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Transcrição:

O adiante da circulação: uma contribuição ao debate epistemológico The ahead of circulation: a contribution to the epistemological debate Aldenor da Silva Pimentel 1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos Resumo Este trabalho tem por objetivo discutir o conceito de circulação. Para tanto, dialogamos com textos de outros autores, em especial, Eliseo Verón, Antônio Fausto Neto e José Luiz Braga. Por fim, apresentamos nossa proposta para se pensar a circulação como processo não linear de trânsito de sentidos, que abrange os diversos momentos de construção e reconstrução simbólicas, até então denominados produção e recepção. Palavras-chave: Comunicação. Circulação. Epistemologia. Abstract This paper aims to discuss the concept of circulation. For that, we dialogue with texts of other authors, in particular, Eliseo Verón, Antônio Fausto Neto and José Luiz Braga. Finally, we present our proposal to think of circulation as a non-linear process of displacement of meanings, which encompasses the various moments of symbolic construction and reconstruction, hitherto termed production and reception. Palavras-chave: Communication. Circulation. Epistemology. Introdução Este trabalho tem por objetivo discutir o conceito de circulação. Para tanto, dialogaremos com textos de outros autores, em especial, Eliseo Verón, Antônio Fausto Neto e 1 Doutorando em Comunicação pela Unisinos, Mestre em Comunicação pela UFG, jornalista da UFRR. E-mail: aldenor_pimentel@yahoo.com.br. 1

José Luiz Braga. A partir da exposição de resultados de pesquisa empírica anterior (PIMENTEL, 2014), apresentaremos nossa contribuição para se pensar o conceito. Eliseo Verón Antes tratadas de forma desconectada pela tradição das pesquisas em Comunicação, em Verón (1993), produção e recepção são articuladas por um novo componente: a circulação. Produção, circulação e recepção, ou reconhecimento, 2 formam, juntos, o sistema produtivo. El concepto de circulación designa precisamente el proceso a través de cual el sistema de relaciones entre condiciones de producción y condiciones de recepción es, a su vez, producido socialmente. Circulación es pues el nombre del conjunto de mecanismos que forman parte del sistema productivo, que definen las relaciones entre gramática de producción y gramática de reconocimiento, para un discurso o un tipo de discurso dado. (VERÓN, 1993, p. 20, grifo do autor) Diz Verón (1984) que produção e reconhecimento não interagem em uma relação direta, determinista e linear. Para o autor, uma gramática de produção se desdobra em uma série de gramáticas de reconhecimento, associadas a diferentes momentos históricos nos quais o texto produz efeitos. Aquela gramática [ ] define un campo de efectos de sentido posibles, pero a la sola luz de las reglas de producción no es posible saber cuál es concretamente la gramática de reconocimiento que se aplicó a un texto en un momento dado (VERÓN, 1984, p. 46). Reciprocamente, toda produção discursiva é um reconhecimento de outros discursos (VERÓN, 2004, p. 53), uma vez que otros textos forman siempre parte de las condiciones de producción de un texto o de un conjunto textual dado (VERÓN, 1984, p. 46). Verón (1997) esclarece que gramática não tem um sentido técnico, senão de saber um conjunto de regras de uma determinada arte, regras que descrevem operações que permitam formular a maneira em que o discurso é engendrado em sua produção. Y, según el punto de vista, esas reglas pueden verse como una descripción de propiedad o de operaciones. Descripción de propiedades en el sentido de que, de algún modo, habrá que caracterizar los elementos que identifican el texto; y 2 Reconhecimento é o termo que Verón (1993) prefere usar em substituição à recepção, ainda que em diferentes momentos use também esta denominação. Assim como em trabalho anterior (PIMENTEL, 2014), no lugar de recepção e reconhecimento, adotaremos o termo coprodução. 2

