PELOS CAMINHOS DA BELEZA: A VAIDOSA MANIPULAÇÃO DE O BOTICÁRIO



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Transcrição:

PELOS CAMINHOS DA BELEZA: A VAIDOSA MANIPULAÇÃO DE O BOTICÁRIO Antonio Lemes Guerra Junior (Letras - G/UEL) Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello (UEL) Palavras-chave: Boticário; Estratégias; Manipulação. 1 INTRODUÇÃO A comunicação humana é um processo extremamente rico de significações, as quais surgem por meio da utilização de determinadas estratégias, assumidas pelo produtor do discurso como as mais adequadas à determinada finalidade. Ela (a comunicação) não deve ser entendida apenas como um fazer informativo, mas também e principalmente como uma estrutura complexa de manipulação, em que o enunciador exerce um fazer persuasivo e o enunciatário, um fazer interpretativo (GREIMAS; COURTES apud FIORIN, 1988, p. 53). O discurso publicitário, por sua vez, não é uma exceção. Muito pelo contrário, as propagandas são exemplos capazes de demonstrar todo o mecanismo de funcionamento de textos que têm como função primordial persuadir um indivíduo, um sujeito, levando-o a realizar determinadas ações. No entanto, para que essa função seja cumprida satisfatoriamente, o texto ou o discurso deve ser construído de modo atraente e, sobretudo, inteligente. Assim sendo, os profissionais responsáveis pelo marketing de certas empresas apostam em produções altamente significativas, do ponto de vista semântico, para convencerem os indivíduos pertencentes ao seu público-alvo. Em contrapartida, a adoção de um posicionamento, seja ele positivo ou negativo, diante do produto anunciado dependerá da interpretação do sujeito acerca do discurso produzido, e para isso tudo deve parecer verdadeiro a fim de que possa convencer. A teoria semiótica, respaldada pelas pesquisas de importantes estudiosos ao longo dos últimos anos, como afirma Barros (2007), tem [...] procurado conciliar [...]

as análises ditas interna e externa do texto (p. 8), mostrando todos os elementos e/ou fatores que contribuem na construção dos sentidos que começam a ser emitidos por ele a partir do momento em que é produzido, como que se ganhasse vida própria. Isso porque essa combinação de análises resulta numa gama maior e mais rica de significações. Recentemente, começou a ser veiculada na mídia uma nova peça publicitária da empresa O Boticário, umas das líderes de mercado no segmento de cosméticos. A campanha Acredite na beleza traz, no conjunto de ações tomadas para sua realização, o filme comercial Repressão. Segundo notas divulgadas pelos idealizadores do projeto, tudo isso configura uma tentativa de criar um novo olhar para o território da beleza, fazendo com que as pessoas acreditem em seu poder (da beleza) como agente transformador que contagia todos ao redor. 1 Portanto, nossa proposta é analisar esse vídeo, a partir de um enfoque semiótico, levando-se em consideração todas as partes que o integram, haja vista que se trata de um texto sincrético, ou seja, um texto em que diversas linguagens verbais e não-verbais se fundem na composição de um todo repleto de sentido. Serão analisadas as estratégias das quais o enunciador lançou mão a fim de tornar seu discurso verdadeiro e, por conseguinte, persuasivo aos olhos do enunciatário, verificando quais as significações que podem ser atribuídas a esse discurso, sem deixar de mostrar, evidentemente, como o texto está organizado para que possam ser verificadas. 2 IMAGEM E DISCURSO: AS ESTRATÉGIAS DE MANIPULAÇÃO Como dito anteriormente, pelo discurso publicitário, mais do que em qualquer outro tipo de discurso, um sujeito tenta convencer o outro acerca de determinada verdade, a sua verdade. No entanto, para convencer, é preciso fazer o que, em semiótica, se convencionou chamar de manipulação, um processo em que o destinador doa ao destinatário-sujeito os valores modais do querer-fazer, do dever- 1 Informações disponíveis na página da empresa na Internet: <www.boticario.com.br>. Acesso em: 16 jul. 2008.

