Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a Odontologia



Documentos relacionados
Universidade de Pernambuco. Faculdade Odontologia de Pernambuco. Disciplina de Cirurgia Buco- Maxilo- Facial

Orientações para procedimentos odontológicos em pacientes com doenças neuromusculares

INFECÇÃO POR Staphylococcus aureus

Filipe Polese Branco 1, Maria Cristina Volpato 2, Eduardo Dias de Andrade 3

Doutora em Cardiologia e Professora da Pós Graduação na Fundação Universitária de Cardiologia de Porto Alegre 5

REFLEXÕES ACERCA DOS CONCEITOS DE DEGRADAÇÃO AMBIENTAL, IMPACTO AMBIENTAL E CONSERVAÇÃO DA NATUREZA. Isonel Sandino Meneguzzo 1 Adeline Chaicouski 2

Evolução do Protocolo Padrão de Profilaxia Antibiótica à Endocardite Bacteriana

Atualização das Diretrizes Brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero

Helaine Carneiro Capucho, DSc. Rio de Janeiro, 16 de abril de 2013.

Screening Rastreamento

Plan-Assiste Implementação de medidas para melhoria. Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República,

INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO

INTRODUÇÃO. Entendemos por risco a probabilidade de ocorrer um dano como resultado à exposição de um agente químico, físico o biológico.

1 INTRODUÇÃO. 1.1 O problema


Como a palavra mesmo sugere, osteointegração é fazer parte de, ou harmônico com os tecidos biológicos.

7 perguntas para fazer a qualquer fornecedor de automação de força de vendas

Os efeitos do controle farmacológico no comportamento futuro de pacientes menores de três anos no consultório odontológico

Implantes Dentários. Qualquer paciente pode receber implantes?

AIDS e envelhecimento: repercussões na saúde pública

DOENTE DE RISCO EM CIRURGIA ORAL

Aula 11: Infecções e antibióticos

PARECER COREN-SP 042/2014 CT PRCI nº 5441/2014 Tickets nºs , e

Fazendo de seu sorriso nossa obra de arte

PERFIL DA PRESCRIÇÃO DE ANTIBIOTICOPROFILAXIA EM EXODONTIA POR CIRURGIÕES DENTISTAS DA CIDADE DE SÃO PAULO

- Grupo de Apoio e Educação em Diabetes

FORMAS FARMACÊUTICAS E APRESENTAÇÕES - ALDACTONE

Educação Financeira: mil razões para estudar

Preferência na Utilização de Preparações Anestésicas Injetáveis pelos Cirurgiões-Dentistas inscritos no Portal Farmaconline

PLANO DE TRABALHO 2011 PROGRAMA DE ATENÇÃO À SAÚDE BUCAL

SITUAÇÕES ENFRENTADAS PELOS PROFESSORES DE BIOLOGIA DA REDE ESTADUAL E PARTICULAR DAS ESCOLAS DO MUNICÍPIO DE ANÁPOLIS.

Anexo II. Conclusões científicas e fundamentos para a alteração dos termos das Autorizações de Introdução no Mercado

OS SABERES PROFISSIONAIS PARA O USO DE RECURSOS TECNOLÓGICOS NA ESCOLA

ANÁLISE DOS INDICADORES DE ASSISTÊNCIA AO PACIENTE CIRÚRGICO

PERFIL BACTERIOLÓGICO DAS MÃOS DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DO CENTRO CIRÚRGICO E DO PÓS-OPERATÓRIO DO HOSPITAL GERAL DE PALMAS

300 QUESTÕES DE CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS PARA TÉCNICO EM SAÚDE BUCAL

RESUMO DAS CARACTERÍSTICAS DO MEDICAMENTO

OS EFEITOS DA FISIOTERAPIA RESPIRATÓRIA EM PACIENTES PÓS- CIRURGIA CARDÍACA

TEMA: Ácido hialurônico para tratamento da cistite intersticial

42º Congresso Bras. de Medicina Veterinária e 1º Congresso Sul-Brasileiro da ANCLIVEPA - 31/10 a 02/11 de Curitiba - PR 1