operaciones porque esas reglas, que desde cierta perspectiva son descriptivas, se pueden considerar de inmediata como reglas productivas ya que, si las aplico, obtengo otro texto del mismo tipo. (VERÓN, 1997, p. 74-75). Em texto publicado originalmente em 1979 e traduzido para Português já no século XXI, Verón (2004) defende que, no tocante à análise dos discursos, a circulação só pode se materializar sob a forma da diferença entre a produção e os efeitos dos discursos. Para o autor (VERÓN, 2004, p. 53), esta [a circulação] se define como a defasagem, num dado momento, entre as condições de produção do discurso e a leitura feita na recepção. Do ponto de vista metodológico, a proposição de Verón aponta para a mesma prática que pode ser depreendida da Teoria Matemática da Comunicação: comparar a mensagem propagada com a mensagem recebida. Entende-se, a partir daí, que essa noção de circulação não supera a dicotomia produção/recepção, está limitada e ainda presa à preocupação com a mensuração de efeitos. Em seu discurso durante o Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação (Celacom) realizado em 2007 no Brasil, o próprio Verón (2008) aponta como negativa a maneira de formular este problema a dissociação, descontinuidade entre produção e reconhecimento denominando-o de defasagem, porque talvez seja, argumenta o autor, uma forma de ver o processo do ponto de vista do produtor, que busca fasagens, uma articulação impossível, quando a sociedade tem defasagens. Verón (2008) chega a chamar o modelo da defasagem de pouco elementar para a gramática da produção e várias gramáticas de reconhecimento, que tentavam indicar o caráter não linear da comunicação. Naquele mesmo momento, Verón (2008) demonstrou simpatia com o conceito lumaniano de acoplamento, que se dá entre produção e reconhecimento, entre lógicas qualitativamente diferentes. Ainda que entendamos como importante registrar a referência que Verón faz ao conceito proposto por Luhmann, não nos aprofundaremos neste trabalho sobre o referido conceito. Por ora, basta-nos expor o deslocamento do conceito daquele autor de diferença para defasagem. Antônio Fausto Neto Por sua vez, Antônio Fausto Neto (2010) analisa que o entendimento sobre circulação avançou da ideia de diferença entre produção e recepção, e desta para defasagem, para ser 3

vista como ponto de articulação entre produção e reconhecimento: transformada em lugar onde produtores e receptores se encontram em jogos complexos de oferta e reconhecimento. A circulação é nomeada como dispositivo em que se realiza trabalho de negociação e de apropriação de sentidos, regidos por divergências e, não por linearidades (FAUSTO NETO, 2010, p. 63). Assim, Fausto Neto (2010) cita pesquisas que passaram a estudar os contratos de leitura a partir de marcas de pontos de contatos. Para isso, elas teriam reconstituído tais operações por meio de processos observacionais vários, que pudessem indicar como estratégias de ofertas de sentidos, apropriadas por outras estratégias, poderiam gerar pistas sobre as modalidades como os receptores transformariam tais ofertas (FAUSTO NETO, 2010, p. 63-64). A circulação, segundo Verón e Fausto Neto Ainda que se perceba uma superação das ideias de Verón, em que a concepção de circulação passa de defasagem para pontos de contato, a contribuição de Fausto Neto (2010) não chega a se desprender totalmente do modelo anterior: produção/recepção. Ou seja, encontra-se também neste autor, de algum modo, a preocupação em comparar produção e recepção, a fim de mensurar a diferença entre ambas, a partir da transformação pelo polo receptor daquilo que se origina no polo produtor. Desse modo, a recepção nada mais seria que uma produção modificada no processo de circulação. E a circulação, por sua vez, pouco se distanciaria da noção de canal, da Teoria Matemática da Comunicação. Isto não significa que Fausto Neto compreenda a comunicação como um processo linear e o receptor como personagem passivo. Sabe-se que atualmente esta concepção está superada no campo acadêmico da Comunicação. Entretanto, a recorrência ao termo recepção, por si só, é um indicativo de que o modelo que propôs essa denominação deixou seus vestígios nas correntes que o sucederam. Entende-se, a partir de Becker (2004), que o emprego de um termo, de alguma maneira, aciona os pressupostos do arcabouço teórico em que aquele termo foi formulado. Desse modo, urge a formulação de novas nomenclaturas que mais bem descrevam os fenômenos comunicacionais em suas complexidades. 4