fazer, do saber-fazer e do poder-fazer (BARROS, 2007, p. 28, grifos da autora), elementos indispensáveis para a efetivação da ação desejada. Esse processo pode se dar de quatro maneiras, a saber: por provocação, por sedução, por intimidação ou, ainda, por tentação. Embora se dêem de maneiras distintas, num mesmo discurso persuasivo podem aparecer todas essas modalidades de manipulação. O resultado da ação de tudo isso sobre o enunciatário ou, melhor dizendo, a reação deste dependerá da relação estabelecida entre os sujeitos, o que manipula e o que é manipulado. Assim, numa campanha publicitária, é essencial que o enunciador, além de conhecer o seu público, crie um discurso que seja realmente capaz de atingi-lo eficazmente. O Boticário, enquanto autor do discurso retratado pelo vídeo comercial, a fim de atingir o seu objetivo de convencer consumidores de produtos de beleza, delega vozes a um enunciador que se coloca como o detentor da verdade, o detentor de um saber que, ao ser transmitido ao enunciatário, o fará querer fazer algo, no caso, escolher e consumir a marca em questão. Para verificar os efeitos de sentido produzidos pelo discurso veiculado nessa campanha, seria interessante, primeiro, apresentar uma das partes constituintes do vídeo selecionado, caracterizada pelo texto verbal que, na voz de uma narrador, dá suporte à seqüência de imagens que figurativizam o discurso inicial, essencialmente temático: Não seria bom viver num mundo sem vaidade? Um mundo, onde a imagem não tivesse importância? Onde a beleza não fosse valorizada? Não seria bom viver nesse mundo? Não, não seria. O texto é formado basicamente por questionamentos, cuja resposta é dada ao final pelo próprio narrador. O não, ou qualquer outro elemento que denote negação, em todas as perguntas lançadas, na verdade, assume um valor positivo. Em outras palavras, o que o enunciador quer é chamar a atenção do enunciatário para as conveniências de se viver num mundo sem vaidade, como se isso fosse muito bom. No entanto, a sua resposta carregada pela repetição do não, agora com valor negativo, destrói essa imagem de mundo bom sem vaidade (ou mundo ruim com vaidade ), construindo uma outra de mundo bom com vaidade (ou mundo ruim sem vaidade ),

o que é perfeitamente explicável, já que se trata de uma campanha que quer estimular o consumo de cosméticos. Porém, a análise isolada dessa parte inibe um pouco a apreensão de muitos dos sentidos que emanam do texto. Como se sabe, para se chegar à compreensão da enunciação, deve-se trabalhar com as pistas deixadas no enunciado. No caso em questão, essas pistas são encontradas em grande número nas imagens que compõem o vídeo. Daí a necessidade de complementar essa análise com a verificação do restante do comercial. A essência do texto está resumida no trecho transcrito há pouco, ou seja, a idéia central que se pretende passar ao enunciatário é a de que viver num mundo sem vaidade, sem beleza, não é bom. No entanto, para convencer o enunciatário de que isso é verdade, o enunciador recobre o discurso com figuras que dão a ele uma aparência de realidade. Isso se dá pelo procedimento semântico de concretizar os atores, os espaços e o tempo do discurso, preenchendo-os com traços sensoriais que os iconizam, os fazem cópias da realidade (BARROS, 2007, p. 60). Quando o receptor assume o que vê como real, acredita naquilo e se torna mais sujeito a sua manipulação. No vídeo, para esse processo de figurativização, fez-se a opção por um sujeito que, inicialmente, está em disjunção com seu objeto-valor: a vaidade ou a beleza. Esse sujeito, revestido concretamente pela figura de uma mulher jovem, encontra-se num estado disfórico. Isso pode ser observado na Figura 1, em que se percebe um semblante pálido, sem vida, triste: Figura 1 Essa falta de vida percorre todo o comercial, sendo evidenciada pelas cores apagadas, pela predominância do cinza, que denota a obscuridade de um mundo sem a luz que, segundo a idéia do enunciador, surge apenas com a beleza. Tudo isso corrobora a afirmação de que a oposição semântica que define o eixo central de significações

desse texto caracteriza-se por Vaidade x Modéstia, visto que uma é deixada de lado em detrimento da outra, mesmo que forçadamente. De início, não se sabe como esse sujeito entrou em disjunção com seu objetovalor. Mas, as cenas seguintes, numa seqüência muito bem elaborada, mostram que ele, assim como os demais sujeitos, que se encontram numa mesma situação, é vítima de um processo externo, provavelmente de um grupo que se encontra no poder e que insiste em tentar disseminar a ideologia de que beleza não possui valores positivos. Essa ideologia, supostamente defendida pelo poder público, pode ser confirmada com as duas cenas representadas a seguir:

Figura 2 Figura 3 A Figura 2 mostra a personagem principal num local que parece ser um banheiro público, onde já não há mais espelhos, restando apenas as marcas destes na parede. Já a Figura 3, ainda mais representativa, mostra um carro de som circulando pelas ruas, emitindo a seguinte mensagem : Beleza, não!. Isso é claramente percebido no vídeo, numa repetição que tenta inculcar na mente das pessoas a vontade pela supressão da beleza. É interessante ressaltar o fato de que as personagens do vídeo são todas mulheres, as principais consumidoras dos produtos da empresa idealizadora da campanha. Além disso, elas estão vestidas todas com as mesmas roupas, também de cores cinzentas, apagadas, o que reforça a idéia da existência de uma força maior (do poder) que controla a conduta dessas pessoas, definindo o modo de se vestir, de se comportar, sempre sem alegria e com semblantes opacos. Essa força que rege a vida dessas personagens cria uma espécie de molde, dentro do qual todos os integrantes da sociedade devem se encaixar, seguindo os padrões preestabelecidos por ela. É uma f(ô)rma que persegue a vida desses indivíduos em diversas atividades. A Figura 4, por exemplo, é o mais claro exemplo desse molde. Vêem-se mulheres num salão, que ao invés de ser um local de criatividade, de inovação e de busca pela beleza, passa a ser a concretização suprema dessa repressão, desse controle total: Figura 4 Figura 5 Essa idéia é corroborada pela Figura 5, em que quadros mostram rostos sem identidade, apenas com o corte de cabelo estipulado pelo grupo detentor do poder. Essas imagens vêm para mostrar como seria viver num mundo onde a imagem não tivesse

importância. Em resumo, o ser já não importa mais. A individualidade reprimida dá lugar a uma coletividade que alimenta ainda mais a repressão. Esses elementos verificados até agora já são capazes de confirmar os efeitos negativos da ausência da beleza, idéia defendida pela campanha. No entanto, o enunciador vai além, projetando situações ainda mais convincentes. A seqüência das figuras abaixo mostra mulheres trabalhando como se fossem robôs, num processo mecânico, a fim de eliminar o salto alto, um dos maiores símbolos da beleza feminina, e os secadores, que são lançados às chamas. Além dessa mecanização, as imagens denotam todo o trabalho e sofrimento empregados na erradicação de todos os itens de beleza existentes, sem contar a degradação do meio-ambiente representado pelo fogo utilizado na incineração de tais objetos. Figura 6 Figura 7 Figura 8 Numa análise mais profunda, poder-se-ia dizer que ao fogo está sendo lançada a feminilidade, a essência da figura da mulher, a sua identidade. É a degradação não só do ambiente, mas do próprio ser humano. O fogo representa a ideologia repressiva que se alastra e elimina tudo que foge a seus princípios. As mulheres, trabalhando como máquinas, nos remetem às fábricas, às produções em série, como se os sujeitos, no vídeo, fossem meros produtos originados a partir de um molde único (a ideologia), que os prepara para a vida em sociedade já toda programada para impedir a existência da beleza. A Figura 9, abaixo, mostra a cena em que bonecas, réplicas das personagens, percorrem uma esteira como se acabassem de ser produzidas, confirmando a idéia de produção em série de seres idênticos:

Figura 9 Fala-se de uma sociedade já programada em função do forte controle exercido sobre ela. Obviamente, a partir do momento em que nasce, um indivíduo inicia um processo de adaptação às normas existentes. Por conseguinte, o papel dos demais indivíduos é alertá-lo, impedindo transgressões, como na instituição familiar, um dos principais formadores de caráter e conduta do ser humano. No vídeo, isso é observado na cena em que uma criança busca sua imagem refletida numa colher. Porém, como a imagem não tem importância, sendo vista como algo proibido, a mãe da garota, representante dessa instituição familiar, a reprime, impedindo que utilize o talher como um espelho, objeto banido da sociedade em que vivem (Figura 10): Figura 10 Como pode ser observado, a justificativa para o título do comercial Repressão é facilmente encontrada nessas imagens, nas quais indivíduos são a todo o momento guiados por uma conduta ideologicamente criada, sem chances e sem espaço para a expressão do ser. Além de se configurar como um agente de manipulação, que tem o intuito de atrair um público consumidor específico, o vídeo pode ser caracterizado como um agente de revolução, de crítica a todas entidades que defendem o fim da exaltação da imagem, o que poderia tornar os seres humanos, em especial as mulheres, em indivíduos alienados, presos a um mundo que inibe, impede suas ações. Diante de toda essa negatividade, para confirmar a resposta dada pelo texto de que não seria bom viver num mundo sem beleza, o enunciador retoma a figura daquele sujeito que estava em disjunção com seu objeto-valor. A jovem, como um agente transformador dela