OS SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA DO PROFESSOR 1. Entendemos que o professor é um profissional que detém saberes de variadas

Abbott Laboratórios do Brasil Ltda Rua Michigan 735, Brooklin São Paulo - SP CEP:

Uso correcto dos antibióticos

REGULAMENTO DOS PÔSTERES

PIBID: DESCOBRINDO METODOLOGIAS DE ENSINO E RECURSOS DIDÁTICOS QUE PODEM FACILITAR O ENSINO DA MATEMÁTICA

COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA PROJETO DE LEI

Exclusivo: Secretária de Gestão do MPOG fala sobre expectativas do Governo Dilma

DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS EM DOSE UNITÁRIA - OPINIÃO DA EQUIPE DE ENFERMAGEM SOBRE AS MUDANÇAS NO PROCESSO DE TRABALHO

Artigo A GESTÃO DO FLUXO ASSISTENCIAL REGULADO NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE João Marcelo Barreto Silva

TEMA: Ácido hialurônico para tratamento da cistite intersticial

ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO NA ÁREA DE INFLUÊNCIA DA MINA DE URÂNIO EM CAETITÉ, LAGOA REAL E LIVRAMENTO DE NOSSA SENHORA NO ESTADO DA BAHIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Sobre o tromboembolismo venoso (TVE)

A ATUAÇÃO DA PSICOLOGIA NA CIRURGIA BARIÁTRICA

Comparação da força da musculatura respiratória em pacientes acometidos por acidente vascular encefálico (AVE) com os esperados para a idade e sexo

A-1 Modelo de planilha para avaliação inicial (basal) do programa

POR QUE FAZER ENGENHARIA FÍSICA NO BRASIL? QUEM ESTÁ CURSANDO ENGENHARIA FÍSICA NA UFSCAR?

ESTUDO DA PREVALÊNCIA DO CÂNCER BUCAL NO HC DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA, ATRAVÉS DO CID 10

Denise Fernandes CARETTA Prefeitura Municipal de Taubaté Denise RAMOS Colégio COTET

Módulo 9 A Avaliação de Desempenho faz parte do subsistema de aplicação de recursos humanos.

Assuntos abordados. Projeção astral IV - buscando o conhecimento objetivo. Considerações Finais. Meus Sites.

Consulta de Enfermagem para Pessoas com Hipertensão Arterial Sistêmica. Ms. Enf. Sandra R. S. Ferreira

Sessão 2: Gestão da Asma Sintomática. Melhorar o controlo da asma na comunidade.]

ATUALIZA ASSOCIAÇÃO CULTURAL ENFERMAGEM EM EMERGÊNCIA ÍRIA CRUZ PIMENTEL

TEMA: OXIGENOTERAPIA HIPERBÁRICA (OHB) NO TRATAMENTO DE ÚLCERA CRÔNICA INFECTADA EM PÉ DIABÉTICO

OTOPLASTIA (CIRURGIA ESTÉTICA DAS ORELHAS)

PERCEPÇÃO DE PACIENTES IDOSOS ACERCA DA HUMANIZAÇÀO PROFISSIONAL NAS UNIDADES DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA DE UM HOSPITAL NO ALTO SERTÃO PARAIBANO

Medicamentos que contêm dextropropoxifeno com Autorização de Introdução no Mercado na União Europeia. Romidon 75mg/2ml Solução injectável

Por que optar por produtos Látex Free?

A REGULAMENTAÇÃO DA EAD E O REFLEXO NA OFERTA DE CURSOS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A prática de exercício físico pode ser utilizada como meio de tratamento da hipertensão arterial?