Empírico A fim de apresentar nossa proposta para se pensar a circulação, trazemos aqui discussão empreendida em trabalho anterior. Na dissertação de Mestrado intitulada Morte bandida e cidadania virtual: circulação discursiva em jornais on-line sobre a execução sumária de suspeitos, acusados e sentenciados por crimes hediondos 3 (PIMENTEL, 2014), analisamos notícias e comentários de internautas sobre a execução sumária de suspeitos, acusados e sentenciados pelos crimes hediondos de estupro e homicídio qualificado de criança, adolescente e mulher. Naquele trabalho (PIMENTEL, 2014), observamos que as notícias e os comentários se dividiam acerca da execução sumária em dois discursos em tensão: de um lado, alguns defendiam ou pareciam defendê-la; de outro, havia aqueles que a criticam. Evidentemente que, na maioria dos casos, isso não se dava tão abertamente, nem de forma tão totalizante. Entre os posicionamentos antagônicos contra versus a favor observamos importantes nuances. Notamos, por exemplo, comentários que não se referiam unicamente ao noticiado, complementando as notícias com elementos contextuais nelas ausentes. Não se pode negar que, mesmo com o espaço limitado de atuação imposto pelos jornais, os internautas consigam protagonizar a (re)escrita da notícia. O ponto final do texto escrito pelo repórter não encerra a história. A narrativa se coletiviza com as contribuições do público, podendo caminhar para sentidos não expressamente propostos pelo veículo. (PIMENTEL, 2014, p. 155) Com base nisso, na dissertação, nomeamos o internauta comentarista, não como receptor, mas como coprodutor, por entender que esse sujeito vai além da atividade de leitura, ao participar ativamente do processo produtivo de conteúdo informativo. Uma vez que não existe recepção passiva, concebemos a leitura como momento de coprodução, em que o sujeito se apropria do enunciado e o ressignifica. A partir dessa reflexão, propusemos o entendimento de circulação como processo não linear de trânsito de sentidos, que abrange os diversos momentos de construção e reconstrução simbólicas, até então denominados produção e recepção. Em nossa proposta de formulação do conceito, entendemos que todos os momentos da circulação são de produção e pressupõem a leitura. Como consequência, todos os sujeitos 3 A dissertação foi defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás. 5

participantes do processo são, ao mesmo tempo, produtores e leitores. Não há, desse modo, ponto de partida ou chegada. Por isso, a escolha dos momentos da circulação a serem comparados em uma pesquisa é arbitrária e tal análise deve levar em conta esse aspecto. Do ponto de vista metodológico, entende-se que as marcas da circulação estão presentes em todo o processo e não se restringem ao sentido que passa de um ponto ao outro. Todos os sentidos construídos e reconstruídos fazem parte da circulação: aqueles que são produzidos, ainda que não se desloquem para outro ponto; aqueles que circulam aparentemente sem modificações; aqueles que são reconstruídos a ponto de se descaracterizar em relação ao sentido que os originou; e aqueles que são produzidos em momento de coprodução, sem, aparentemente, terem circulado de um ponto anterior de produção. (PIMENTEL, 2014, p. 87) Diálogos com José Luiz Braga Nossa concepção de circulação parece muito próxima da compreensão de José Luiz Braga. Na obra A sociedade enfrenta sua mídia, o autor defende que O sistema de circulação interacional é essa movimentação social dos sentidos e dos estímulos produzidos inicialmente pela mídia. (BRAGA, 2006, p. 28, grifo do autor) Destaca-se o uso, por Braga, da expressão movimentação social dos sentidos, enquanto em nossa conceituação empregamos processo de trânsito de sentidos. Braga destaca a circulação como algo que extrapola a relação produção/recepção, chamando atenção ao fato de que o receptor faz seguir adiante as reações ao que recebe. Isso decorre não apenas da presença de novos meios, mas também de que os produtos circulantes da mídia de massa são retomados em outros ambientes, que ultrapassam a situação de recepção (o espectador diante da tela). (BRAGA, 2012, p. 39) Para o autor, o fluxo contínuo marcado pela retroação da escuta prevista parece ser um dos aspectos mais pregnantes da midiatização, merecedor de investigação empírica para aprofundar a variedade de consequências (problemáticas, promissoras ou desafiantes) da interação social atual. Pelo menos nos macro-ambientes de interação social do qual fazem parte, aliás, as redes sociais e na medida em que as interfaces sociais se encadeiam crescentemente, percebemos que o esforço interacional se desloca do modelo conversacional (comunicação reverberante, de ida-e-volta) para um processo de fluxo contínuo, sempre adiante. Nessas circunstâncias, já não é tão simples distinguir pontos iniciais e pontos de chegada, produção e recepção como instâncias separadas. (BRAGA, 2012, p. 40-41) 6