mesma e, talvez, da sociedade a sua volta, passa a atuar como a personificação de um grito de basta!, pois entende que a repressão deve acabar, dando lugar à liberdade. Essa mudança tem início num momento em que a personagem vê imagens na TV (Figura 11), mostrando pessoas como ela, mas capazes de acordá-la, revelando o equívoco da conduta que vem sendo seguida, à força, por todos. A situação a coloca num processo de fuga. Ela foge da realidade vivida até então, foge das garras da ideologia repressiva disseminada em sua sociedade, e foge dela mesma, enquanto um ser que se submetera à tamanha crueldade: a prisão da beleza. Figura 11 Um local com coisas cobertas, escondidas, surge para mostrar como são banidos da sociedade os elementos que vão contra as suas regras, postos em locais com acesso dificultado, sendo alcançados apenas por aqueles que se submetem aos riscos de se tornar um transgressor. É nesse momento que a personagem redescobre a liberdade (ou a descobre, uma vez que poder ainda não tê-la tido). Além de reencontrar sua imagem, por meio do uso de espelhos, ela encontra algo que será capaz de torná-la diferente. Isso é figurativizado por um produto que leva a marca, obviamente, de O Boticário: um batom de cor vermelha que, colocado nos lábios desse sujeito, devolve-lhe a beleza roubada, colocando-o portanto em conjunção com esta, que é o objeto-valor desejado. Figura 12 Figura 13

Por fim, o sujeito realiza a sua performance, transforma seu estado para uma situação eufórica e fecha, eficazmente, a idéia de que a beleza só é adquirida com produtos de O Boticário. A Figura 14, abaixo, mostra a jovem mulher, envolta pelas cores cinzentas e pelos olhares invejosos dos demais, carregando consigo um sorriso de satisfação, pintado pela cor vermelha, denotando um suposto poder que é atribuído à mulher que se cuida e que utiliza os produtos da marca em questão: Figura 14 A trajetória desse sujeito traz elementos altamente persuasivos, capazes de manipular o enunciatário, pois criam um efeito de realidade e o fazem crer no poder de transformação da beleza. Além disso, o texto que fecha o comercial e que dá nome à campanha, Acredite na beleza, pede a esse enunciatário que aceite tudo o que foi dito como verdadeiro e realize a ação desejada pelo enunciador, a saber: comprar. Porém, como todo texto publicitário, há aí riscos, pois a empresa acaba por assumir com seu público um contrato fiduciário, o qual, na constatação da falsidade ou no não cumprimento do que foi prometido, pode denegrir a imagem da marca. 3 O OUTRO LADO DA HISTÓRIA: VERDADES INDESEJADAS Segundo Mello (2007, p. 6), os sentidos do texto têm autonomia. Por isso, ele pode não significar aquilo que seu autor quer que ele signifique (intentio auctoris), mas significar aquilo que seu enunciador permite que ele signifique (intentio operis). Em outras palavras, desde que o texto permita, ou desde que haja pistas, interpretações

diversas podem ser feitas tendo como base um mesmo discurso. E é isso que tentaremos mostrar a partir de agora. O vídeo institucional de O Boticário tem como intenção principal persuadir consumidores de produtos cosméticos acerca da sua eficiência na busca pela beleza, e o faz isso com eficiência, lançando mão de inúmeros argumentos que, figurativizados por elementos do mundo real, tornam o discurso quase que irrefutável. No entanto, inúmeras outras questões condenadas por nossa sociedade podem ser elencadas a partir das imagens exibidas pelo comercial. É possível que não tenha sido intenção de seus idealizadores transmitir tais idéias, mas é de extrema importância registrá-las aqui, evidenciando as armadilhas que podem ser criadas pelas estratégias escolhidas pelo enunciador, as quais podem afetar a ele mesmo. A primeira abordagem interpretativa sobre a qual podemos discorrer, devido a sua clareza, que salta aos olhos de um leitor mais atento, diz respeito à marginalização ou, se querem, à exclusão social. A propaganda, num primeiro momento, coloca todos os indivíduos num mesmo plano de estratificação, ou seja, todos os personagens apresentam-se com as mesmas características, as mesmas funções, enfim, com o mesmo estilo de vida. Mas, no instante em que ocorre a transformação da personagem principal, ela é elevada de nível, propositalmente, tendo consigo um dos símbolos do poder, a cor vermelha, que a torna, naquela hora, superior aos demais. Evidentemente, aqueles que a olham, que a invejam, são deixados à parte, já que não possuem os caracteres daquele novo padrão que começa a surgir. Além disso, essa idéia de segregação pode ser perfeitamente transposta para nossa realidade, uma vez que as pessoas, ao serem manipuladas pelo poder da beleza conseguido apenas através de O Boticário e, talvez, sem ter acesso a seus produtos, podem se sentir colocadas à margem, por acreditarem não se encaixarem nesse estereótipo criado. E é aí que surge mais uma questão a ser discutida, cujo valor, de acordo com os princípios de nossa sociedade, é altamente negativo: a exaltação do belo, que é colocada em pauta no vídeo. A tentativa de mostrar um poder oculto que inibe essa prática, com a disseminação de uma ideologia repressiva, mostra-se frustrada, por transformar o mundo, de acordo com o comercial, num local sem vida, sem cor, sem humanidade. No entanto, a mídia surge para trazer de volta os padrões de beleza. A Figura 11, observada há pouco, mostra o poder de persuasão da TV, um dos principais meios de