A política e os programas privados de desenvolvimento comunitário

Cateter intravascular com dispositivo de segurança Análise de custo-efetividade

ALTERNATIVAS APRESENTADAS PELOS PROFESSORES PARA O TRABALHO COM A LEITURA EM SALA DE AULA

PREFEITURA DO RECIFE SECRETARIA DE SAÚDE SELEÇÃO PÚBLICA SIMPLIFICADA AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE ACS DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO CANDIDATO

OS DESAFIOS DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO NO SÉCULO XXI

Centro Acadêmico Paulo Freire - CAPed Maceió - Alagoas - Brasil ISSN:

A experiência da Engenharia Clínica no Brasil

INSTITUTO SUPERIOR MIGUEL TORGA ESCOLA SUPERIOR DE ALTOS ESTUDOS

AVULSÃO EM DENTES PERMANENTES: NÍVEL DE CONHECIMENTO DE ALUNOS NA FACULDADE DE ODONTOLOGIA DA PUCRS

Duodenoscópios e os Riscos do Reprocessamento Incorreto

Discussão do artigo Opportunities and challenges of clinical research in the big-data era: from RCT to BCT

Estudo do perfil docente nos cursos de odontologia da região Sul

Redação Dr. Maurício de Freitas Lima. Edição ACS - Assessoria de Comunicação Social Maria Isabel Marques - MTB

CLINDACNE. Theraskin Farmacêutica Ltda. Gel. Clindamicina 10 mg/g

ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA FILOSOFIA LEAN CONSTRUCTION EM EMPRESAS DO SETOR DE CONSTRUÇÃO CIVIL DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE ABSTRACT

Relatório dos auditores independentes. Demonstrações contábeis Em 31 de dezembro de 2014 e 2013

Estudo PARTNER. Foi convidado a participar neste estudo porque tem uma relação em que é o parceiro VIH positivo.

A PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO PROCESSO DE ADOÇÃO NO SERVIÇO AUXILIAR DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE PONTA GROSSA-PR

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CENTRO DE LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

CURSO DE ODONTOLOGIA. Ketlyn Terra PROFILAXIA ANTIMICROBIANA PARA ENDOCARDITE INFECCIOSA: EVOLUÇÃO DOS PROTOCOLOS DA AMERICAN HEART ASSOCIATION

A NECESSIDADE DE UMA NOVA VISÃO DO PROJETO NOS CURSOS DE ENGENHARIA CIVIL, FRENTE À NOVA REALIDADE DO SETOR EM BUSCA DA QUALIDADE

PREVENÇÃO DAS DOENÇAS CRÔNICAS NÃO TRANSMISSÍVEIS PREVENIR É PRECISO MANUAL DE ORIENTAÇÕES AOS SERVIDORES VIGIAS DA PREFEITURA DE MONTES CLAROS

PROTOCOLOS NORMATIVOS PARA O ATENDIMENTO DOS PACIENTES EM CIRURGIA BUCO-MAXILAR

Clinagel. clindamicina 10 mg/g

Conceitos Fundamentais de Qualidade de Software

Modelo de Texto de Bula. betametasona (como 17-valerato)... 1mg (0,1% p/p) veículo: (carbopol, álcool isopropílico e água purificada q.s.p)...

Transcrição:

ISSN: Versão impressa: 1806-7727 Versão eletrônica: 1984-5685 Rev Sul-Bras Odontol. 2010 Jul-Sep;7(3):372-6 Short Communication Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a Odontologia Infective endocarditis and antibiotic prophylaxis: an issue that remains controversial in Dentistry Orlando Cavezzi Junior 1 Endereço para correspondência: Address for correspondence: Rua Alagoas, 790 CEP 18700-010 Avaré São Paulo E-mail: didi@apcd.org.br 1 Odontologia, prática privada Avaré SP Brasil. Recebido em 22/3/2010. Aceito em 19/5/2010. Received on March 22, 2010. Accepted on May 19, 2010. Palavras-chave: endocardite; antibiótico; Odontologia. Keywords: endocarditis; antibiotic; Dentistry. Resumo Introdução: O assunto endocardite infecciosa e sua profilaxia antibiótica tem passado por grandes mudanças recentemente. Todas essas modificações são muito dinâmicas e, por isso, provocam grande controvérsia. Tem-se atribuído muita ênfase, historicamente e sem base científica, ao conceito de que os procedimentos odontológicos são a principal causa dos casos de endocardite infecciosa. Objetivo: Esta comunicação busca repensar as condutas aplicadas na clínica odontológica, observando aspectos importantes na prescrição do antibiótico e minimizando o uso da profilaxia antibiótica para procedimentos odontológicos. Conclusão: O cuidado com a saúde bucal e o controle do biofilme dental devem ser os primeiros passos na prevenção da endocardite infecciosa, de origem odontogênica. Abstract Introduction: The issue of infective endocarditis and its antibiotic prophylaxis has passed through major changes recently. All these changes are very dynamic and therefore cause much controversy.