Nesse ponto, em que Braga sinaliza não ser tão simples distinguir pontos iniciais e finais, vemos diálogo com nossa proposição, uma vez entendermos que na circulação não há ponto de partida ou chegada, sendo todos os momentos da circulação de produção e leitura, e todos os sujeitos, ao mesmo tempo, produtores e leitores. Braga (2012) propõe, inclusive, que tal construção (produção/recepção) decorre mais de uma condição histórica específica (a fase de implantação dos meios de massa) do que de uma pretendida natureza do processo interacional, que, pela própria etimologia da palavra, enfatizaria antes a indistinção de papéis do que uma especialização por estrutura. Ou seja: o exercício de diferentes ações, as assimetrias e opressões, devem ser relacionadas antes a cada tipo específico de interação, assim como a seus contextos significativos; e não a uma pretendida lógica diferencial no interagir. É claro que no caso dos meios de massa podemos distinguir claramente essas duas posições que devem ser assim estudadas segundo suas lógicas específicas; mas evitando naturalizar estes papéis como se fossem categorias inelutáveis da midiatização. (BRAGA, 2012, p. 40-41) Braga (2012) acrescenta que em uma visada abrangente, o produto mediático não só não é o ponto de partida no fluxo, como pode ser visto como um ponto de chegada, como consequência de uma série de processos, de expectativas, de interesses e de ações que resultam em sua composição como um objeto para circular e que, por sua vez, realimenta o fluxo da circulação. Nosso entendimento de que as marcas da circulação estão presentes em todo o processo e não se restringem ao sentido que passa de um ponto ao outro vai ao encontro de Braga (2012), quando este defende que esse fluxo adiante citado acima acontece em variadíssimas formas: desde a reposição do próprio produto para outros usuários (modificado ou não); à elaboração de comentários que podem resultar em textos publicados ou em simples conversa de bar sobre um filme recém visto; a uma retomada de ideias para gerar outros produtos (em sintonia ou contraposição); a uma estimulação de debates, análises, polêmicas em processo agonístico; a esforços de sistematização analítica ou estudos sobre o tipo de questão inicialmente exposta; passando ainda por outras e outras possibilidades, incluindo aí, naturalmente a circulação que se manifesta nas redes sociais. (BRAGA, 2012, p. 39-40) Considerações finais 7

Neste trabalho, expusemos nossa contribuição ao debate sobre o conceito de circulação, que ao longo das últimas décadas de pesquisa e discussões acadêmicas, passou por um processo de deslocamento: da concepção de diferença à de defasagem, e desta, à de pontos de articulação, acoplamento. Entendemos, em aproximação com Braga (2012), que seja mais produtiva a ideia de circulação como movimentação social ou trânsito de sentidos. Em primeiro lugar, porque avança de um modelo conversacional da comunicação (reverberante, de ida-e-volta, eu/tu) para um modelo de fluxo contínuo, sempre adiante. Paralelamente, a proposta parece-nos interessante por dar outra visada sobre os sujeitos da comunicação, já não vistos unicamente nas posições cristalizadas produtor/receptor, em uma tentativa de retratar esse processo de modo mais complexo, mais próximo ao que observamos. Referências BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006.. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda. Mediação & Midiatização. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2012. p. 31-52. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6187/1/midiatizacao_repositorio.pdf>. Acesso em 5 dez. 2016. FAUSTO NETO, Antônio. As bordas da circulação... Alceu, Rio de Janeiro, v. 10, n. 20, p. 55-69, jan./jun. 2010. Disponível em: <http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu20_neto.pdf>. Acesso em: 5 dez. 2016. PIMENTEL, Aldenor. Morte bandida e cidadania virtual: circulação discursiva em jornais on-line sobre a execução sumária de suspeitos, acusados e sentenciados por crimes hediondos. 2014. 180 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014. Disponível em: <https://mestrado.fic.ufg.br/up/76/o/disserta%c3%a7%c3%a3o_aldenor_da_silva_pimentel.pdf>. Acesso em: 5 dez. 2016. VERÓN, Eliseo. Do contrato de leitura às mutações na comunicação. In: MELO, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina; HERBELÊ, Antonio Luiz Oliveira (Org.). A diáspora comunicacional que se fez escola latino-americana: as idéias de Eliseo Verón. São Bernardo do Campo, SP: Cátedra Unesco/Metodista, 2008. p. 147-152.. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2004. 8

. La mediatización. Buenos Aires: Ed. UBA, 1997.. La semiosis social: fragmentos de una teoría de la discursividad. Barcelona: Gedisa, 1993.. Semiosis de lo ideológico y del poder. Espacios de crítica y producción, Buenos Aires, n. 1, p. 43-51, 1984. 9