ENTREVISTA [PROF. GUSTAVO LEAL TOLEDO] 1

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Transcrição:

5 ENTREVISTA [PROF. GUSTAVO LEAL TOLEDO] 1 Valéria Rocha Torres 2 Clarissa De Franco 3 Nesta edição da Revista Último Andar temos a satisfação de publicar a entrevista com o filósofo e professor Gustavo Leal Toledo, da Universidade Federal de São João Del Rei, que trabalha com Filosofia da Biologia, especificamente a Memética. Seu trabalho é instigante e incita a reflexão ao defender a fundamentação darwinista para a explicação do processo de evolução cultural. Gustavo Leal Toledo também possui estudos ligados ao Neoateísmo a partir de um fecundo diálogo com os pensadores Daniel Dennett, Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitches. Último Andar: Gustavo, você poderia nos apresentar a sua trajetória profissional, apontando como sua formação o levou ao estudo da Memética? 1 Graduou-se em Filosofia na UERJ (2002) com a monografia As Críticas a Filosofia Dualista da Mente. Cursou mestrado em Filosofia na PUC-Rio (2003-2005), obtendo título de mestre com a dissertação O Argumento dos Zumbis na Filosofia da Mente: são zumbis físicos logicamente possíveis? Fez o doutorado na mesma instituição, onde obteve o título com a tese Controversias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore. Foi bolsista do CNPq nos primeiros dois anos da tese e recebeu a Bolsa Nota 10 da FAPERj nos últimos 2 anos. Atualmente pesquisa em Filosofia da Mente e Filosofia da Biologia. É professor da UFSJ, no Campus Dom Bosco, lotado no Departamento de Filosofia e Métodos. 2 Doutoranda em Ciência da Religião pela PUC-SP. valeriarochatorres@gmail.com 3 Pós-doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. clarissadefranco@hotmail.com

6 Gustavo Leal Toledo: Minha trajetória não foi em linha reta. Quando criança e adolescente queria ser biólogo. Comecei a fazer faculdade nesta área e não gostei. Nesta mesma época estava também interessado por religião comparada, misticismo e teosofia. Decidi fazer filosofia, pois lá poderia estudar filósofos místicos como Pitágoras, Plotino e Giordano Bruno. Lá na Filosofia descobri a Filosofia da Mente e vi que era nela que a questão da metafísica da mente estava sendo tratada. Resolvi focar nesta área para discutir um problema que ainda me é próximo: se a mente é só o cérebro ou se há algo além do material. Queria defender o dualismo, ou seja, a visão que somos mais do que nosso corpo no geral e, em particular, nosso cérebro. Tal tema foi a origem do meu mestrado, onde estudei o problema dos Zumbis, de David Chalmers, o que ainda considero o melhor argumento para defender o dualismo. Mesmo tendo começado o mestrado para defender o dualismo, acabei chegando a conclusões materialistas. Por este motivo resolvi voltar à biologia e fiz meu doutorado em Filosofia da Biologia, mas propriamente estudando a Memética, que defende a utilização de modelos darwinistas na explicação da evolução da cultura. Último Andar: Em seu artigo Em busca de uma Fundamentação para a Memética você indica que a ciência dos memes ainda carece de empiria. Você acredita no estatuto epistemológico da memética como uma teoria científica? Quais são as principais fragilidades de seus argumentos? Gustavo Leal Toledo: Acredito ainda que podemos usar os modelos da genética das populações e da epidemiologia para estudar a cultura. Isso é o que eu chamo de Memética. Não me parece algo exagerado ou muito fora de realidade. O ponto é apenas que certos modelos matemáticos da biologia também podem ser úteis no estudo da cultura. No entanto, não vejo estes modelos sendo aplicados. Defendi no referido artigo, e em meu Doutorado na PUC-Rio, que um dos motivos é a falta de dados matematicamente tratáveis em relação à cultura. Existe toda uma simplificação necessária para isso e que não é comum na antropologia, história, pedagogia, publicidade e outras áreas que poderiam fornecer dados para explicar a cultura. O problema é que talvez possa não haver nunca, e esta é a principal fragilidade. Ciência não se faz apenas com boas ideias. É preciso um programa de pesquisa que aponte um caminho, o que não há na Memética, sendo, assim, o que Lakatos chamaria de programa degenerativo.