veiculação das imagens-padrão que devem ser seguidas, buscadas, alcançadas. Isso sem dúvida é um fato negativo, pois coloca em xeque o papel desse meio de comunicação na sociedade, confirmando sua responsabilidade na formação de valores baseados apenas no poder, na falta de originalidade, na manipulação e na reprodução desenfreada de conceitos pré-definidos, incluindo aí o de beleza. Um outro caso interessante a ser destacado é o representado pela Figura 10, também já observada, demonstrando a rigidez de um sistema familiar tradicionalista, que ainda pode ser encontrado na sociedade atual e que denota a falta de tolerância de certos pais diante de certas atitudes de seus filhos. O semblante fechado da mãe, associado ao seu gesto duro, simboliza uma espécie de violência repressiva, cometida por muitos pais, que impedem o desenvolvimento da criatividade de suas crianças, algo que poderia ajudá-las enquanto indivíduos que se encontram num processo de construção de sua identidade, a qual, muitas vezes, se perde pela existência dessas barreiras que não a deixam ser refletida. Enfim, o vídeo analisado, devido a sua riqueza de elementos, abre-se para diversas focalizações, mesmo que estas se desviem um pouco do eixo central que dá forma ao seu conteúdo. Assim, a oposição Vaidade x Modéstia pode dar espaço a outras, como, por exemplo, Poder x Fragilidade ou, ainda, Exclusão x Inclusão, o que vai depender do foco de análise estabelecido. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise aqui realizada buscou mostrar os recursos aos quais o enunciador recorreu a fim de manipular seu enunciatário, transmitindo-lhe um saber e fornecendo-lhe a competência necessária que o fizesse querer fazer algo. Foram verificados os sentidos advindos das figuras utilizadas para concretizar o discurso criado, bem como suas diversas interpretações, visto a possibilidade da existência de textos polissêmicos. Talvez, em alguns pontos, as considerações possam ter parecido superficiais, mas é certo que, com elas, conseguiu-se atingir o objetivo deste trabalho, o de ver um texto em funcionamento, fazendo surtir efeitos, sensações, além de instigar a realização

de ações, e tudo isso por intermédio de um belo exemplar publicitário, repleto de significações, o que viabilizou as diferentes leituras. Obviamente, as possibilidades de análise não foram esgotadas, haja a vista a profundidade da temática empregada pelos idealizadores da campanha. Porém, acreditamos terem sido abordadas aqui as principais, ou as que mais possuem elementos que as sustentem, o que não impede que sejam retomadas e complementadas, na medida em que novos olhares forem empregados na busca pela compreensão desse discurso. REFERÊNCIAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2007. FIORIN, José Luiz. As figuras de pensamento: estratégias do enunciador para persuadir o enunciatário. Alfa, São Paulo, n. 32, p. 53-67, 1988.. Elementos de análise do discurso. 14 ed. São Paulo: Contexto, 2006. MELLO, Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de. Estratégias argumentativas do enunciador para persuadir o enunciatário: análise de um discurso ligado ao MST. Rio de Janeiro, 2007. O BOTICÁRIO. Repressão. Disponível em: <http://www.youtube.com>. Acesso em: 15 jul. 2008. [RAPDC1] Comentário: Meu Deus!!! Olha o tamanho dessa oração!!!!!