Rev Sul-Bras Odontol. 2010 Jul-Sep;7(3):372-6 373 Historically and with no scientific basis, great emphasis has been given to the concept that dental procedures are the main cause of infective endocarditis cases. Objective: The purpose of this communication is to reconsider the procedures in dental practice, analyzing the important aspects in the prescription of antibiotics and minimizing the use of antibiotic prophylaxis for dental procedures. Conclusion: The oral health care and biofilm control should be the first steps in the prevention of infective endocarditis of odontogenic origin. A endocardite infecciosa (EI) é sempre fatal quando não tratada e continua causando substancial morbimortalidade, apesar dos avanços alcançados em seu diagnóstico e tratamento. Essa patologia inicia-se por uma bacteremia e tem relação com diferentes fatores de risco do paciente, podendo apresentar complicações cardíacas, sistêmicas, imunes e vasculares [13]. Há mais de 80 anos, Lewis e Grant [6] sugeriram que as bacteremias poderiam causar endocardite infecciosa em pacientes com anormalidades valvares. Assim, enfatizou-se o conceito de que o tratamento odontológico era a principal causa de endocardite infecciosa, ao relacionar os estreptococos do grupo viridans diretamente como agentes bacterianos envolvidos nessa infecção [18]. O primeiro protocolo para prevenção da endocardite, associado ao tratamento odontológico, foi publicado em 1955 pela American Heart Association (AHA), e por mais de meio século se recomenda, para prevenção de endocardite infecciosa, a profilaxia com antibióticos para determinados pacientes que recebem atendimento odontológico. Numa rápida análise das atuais orientações quanto à profilaxia da endocardite, divulgadas por diversas entidades de saúde [3, 9, 18], observamos que estamos distantes de um consenso. A British Society for Antimicrobial Chemotherapy (BSAC) [3], em 2006, e a American Heart Association (AHA) [18], em 2007, atualizaram as recomendações para profilaxia da endocardite infecciosa em procedimentos odontológicos, tendo protocolos muito semelhantes (tabela I). Tabela I Recomendações da BSAC (2006) [3] e da AHA (2007) [18] BSAC AHA Condições cardíacas de alto risco que necessitam de profilaxia antibiótica Paciente com prévia história de EI Cirurgia de substituição da válvula cardíaca (mecânico ou biológico protético) Desvio construído cirurgicamente sistêmico pulmonar ou conduto Paciente com prévia história de EI Cardiopatia congênita cianótica não corrigida Portador de prótese cardíaca valvar Cardiopatia congênita cianótica corrigida que evoluiu com lesão residual Cardiopatia congênita corrigida com material protético Valvopatia adquirida em pacientes transplantados cardíacos Procedimento odontológico que requer profilaxia com antibióticos para as condições acima Todos os procedimentos odontológicos que requeiram manipulações dentogengivais Todos os procedimentos que envolvam manipulação do tecido gengival ou região periapical de dentes ou perfuração da mucosa bucal