7 Último Andar: O criador da memética, Richard Dawkins, é um zoólogo e divulgador da ciência respeitável, e é também um militante ateísta que utiliza seu referencial teórico da memética (que vale ressaltar, ainda não é unânime na academia) para legitimar as bases do ateísmo. O que você acha desta fronteira entre o cientista e o militante e do uso que o autor faz de suas teorias para justificar e defender o caminho ateísta? Gustavo Leal Toledo: Primeiramente, é importante ressaltar que o ateísmo de Dawkins e sua Memética não estão proximamente relacionados. Ele até diz que a Religião é um grupo de memes, mas nem sua Memética depende do seu ateísmo e nem o inverso. Em relação a sua teoria Memética, ele criou o termo meme (1976), mas não é dos mais fortes defensores desta ideia. Chega a ser crítico em vários momentos. Em relação ao seu ateísmo, vejo Dawkins não tanto como cientista, mas como grande divulgador da ciência. Seus artigos científicos não têm nem um pouco do impacto que sua capacidade de divulgar ciência tem. Deste modo, não vejo problemas com seu ateísmo militante em favor da divulgação da ciência, pois há de fato, especialmente nos EUA, tentativas de negar o Darwinismo partindo de bases religiosas e é a isso que Dawkins prioritariamente se impõe. Último Andar: Os memes, sendo replicadores culturais que podem tomar várias formas, têm sido popularizados na internet para transmissão de conteúdos rapidamente. Explique para nosso leitor como se dá este processo em termos dos processos de seleção (mutação, imitação, dentre outros). Gustavo Leal Toledo: O termo meme foi criado por Dawkins em seu livro O Gene Egoísta apenas como forma de mostrar que o Darwinismo é um princípio explicativo mais amplo do que apenas na biologia evolutiva, o que ele chamou de Darwinismo Universal. Basicamente o meme seria o análogo cultural do gene, que seria passado de pessoa para pessoa através de aprendizagem social. Se este meme fosse bem adaptado a mente desta pessoa, ele se fixaria ali e tentaria ser passado de lá para outra pessoa. Os memes melhor adaptados às mentes se tornariam mais comuns. Deste modo seria apenas uma forma de falar, quase literalmente, de contágio cultural. Em uma situação propícia, a pessoa seria infectada com um meme (uma ideia, um comportamento) e de lá este poderia passar para outras pessoas. Veja exemplos tão díspares como o nazismo na Alemanha de 1940 e como uma

8 música de carnaval que não sai da sua cabeça. Ambos parecem se propagar como uma epidemia. Então seria possível utilizar modelos da epidemiologia para estudá-los. Hoje se fala de memes de internet, mas estes só seriam um tipo específico de memes, pois dentro do modelo que analiso aqui, toda a cultura passada de pessoa para pessoa seria um meme ou complexos de memes. Último Andar: Existe no meio científico uma crítica à ideia de que o Darwinismo pode explicar tudo que possui vida. De modo grosseiro, esta é a tese do Darwinismo Universal. A memética, sendo uma teoria desenvolvida na abordagem neodarwinista, carrega que relação com o Darwinismo Universal? De que forma podemos explicitar esta relação? Gustavo Leal Toledo: Digo que não existe tal crítica. Mesmo biólogos críticos de Dawkins, com Stephen Jay Gould, são plenamente darwinistas. O que há é, no máximo, uma crítica de como este modelo darwinista se dá, e não do próprio darwinismo. Já o Darwinismo Universal, este sim sofre algumas críticas. Tal modelo diz que onde tivermos replicação com grande fidelidade, diferenciação da adaptabilidade e competição por recursos, haverá evolução por seleção. Ou seja, se existem indivíduos que se replicam, mas volta e meia criam seres diferentes de si nesta replicação e estas diferenças podem implicar em maior capacidade de obter os recursos para sua replicação, então estes seres se tornarão mais comuns do que a média da população com a qual competem. Este processo é chamado de universal porque independe do substrato. Ele pode se dar com seres vivos, mas também com ideias, comportamento e culturas, como no caso da Memética. Há pessoas que defendem este modelo para cristais, para príons e até para o universo inteiro. Todos estes passariam por um processo de evolução por seleção. Último Andar: A definição de meme é bastante alargada. Quando aplicada ao estudo das religiões, a definição de memes tem sido utilizada por alguns autores para indicar imagens, expressões e conceitos que reforçam a crença. Quais são os estudos relevantes nesse sentido? Gustavo Leal Toledo: Um meme é tudo aquilo que é transmitido de pessoa para

