acabam se tornando amantes. Alexandre só aceita o relacionamento pois Maria Angélica promete dar em troca carro, casa, dinheiro, tudo que ele precisar. Mas, mesmo sendo ela quem sustenta a casa e ele, Maria Angélica não consegue evitar a dominação masculina, e é humilhada: Vou passar uns dias fora do Rio com uma garota que conheci. Preciso de dinheiro (LISPECTOR, 1993, p.78), objetificada: Sua velha desgraçada! sua porca, vagabunda! Sem um bilhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices! (LISPECTOR, 1993, p.78) e submissa a ele: E a vida corria. As contas aumentavam. Alexandre exigente. Maria Angélica aflita (LISPECTOR, 1993, p.78). Maria Angélica, que no início era sujeito, passou a ser subordinada aos caprichos e vontades do amante. Percebemos que ela se deixa dominar por ele, pois, provavelmente, durante seu casamento (agora ela é viúva) já era submissa ao marido e, no momento presente, vivencia uma situação semelhante a essa com Alexandre. Além disso, ela diz que tem fé em Deus, sabendo que a igreja é uma reprodutora dos parâmetros da dominação masculina, notamos que a crença dela colabora para que ela continue aceitando a humilhação exercida pelo marido. O relacionamento entre Maria Angélica e Alexandre se caracteriza pelo que Bourdieu (2005, p. 31) expõe: Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela é construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo de dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação. Fruto dessa superioridade e sexismo de Alexandre é o desgaste emocional e físico de Maria Angélica: Foram dias horríveis para Maria Angélica. Não saiu de casa, não tomou banho, mal se alimentou [...].[...] Maria Angélica ficou ali em pé. Doía-lhe o corpo todo. Depois foi devagar sentar no sofá da sala. Parecia uma ferida de guerra. Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse [...] (LISPECTOR, 1993, p.78/79). Esse sofrimento de Maria Angélica é causado pela hierarquização socialmente estabelecida, na qual o homem ocupa o patamar de superior, dominador, e a mulher é vista como inferior, dominada. Todavia, como já foi comentado, antes de se relacionar com o rapaz, Maria era um mulher independente, a qual rompia a imagem de mulher feminina, principalmente quando declarava a Alexandre seus desejos sexuais: Deixa eu lhe dar um beijinho! [...] Não posso me controlar! Eu te amo! Venha para cama comigo! [...] Estou doida por você! gritou-lhe enquanto tirava a coberta roxa da cama de casal (LISPECTOR, 1993, p.76). O comportamento de Maria Angélica subverte as estruturas sociais patriarcais, as quais esperam que as mulheres sejam femininas, isto é, sorridentes, simpáticas,

atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas (BOURDIEU, 2005, p. 82). Então, por suas atitudes serem deslocadas ou fora do padrão, ela acaba sendo mal vista por Alexandre, o qual passa a humilhá-la cada vez mais, pois, para ele, ela é uma mulher sem princípios, assim, tem de ser pisada. Além disso, Maria Angélica se encaixa neste estereótipo de uma mulher idosa que provavelmente não sentiria prazer, nem desejo pelo sexo. Porém, ela rompe esse paradigma e afirma a todos suas vontades sexuais e se relaciona com Alexandre, mesmo tendo que pagar para isto. Esse comportamento socialmente inesperado dela revela que não há justificativas para que uma mulher idosa não sinta prazer e não tenha uma vida sexual ativa. Dessa forma, a sociedade, que encara a experiência corporal na velhice com preconceito e desconfiança, dando somente aos jovens o direito ao gozo, é equivocada. Diante disso, Alexandre, um rapaz educado segundo os parâmetros convencionais do patriarcalismo, vê a atitude de Maria Angélica como vergonhosa, afinal, há tempos que o corpo feminino diabolizado e o masculino endeusado sofrem tensões. O corpo feminino não deixou de também ter tensões entre o bem procriação, virgindade de Maria, castidade e cuidado com a família e o mal sexualidade, prostituição, luxuria e perversão da alma [...] (ROIZ, 2009, p. 408). Com base nas palavras de Roiz (408) observamos que enquanto o corpo de Maria Angélica busca o prazer, a sexualidade, o gozo, o que é condenado segundo os padrões tradicionais, seu nome remete a coisas boas: Maria lembra virgindade, santidade e Angélica está relacionado a anjos, pureza. Portanto, o corpo e o nome da personagem problematiza, coloca em xeque esse padrão de que toda mulher tem que ser pura. A personagem de Lispector nos revela que a mulher, como todo ser humano, sente prazer, desejos carnais e pode ser ao mesmo tempo uma pessoa de fé. A respeito de Alexandre, sabemos que ele é fruto deste histórico no qual as mulheres que almejavam prazer sexual eram definitivamente anormais (GIDDENS, 1993, p. 33), por isso, ele a humilha e repugna, chegando ao ponto de fazê-la calar, silenciar: Estava quieta, muda. Sem palavra nenhuma a dizer. Por fim, ele, com seu machismo e poder, silenciou a voz de Maria Angélica, a voz da mulher. 4 CONCLUSÃO Concluímos que o conto analisado discute a representação da mulher na sociedade. Maria Angélica, uma mulher que inicialmente desfrutava dos prazeres da liberdade, passa a viver em uma prisão quando começa a se relacionar com Alexandre, rapaz machista que a humilha, objetifica e inferioriza. Porém, uma vez perdida a independência, Maria Angélica não consegue ser mais forte que a dominação do companheiro, assim, anestesiada pela fé em Deus, continua com ele, mas, como é exposto no conto, ela termina silenciada pelo amante, Alexandre coloca-a na prisão da invisibilidade e do silêncio. Por fim, vemos que Maria Angélica é triplamente marginalizada: primeiro por ser mulher, segundo por ser velha e em terceiro por expor seus desejos carnais, uma atitude que contraria o que a ideologia dominante espera das mulheres. REFERÊNCIAS BOURDIEU. Pierre. A dominação masculina. KÜHNER, M. H. (Trad.). 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. LOPES, M. (Trad.). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. São Paulo: Rocco, 1993. MURARO, Rose Marie. Um mundo novo em gestação. Campinas: Verus, 2003. ROCHA, Josélia. Solo feminino: a maternidade sob o olhar pós-patriarcal. In: ZOLIN, L. O.; GOMES, C. M. (Orgs.). Deslocamentos da escritora brasileira. Maringá: Eduem, 2011. p.183-197. ROIZ, Diogo da. A história do corpo feminino e masculino no ocidente medieval. Cadernos Pagu. Campinas, n.33, p.405-414, jul./dez.2009. ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de Autoria Feminina. In: ZOLIN, L. O.; BONNICI, T. (Orgs). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2.ed.rev. e amp. Maringá: Eduem, 2005. p.274-283.