Cavezzi Junior 374 Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a Odontologia A profilaxia antibiótica passou a ser indicada somente para pacientes de alto risco cardíaco em uma gama de procedimentos odontológicos. Desse modo, um número restrito de pacientes é selecionado para receber a profilaxia com antibióticos: apenas aqueles em que a endocardite levaria a uma maior morbimortalidade. Nessas novas recomendações, o foco passou a ser as bacteremias geradas por ocorrências da vida diária num processo cumulativo [4, 17] e não mais as bacteremias causadas por procedimentos odontológicos. Todavia isso não significa dizer que os procedimentos odontológicos sejam isentos de risco. O risco existe, mas a ocorrência é provavelmente rara para ser demonstrada estatisticamente em amostras populacionais pequenas [5, 15, 17]. Além do mais os parâmetros que mais contribuem para o risco de endocardite infecciosa ainda continuam incertos, pois não há dados nem provas convincentes. Existem inúmeras publicações sugestivas de associações de causa entre procedimentos odontológicos, bacteremias e endocardite infecciosa. As poucas publicações de estudos de caso controle [5, 15, 17] dão conta de não haver elo significativo entre a endocardite infecciosa e os procedimentos odontológicos. Além disso, não há evidências de que o uso da profilaxia com a penicilina seja eficaz contra a endocardite infecciosa em pessoas de risco que se submetem a tratamento odontológico [10], como também não se demonstrou que essas drogas não sejam eficazes [14]. Aspectos importantes relacionados ao uso de antibióticos são os efeitos que tais drogas podem gerar, os quais devem ser levados em conta. Foi sugerido que o risco de reação anafilática fatal à penicilina é consideravelmente maior que o de contrair endocardite infecciosa [2]. Nos últimos anos, a amoxicilina tem sido o suporte principal para recomendações de profilaxia da endocardite, por ser mais bem absorvida pelo trato gastrointestinal e proporcionar níveis sanguíneos mais elevados e prolongados. Essa droga vem sendo usada há mais de 35 anos, mostrando-se muito segura. Na literatura não há registros de casos que relacionem reação anafilática associada à amoxicilina usada como dose profilática da endocardite. O Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency do Reino Unido (MHR A), que coleta suspeitas de reações adversas sobre drogas administradas, armazena essas reações à amoxicilina desde fevereiro de 1972 [14]. Existem, desde então, oito casos registrados de fatalidades ligados à anafilaxia, dos quais cinco por via intravenosa, dois por via desconhecida e apenas um caso fatal por via oral, mas não relacionado à profilaxia da endocardite infecciosa. A própria AHA relatou não ter conhecimento de caso de anafilaxia fatal associada a antibióticos empregados no protocolo da profila x ia da endocardite nos Estados Unidos durante os últimos 50 anos [18]. Outro aspecto é a preocupação com a resistência bacteriana aos antibióticos na prática clínica [8, 11, 16, 19]. A comunidade científica tem estado alerta para o uso inadequado de antibióticos e à crescente prevalência de microrganismos muito resistentes. Os altos níveis de resistência às penicilinas, demonstrada pelos estreptococos bucais, são motivo de preocupação, ao ficar evidente, na avaliação de pacientes ambulatoriais, que receberam doses de antibióticos de curta duração e se tornaram importantes reservatórios de microrganismos resistentes [16]. Os patógenos diretamente associados à endocardite infecciosa apresentaram taxas elevadas de resistência aos antibióticos mais utilizados para a profilaxia em Odontologia [8]. As bactérias têm mais uma vez evidenciado enorme flexibilidade genética, ao se tornarem resistentes a um antibiótico após outro. A terapia com antibióticos trouxe notável progresso ao tratamento das doenças infecciosas, mas os riscos relacionados ao uso generalizado e à carência de dados sobre a eficácia dessas drogas nos levam a repensar nossa prática diária com bom senso e julgamento clínico. Uma única dose de 2 g de amoxicilina, uma hora antes do procedimento odontológico, conforme preconizado pelo protocolo da profilaxia antibiótica da endocardite infecciosa [3, 18], teria pouco ou nenhum efeito sobre o surgimento do número de estreptococos resistentes e de importância significativa na redução da bacteremia. Apenas a partir da segunda e da terceira dose se observa um acréscimo significativo do número de estreptococos resistentes e persistentes por quatro a sete semanas [19]. Assim, nos pacientes de risco que necessitassem de sucessivas sessões para procedimentos odontológicos associados à produção de bacteremias, a opção seria um regime alternativo antibacteriano [3, 18] ou esperar, no mínimo, um intervalo de quatro semanas entre as sessões [19] (tabela II).