9 pessoa por aprendizagem social. Ou seja, que é transmitido de maneira não genética. Susan Blackmore defende que devem ser passado apenas através da imitação, o que eu discordei no meu artigo Um Crítica à Memética de Susan Blackmore. Neste sentido, a religião, como um corpo de conhecimento passado de pessoa para pessoa, seria um conjunto de memes. Tais memes competiriam por espaço na mente, na memória e no comando do comportamento com outros memes (como outras religiões ou o ateísmo). Dependendo do ambiente deles, que seria a mente e as relações culturais da pessoa, alguns memes teriam mais possibilidade de se fixar ali do que outros. Último Andar: O campo da Filosofia da Mente é relativamente novo. Você poderia esclarecer ao nosso leitor, que é focado nos estudos da religião, qual o escopo de abordagem desta área de estudo? Existem filósofos que influenciam mais profundamente a construção do pensamento da Filosofia da Mente? Como essas influências se apresentam? Gustavo Leal Toledo: Desde que a Filosofia existe, se discute sobre o que é a mente. Mas a Filosofia da Mente só surge mesmo em 1949. As três principais questões, do modo que vejo, seriam as seguintes: 1- O que é a mente e qual sua relação com o cérebro? Podemos dizer que a mente é apenas o cérebro ou ela é algo mais?; 2- O que é a consciência? O que são estes estados qualitativos de nossas mentes que chamamos de experiência subjetiva e que parecem ser acessíveis só para nós mesmos?; 3- Como se dá a relação causal entre mente e cérebro? Sabemos que mudanças em uma causam mudanças na outra, mas como isso se dá? Muitos são os filósofos que abordam tal tema. Eu, particularmente, me aprofundei em David Chalmers e Daniel Dennett, dois filósofos com visões opostas. Mas a lista seria enorme, dado que é um dos temas mais quentes e mais atuais na filosofia. Agora mesmo, em abril/16, teremos em Belo Horizonte um encontro internacional na área, e eu pretendo organizar outro também em abril de 2017 em São João del Rei. Último Andar: O conceito de evolução é um conceito chave na construção do pensamento Darwinista, bem como o é na construção do pensamento da Memética como um campo específico do conhecimento humano. No entanto, o conceito de evolução está sujeito a críticas severas, principalmente pelo fato de ter contribuído para a

10 fundamentação de pensamentos que promoveram a segregação social. Sendo assim, de que forma a Memética enfrenta o conceito de evolução do ponto de vista teórico? Gustavo Leal Toledo: No que diz respeito à aplicação do conceito de evolução dentro da biologia, não existem grandes controvérsias e nem críticas. Existem detalhes ou visões diferentes de como aplicá-lo ou de até onde aplicá-lo. Mas há consenso na comunidade científica de que ele deve ser aplicado e de que é um dos mais importantes princípios explicativos da biologia. No entanto, quando tentamos aplicá-lo fora da biologia, podem surgir problemas, como foi o caso do Darwinismo Social e das tentativas de eugenia. Há de se ressaltar que a Memética não sofre de nenhum destes problemas. Ela não defende nenhum tipo de limpeza de raça ou limpeza cultural. Apenas pretende explicar o funcionamento da cultura, mas não propõe o que devemos fazer com tal explicação. Último Andar: Suzan Blackmore trabalha com a ideia de que os memes são instruções para realizar comportamentos e transmitidos por imitação e não estão somente nos cérebros humanos, mas também se encontram em produções materiais como livros ou CDs. Como estas instruções se originam dentro de nós? Gustavo Leal Toledo: Sendo meme uma unidade de cultura, então eles não precisam ficar presos em nossos cérebros. Neste exato momento eu passo meus memes para o papel. Eles serão lidos pelos seus leitores. Se encontrar nestes um bom ambiente, se fixarão ali e de lá tentarão passar para outros, como quando estes leitores tentarem explicar Memética para seus amigos. Deste modo, memes não são exatamente físicos, não são pedaços de meu cérebro, mas sim informações que podem ser passadas por múltiplos meios e não apenas por imitação, como defendeu Susan Blackmore. Mas como este processo se dá é algo ainda não respondido pelas neurociências. Minha intuição é de que passam pelos Neurônios-Espelho. Último Andar: Na Conferência O Problema dos Qualia na Filosofia da Mente proferida por você em 2013 no Instituto Santo Tomás de Aquino em Belo Horizonte, você em determinado momento indica que a experiência qualitativa deve sempre ser tratada na primeira pessoa e que o discurso acadêmico, sempre em terceira pessoa, não dá conta de compreender a experiência qualitativa. Partindo dessa questão podemos