Rev Sul-Bras Odontol. 2010 Jul-Sep;7(3):372-6 375 Tabela II Protocolo para administração de antibióticos para procedimentos odontológicos [13] Via de administração Oral Medicação Amoxicilina Dose única 30 a 60 minutos antes do procedimento Crianças Adultos 50 mg/kg 2 g Alergia a penicilina Clindamicina Azitromicina Claritromicina 20 mg/kg 600 mg 15 mg/kg 500 mg Parenteral (EV ou IM) Ampicilina Cefazolina Ceftriaxone 50 mg/kg 2 g 50 mg/kg 1 g Parenteral (EV ou IM) Alergia a penicilina Clindamicina 20 mg/kg 600 mg Por outro lado, uma recente publicação do National Institute for Health and Clinical Excellence (Nice) [9], de março de 2008, apresentou surpreendente recomendação, sugerindo abandonar a profilaxia antibiótica da endocardite infecciosa para tratamento odontológico, mesmo nos pacientes de alto risco. Assim, paciente nenhum receberá a profilaxia com antibióticos para realização de tratamento odontológico, embora o Nice reconheça a necessidade de os pacientes serem conscientemente informados sobre as mudanças na prática. Essas recomendações enfrentam muitas reações, principalmente de cardiologistas que acreditam que o novo protocolo para prevenção da endocardite infecciosa é uma perigosa base de partida a ser estabelecida na prática [1]. Após três anos de publicação das atuais recomendações para a prevenção da endocardite infecciosa, lançadas pela British Society for Antimicrobial Chemotherapy e American Heart Association [3, 18], notamos certa resistência em adotá-las, tanto por parte de pacientes como de profissionais de saúde. Provavelmente isso se deva à falta de evidências sobre a exposição aos novos protocolos [5, 15, 17] ou até mesmo pelo limitado conhecimento quanto à endocardite infecciosa [12]. As novas recomendações devem ser muito bemvindas e ser adotadas até que mais observações surjam. Fica evidente que não há conclusões definitivas em torno da profilaxia antibiótica, permanecendo a questão em debate. Aplicar a profilaxia antibiótica somente ao grupo de pacientes de alto risco em desenvolver endocardite infecciosa e priorizar o controle do biofilme dental e a manutenção da saúde bucal são medidas extremamente importantes, porquanto é fato que a deficiência na higiene bucal e as doenças bucais compõem importantes fatores para a ocorrência da endocardite infecciosa [7]. As atuais recomendações para prevenção da endocardite infecciosa mudaram a forma de abordar a profilaxia, ao torná-la mais simples e objetiva, pois a atual tendência é minimizar ou até mesmo evitar o uso da profilaxia antibiótica para procedimentos odontológicos. Referências 1. Bach DS. Perspectives on the American College of Cardiology/American Heart Association guidelines for the prevention of infective endocarditis. J Am Coll Cardiol. 2009;53(20):1852-4. 2. Bor DH, Himmelstein DU. Endocarditis prophylaxis for patients with mitral valve prolapse: a quantitative analysis. Am J Med. 1984;76(4):711-7. 3. Gould FK, Elliott TS, Foweraker J, Fulford M, Perry JD, Roberts GJ et al. Guidelines for the prevention of endocarditis: report of

Cavezzi Junior 376 Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a Odontologia the working party of the British Society for Antimicrobial Chemotherapy. J Antimicrob Chemother. 2006;57(6):1035-42. 4. Guntheroth WG. How important are dental procedures as a cause of infective endocarditis? Am J Cardiol. 1984;54(7):797-801. 5. Lacassin F, Hoen B, Leport C, Selton-Suty C, Delahaye F, Goulet V et al. Procedures associated with infective endocarditis in adults: a case control study. Eur Heart J. 1995;16(12):1968-74. 6. Lewis T, Grant RT. Observations relating to subacute infective endocarditis. Heart. 1923;10: 21-99. 7. Lockhart PB, Brennan MT, Thornhill M, Michalowicz BS, Noll J, Bahrani-Mougeot FK et al. Poor oral hygiene as a risk factor for infective endocarditis-related bacteremia. J Am Dent Assoc. 2009;140(10):1238-44. 8. Longman LP, Pearce PK, McGowan P, Hardy P, Martin MV. Antibiotic-resistant oral streptococci in dental patients susceptible to infective endocarditis. J Med Microbiol. 1991;34(1):33-7. 9. National Institute for Health and Clinical Excellence (Nice). Prophylaxis against infective endocarditis: antimicrobial prophylaxis against infective endocarditis in adults and children undergoing interventional procedures. Nice Clinical Guideline 64. 2008 Mar [accessed 2009 Sep 20]. Available from: www.nice.org.uk/cg064. 10. Oliver R, Roberts GJ, Hooper L, Worthington HV. Antibiotics for the prophylaxis of bacterial endocarditis in dentistry. Cochrane Database Syst Rev. 2008(4):CD003813. 11. Ready D, Lancaster H, Qureshi F, Bedi R, Mullany P, Wilson M. Effect of amoxicillin use on oral microbiota in young children. Antimicrob Agents Chemother. 2004;48(8):2883-7. 12. Rocha LMA, Oliveira PRD, Santos PB, Jesus LA, Stefani CM. Prevention of infectious endocarditis knowledge and behaviors between dentists and dental students. Robrac. 2008;17(44):146-53. 13. Sampaio RO, Acorsi TAD, Tarasoutchi F. Profilaxia de endocardite infecciosa. Einstein: Educ Contin Saúde. 2008;6(4):191-3. 14. Shanson D. New British and American guidelines for the antibiotic prophylaxis of infective endocarditis: do the changes make sense? A critical review. Curr Opin Infect Dis. 2008;21(2):191-9. 15. Strom BL, Abrutyn E, Berlin JA, Kinman JL, Feldman RS, Stolley PD et al. Dental and cardiac risk factors for infective endocarditis: a population-based, case-control study. Ann Intern Med. 1998;129(10):761-9. 16. Teng LJ, Hsueh PR, Chen YC, Ho SW, Luh KT. Antimicrobial susceptibility of viridans group streptococci in Taiwan with an emphasis on the high rates of resistance to penicillin and macrolides in Streptococcus oralis. J Antimicrob Chemother. 1998;41(6):621-7. 17. Van der Meer JT, Thompson J, Valkenburg HA, Michel MF. Epidemiology of bacterial endocarditis in The Netherlands. I. Patient characteristics. II. Antecedent procedures and use of prophylaxis. Arch Intern Med. 1992;152(9):1863-73. 18. Wilson W, Taubert KA, Gewitz M, Lockhart PB, Baddour LM, Levison M et al. Prevention of infective endocarditis: guidelines from the American Heart Association: a guideline from the American Heart Association Rheumatic Fever, Endocarditis and Kawasaki Disease Committee, Council on Cardiovascular Disease in the Young, and the Council on Clinical Cardiology, Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia, and the Quality of Care and Outcomes Research Interdisciplinary Working Group. J Am Dent Assoc. 2007;138(6):739-45,47-60. 19. Woodman AJ, Vidic J, Newman HN, Marsh PD. Effect of repeated high dose prophylaxis with amoxycillin on the resident oral flora of adult volunteers. J Med Microbiol. 1985;19(1):15-23. Como citar este artigo: Cavezzi Junior O. Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a Odontologia. Rev Sul-Bras Odontol. 2010 Jul-Sep;7(3):372-6.