11 compreender melhor as experiências religiosas se a tratarmos a partir das referências da experiência qualitativa? Gustavo Leal Toledo: As experiências qualitativas são o que a Filosofia da Mente chama de qualia. Elas são como o que uma sensação é para você. Nunca poderemos explicar para o cego o que é o azul ou para o surdo o que é uma música. Isso só pode ser experienciado em primeira pessoa. A grande dificuldade da Filosofia da Mente é explicar como as qualia se relacionam com o cérebro. Por que e como nosso cérebro pode ter qualia? A experiência religiosa, como qualquer outra experiência, poderia ser tratada em termos de qualia também. Neste sentido, seria algo pessoal, inexprimível em linguagem científica. Último Andar: Você posiciona-se de que modo em relação à crença? É religioso? Gustavo Leal Toledo: Nasci em uma família pouco religiosa. Na adolescência fui buscar religião por conta própria e passei vários anos sendo fortemente religioso, mas focado nos ensinamentos dos místicos de várias religiões diferentes. No meu mestrado, no entanto, vi que não havia bons argumentos para se defender que a mente não é o cérebro e me tornei fisicalista. Desta posição cheguei ao meu atual ateísmo. Tema, inclusive, que tem sido foco dos meus estudos nos últimos dois anos. Último Andar: A religião, dentro da perspectiva de ser um fenômeno natural, é entendida como fruto de vários processos cognitivos. Há um debate entre estudiosos da área que, de um lado, referem a religião como subproduto de processos evolucionários, e outro grupo, que entende a religião como um fenômeno que, em si, teria sido decisivo na para a evolução humana na chave da solidariedade e coesão, ou via sacrifício custoso que também garante a coesão do grupo. Como seus estudos se posicionam em relação a estas visões? Gustavo Leal Toledo: Ainda não tive a oportunidade de juntar meus estudos em Biologia Evolutiva e meus estudos em Ateísmo e Religião. Algo que pretendo fazer no futuro. Como intuição inicial diria que nosso ímpeto religioso realmente tem bases biológicas, mas como uma espécie de subproduto de alguma outra adaptação. No entanto, já estive errado e mudei de intuição outras vezes.

12 Último Andar: Você afirma em seu artigo Neoateísmo e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse que o neoateísmo é fundamentalmente um movimento político. Sendo político, como você vê o engajamento de cientistas no movimento? Gustavo Leal Toledo: Vejo como extremamente importante e necessário. Em um debate político participam aqueles que estão diretamente envolvidos nos seus resultados. No caso do debate atual sobre o ateísmo, a ciência, em especial o darwinismo, é o mais atingido, talvez até mesmo o alvo principal. Em casos assim, espera-se que aqueles que realmente dominam o darwinismo, ou seja, os cientistas da área, defendam sua visão. Quando religiosos tentam impedir o estudo com células tronco embrionárias, quando tentam impor o Design Inteligente nas aulas de biologia, nada mais esperado do que os diretamente envolvidos entrem na disputa. Último Andar: Você poderia indicar as propostas e críticas contidas no pensamento dos Quatro Cavaleiros do Ateísmo? Quem são estes cavaleiros e porque este nome? Há diferenças entre os pensamentos ateístas de cada autor? Gustavo Leal Toledo: Este é o nome de um vídeo no youtube de uma conversa entre Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens. O nome é apenas uma sátira, dada a união dos quatros maiores expoentes do neo-ateísmo. Neste vídeo eles debatem as suas visões ateístas do mundo. Há grande concordância entre eles, mas também algumas discordâncias. Explicá-las aqui excederia o tamanho desta entrevista. Sugeriria a leitura do artigo que você mencionou na pergunta anterior e que está na revista Filosofia ciência & vida, número 112. E também o artigo na edição anterior, intitulado o Rottweiler de Darwin. Ambos disponíveis on-line. Na verdade foi um artigo só que tivemos que dividir em duas partes. Neles apresento os principais argumentos do neo-ateísmo. Último Andar: A equipe da Revista Último Andar agradece imensamente e sentese honrada em ter sua contribuição.